Visitei, há alguns anos, nos arredores de Viena, o pequeno sanatório em que Franz Kafka morreu. A casa é hoje um museu dedicado ao escritor, com a cama em que dormiu, ou não, suas últimas semanas de vida.
Havia livros no quarto, que dava para uma varanda típica da Áustria, na frente um jardim em que se viam mais verdes do que flores. Kafka piorara em Praga, o sanatório de Viena tinha nome, para lá foi o escritor. Ficamos, Zora e eu, quietos na varanda, olhando para o jardim, pensando.
Até pouco antes de se internar no sanatório da Áustria escrevera Kafka, durante anos, o seu diário. Ao chegar a Viena estava com 40 anos. Era 1924. Por seu diário, ficamos sabendo de que modo repugnava a Kafka "a simples visão" de uma domesticidade normal de vida; numa das páginas de seu diário, diz: "A simples visão de uma cama de casal, com os lençóis usados, as camisolas cuidadosamente dobradas exaspera-me ao ponto da náusea".
Apesar de seu amor por Milena, temia a rotina de uma vida em comum. Dos volumes de que constam páginas de seu diário, cartas escritas a Milena e narrativas avulsas em que, em menos de 20 linhas contam uma história, o que de melhor possuímos no Brasil é o trabalho feito por Geir Campos, "Parábolas e fragmentos e cartas a Milena", em que desfilam textos emblemáticos de Kafka.
Em seus últimos anos de vida, já atacado pela tuberculose, conheceu uma judia polonesa por quem se apaixonou. Foi talvez o momento mais feliz de todo o seu tempo. Quis se casar, manifestou-se arrependido de ter-se afastado inteiramente de uma vida normal, mas nada mais poderia salvá-lo. A doença já o dominava.
Continuava sendo o homem que se tornara estranho a seu pai, a sua mãe e a todos os membros da família, o homem que despertara certa manhã para descobrir que se metamorfoseara num inseto. Numa das páginas de seu diário, afirma: "Nunca atingirei a idade do homem. De criança passarei a velho."
"Foi o último de um grupo de escritores - vindos do século XIX até o fim da Primeira Guerra Mundial do século XX - que sentiram, de modo violentamente real, a angústia de viver e o que se pode chamar de sentimento do nada: Kierkegaard, Dostoiewsky, Nietszche e Kafka. Os quatro pareciam compreender a reversão de valores que iria cair sobre o mundo no século XX. Kafka viveu no pleno explodir dessa reversão, foi sua voz mais consciente e real.
Kafka entendeu Soeren Kierkegaard como o homem dotado de uma ausência de participação, de uma necessidade permanente de descobrir, em outro mundo, uma justificativa super-racional para este. De certa maneira, Kafka também tinha consciência de uma "perseguição" das coisas - ou do que possa existir sob nome de "destino" contra o homem.
Assim, há nas circunstâncias que cercam o personagem Karl de "América", e o K. De "O processo", ambos de Kafka, uma espécie de conspiração de todas as forças do universo para arrasar o indivíduo. Este era o sentimento de Kafka dentro da vida, como tinha sido também o de Kierkegaard. Até nos fatos normais e decisivos de uma existência (o casamento, por exemplo), a atitude dos dois foi idêntica.
Se Kierkegaard se julgava angustiado demais para dar uma vida alegre à mulher que amava, Kafka assumia a mesma hesitação hamletiana e dizia, a propósito de seu rompimento com a noiva: "O que eu sofrerei, o que ela sofrerá, nada disto se compara com o que sofreríamos os dois numa vida comum".
Max Brod, amigo particular de Kafka, defende a tese de que o pensamento deste era o oposto ao de Kierkegaard. E o próprio autor de "Metamorfose" parecia, de vez em quando, repudiar o filósofo dinamarquês, afirmando a existência, entre eles, de "diferenças essenciais". Isto se devia, porém, mais ao natural repúdio das semelhanças do que à oposição de uma verdadeira diferença.
O que dá, ao diário de Kafka, um toque positivo é a consciência que tem de que suas obras poderão salvá-lo. Diz: "Escrever é minha luta pela autopreservação". Escrevendo, descobre, em tom de fábula, as contingências dolorosas que cercam o homem. Surpreende, em momentos de lucidez, o segredo das coisas - que os há - e o mistério de tudo o que acontece sem remissão, o mistério da franqueza do ser humano que não pode erguer a torre da sua vontade contra o caminhar infalível dos minutos.
Podemos hoje - em tempos que mantêm, em tudo, a preeminência da angustia - considerar os quatro - Kierkegaard, Dostoiewsky, Nietszche e Kafka - apesar da diferença de tempos - como pertencentes à mesma geração sacrificada de pensadores. E vale a pena admitirmos realmente que eles nos dão a certeza de que é preciso pensar na aceitação da angústia como fonte do pensamento - da angústia como síntese de lógica e de instabilidade, o que poderá levar-nos a uma luta contra a desconversa, política e literária, que nos cerca a todos, nestes tempos de muito discurso e pouca mudança.
A mais recente edição de "O processo", de Franz Kafka no Brasil, é da Companhia das Letras. Tradução e posfácio de Modesto Carone. Capa de Hélio de Almeida sobre desenho de Amilcar de Castro. Revisão de Isabel Jorge Cury e Ana Maria Barbosa.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 27/12/2005