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Vida e memória em ação

 

Romances, poemas, ensaios são feitos com palavras. E estas, as palavras, descansam ou se agitam na memória. Quando se diz que a memória é a base de qualquer história - ou poesia, ou depoimento, ou análise, ou previsão, ou prédica, ou declaração de amor - é porque na palavra repousa tudo o que o tempo colheu e guardou. O passado como que espera na memória pela hora de sua ressurreição. Daí o poder dizer-se que todo livro é um produto da memória, seja qual for sua classificação técnica do ponto de vista literário.


 


O livro de Maria Augusta Morgenroth, "O ciclo da vida", é uma prova dessa tendência memorialística de todo escrito bem elaborado. Pianista de fama internacional, acostumada a tocar nas salas de música mais famosas do mundo - na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, em vários países da América Latina e todo o Brasil - autora de gravações de Beethoven, Chopin, Lizst, Villa-Lobos, entre muitos outros compositores - além de ser boa pintora, em geral de assuntos rurais eminentemente brasileiros - ao se curvar posteriormente sobre o papel para narrar uma história de seu tempo - que é "O ciclo da vida" - vai buscar detalhes de sua presença no mundo fascinante do piano, nos centros internacionais de dança e de artes em geral, de que participou e que tão bem conhece.


 


Com isto, fixou ela uma experiência de vida e todo um panorama da cultura de nossos dias, registrando acontecimentos, iniciativas, pesquisas, analisando muitas das descobertas de hoje, inclusive na medicina. Seu livro tem páginas que mantêm em suspense uma espécie de estar-aí romanesco, ao modo de Heidegger, mostrando ações levadas a efeito em partes diferentes do mundo, contando histórias de pessoas que, na Grécia, na China, na Amazônia, no Rio de Janeiro, na Bahia, vivem seus momentos de ser e de fazer, de escolher e de julgar.


 


Juntamente com essa tomada geral de acontecimentos, de lembranças e de figuras, avulta em seu livro uma soma de experiências em que a autora insufla uma segura técnica descritiva. As imagens de agora ganham permanência em suas palavras e histórias, marcando situações que analisa em Pequim, no Pantanal de Mato Grosso, em Atenas, nas igrejas históricas de Minas Gerais, nos museus do Rio de Janeiro e de São Paulo, no futebol e no Carnaval, nas praias da Bahia, na apreciação dos grandes pintores de agora e, naturalmente, na música.


 


Seu livro tem personagens como o brasileiro Antonio que, tendo perdido um filho num desastre, resolveu fazer uma viagem para um lugar bem longe. Primeiro esteve em Hong-Kong, mas seu maior desejo era conhecer Pequim, seu povo, seus monumentos. Assim que ali chegou, pôs-se a contemplar a cidade do alto de seu quarto num hotel, estudou mapas do Centro e resolveu fazer uma visita à sepultura de Mao-Tse-Tung.


 


Em seguida, saiu caminhando sem rumo fixo e, numa curva de rua, deparou com um embrulho no chão. Apanhou-o, abriu-o para nele descobrir uma criança que não devia ter ainda uma semana de vida. Tomou-a em seus braços, viu que era menina. Como não sabia chinês e só via chinesas ao redor, só quando encontrou um ocidental pôde obter o endereço de um centro policial próximo.


 


Na China, qualquer pessoa, chinesa ou não, pode adotar uma criança, mas somente depois de identificada a mãe. No caso de Antonio, a mãe foi encontrada e ele conseguiu adotar, com muita alegria, a menina. Como pai de uma chinesinha, resolveu morar em Pequim tendo logo contratado uma professora de chinês para aprender o idioma no mesmo período em que a filha adotiva, a quem deu o nome de Sissow, já o estivesse falando.


 


Mais tarde, muda-se com ela para o Brasil, onde Sissow estuda medicina para se tornar uma excelente profissional. Veja-se que, numa reminiscência como a de Antonio com sua filha Sissow, jaz um aspecto de nosso tempo que revela as misturas de destino e a diversidade de caminhos que ocorreram e ocorrem ao nosso lado, em lugares que conhecemos e com pessoas não muito diferentes das que nos cercam no dia-a-dia.


 


Maria Augusta percorre outras veredas, com histórias que levam o leitor a novos ambientes, com saltos de um ponto na Ásia e visões de países diferentes no mesmo tempo em que discute a pintura dos últimos séculos e o modo como suas soluções de cores como que recebem influência de compositores, e vice-versa, como por exemplo, Debussy revelando uma intenção consciente de imitar, em sua música, os novos efeitos visuais dos pintores.


 


O livro fixa também contrastes, como o de Roberto que, depois de um curso de ecologia na Sorbonne, resolve dedicar seu tempo a estudos na Amazônia, onde os crimes contra a natureza alcançam níveis inimagináveis. Com isto surgem páginas que mostram contrastes entre Paris, a Amazônia, a China, a Grécia, com trechos dedicados aos lugares em que a Filosofia nasceu, com os personagens vivendo ciclos diferentes, voltando sempre ao Brasil, onde, na Bahia, a natureza mostrava como são lindas as folhas das árvores ao vento, o verde se movimentando numa dança livre sobre um mar azul.


 


São muitos os aspectos da cultura de hoje que aparecem nas páginas de "O ciclo da vida", com uma nitidez de detalhes que, no seguir o leitor os passos da gente que povoa a narrativa de Maria Augusta, terá uma visão geral das marcas, tanto alegres como dolorosas, de nosso tempo - as tendências da música de hoje, a busca de espetáculos novos, o interesse pela memória de cada aspecto de nossa cultura, a esperança de mantermos um clima de paz que nos defenda contra as angústias do momento, que sempre existem, parte integrante do nosso sentimento do mundo.


 


"O ciclo da vida", de Maria Augusta de Oliva Morgenroth, tem a égide da HP Comunicação Editora.


Tribuna da Imprensa (RJ) 20/6/2006