Claro, eu sabia que não ia durar muito. Há bastante tempo minha qualidade de vida tem sido de baixíssimo nível e, como se sabe, é impossível sobreviver hoje em dia sem cuidar da qualidade de vida. Do contrário, o sujeito morre depois de ler as seções de saúde dos jornais, tamanho é o terrorismo que fazem em relação à qualidade de vida. Devia haver um aviso nessas seções, advertindo que sua leitura contumaz leva a todo tipo de doença imaginável. Eu, apesar das exigências de minha atividade jornalística, procuro evitá-las, mas não adianta porque os efeitos delas se alastram como fogo em mato seco, a começar pela própria família do sofrente.
Minha qualidade de vida, sou obrigado a reconhecer, está um lixo. Não caminho no calçadão, não jogo nem peteca, não freqüento academia e não sigo dieta. Pelo contrário, encaro tudo o que faz mal numa boa e soube que a Associação Brasileira de Fabricantes de Porcarias Variadas, de biscoitos recheados que enjoam até criança a doces de origem obscura, planeja me homenagear (aceito, mas quero minha parte em dinheiro, ou então em sorvete). Ou seja, minha qualidade de vida causa grande pena e preocupação entre meus amigos e a pressão começa a exercer seus efeitos - começo a convencer-me de que ninguém pode viver assim com esta minha péssima qualidade de vida, é necessário fazer alguma coisa urgente.
Entre as conseqüências de minha abominável qualidade de vida a que mais chama a atenção é a barriga. Admito que, se mulher fosse, me perguntariam com alguma freqüência se eu já sabia se era menino ou menina. Mas, viciado nesta minha horrível qualidade de vida, decidi que não moveria uma palha para tirar a barriga. Em primeiro lugar, quem não gosta de mim com barriga não ia passar a gostar, se eu a perdesse. Em segundo lugar, se perder a barriga me tornasse parecido com o Sean Connery, certamente valeria a pena. Mas eu vou ficar com a mesma cara de sempre e ainda arriscado a ouvir comentários do tipo “você está inteiraço!”, o que todo mundo sabe que só se fala a velho coroca, querendo dizer que ele continua velho coroca, mas está para a aparência assim como uma uva inteiraça está para uma passa inteiraça. Já se fica humilhado com efusivos comentários de “você está bem, mas está muito bem”, o que também só se diz a velho, ou ex-biriteiro. Inteiraço é demais, é um golpe muito duro de absorver.
Volto ao regime que já me prescreveram. É preferível evitar o sal. Conservas, nem pensar. Frituras são incogitáveis. Proteína animal, só um peitinho de frango ou um peixinho, com cuidado para o primeiro não estar entupido de hormônios afrescalhantes (daí a expressão “frango fresco” e a conseqüente “galinhas abatidas”, pois, para as galinhas, deve ser meio frustrante só topar com frango fresco, elas só podem ficar muito abatidas com isso) e o segundo não ter mais mercúrio do que termômetro de rinoceronte. Doce, só se você for maluco. Além dos triglicerídeos, diabetes certa, principalmente com a ajuda da barriga grande.
E é tão bom comer capim, a qualidade de vida melhora tanto! Tenho amigos que encaram com a voracidade de um jumento pratarrazes de folhas exóticas, todas com o mesmo não-gosto. Eu mesmo já fiz isso e mal posso esperar o dia em que voltarei a comer tanto capim que talvez assuma a condição de ruminante depois de mais velho. Deve ser um barato, para o velhote, ficar num canto, ruminando umas boas horas seguidas, grande atividade para a terceira idade. E é tudo uma questão de reeducação alimentar, embora os reeducados que conheço me pareçam sempre ter um certo ar de cérebro lavado ou de quem passou por um campo da Revolução Cultural na China.
E, finalmente, como se sabe, nada disso adianta coisa alguma para a qualidade de vida, se não for acompanhado escrupulosamente por um programa de atividade física. Mas que tipo? Já tive bicicleta ergométrica, mas nossas desavenças nunca foram resolvidas, de maneira que a doei a alguém que não lembro agora, mas contra quem eu devia ter alguma coisa. Também tive esteira rolante, mas, ao contrário do presidente, prefiro ler a andar na esteira e me sentia sempre um daqueles hamsters que criam em gaiolinhas giratórias, nas quais eles andam sem nunca chegar a lugar algum. E já freqüentei brevemente uma academia, mas todo mundo nela me intimidava e comecei a ter pesadelos com máquinas de tortura, de forma que desisti.
Não, meu destino é o calçadão. Só falta ele, para completar minha qualidade de vida. Minhas tentativas anteriores foram com certeza prejudicadas pela má vontade e pelas vicissitudes enfrentadas, a maior das quais era o capenguinha, que doravante passarei a ignorar e caminharei altivamente, no meu próprio ritmo quelônio. Já devia ter começado, como estava previsto, na segunda-feira passada. Não comecei. Criei um apego mórbido à minha terrível qualidade de vida atual e me sinto bem melhor, embora saiba que falsamente, sentado aqui, escrevendo ou lendo um livro, do que andando no calçadão. Não, chega de ser anormal, chega de ouvir sermões dos médicos e advertências apocalípticas da família.
Agora meu fim será diferente. Com a atual horrível qualidade de vida que enfrento, viverei aí mais uns quinze anos, tendo alguma sorte. Melhorando minha qualidade de vida, posso viver muito mais, entregando-me aos prazeres de almoçar alface, rúcula, cenoura, tomate e outros vegetais, prolongando uma existência que poderia ter sido estragada por feijoadas, macarronadas, vatapás, sorvetes e pudins, além de diversões doentiamente sedentárias. Segunda-feira, sem falta, capim e calçadão. Felizmente eu minto um pouco, às vezes.
O Globo (Rio de Janeiro) 25/12/2005