No princípio era o mercado. No princípio e também por todo o sempre que veio depois. Base de um avanço e de um encontro, chão do homem já civilizado, nada supera o mercado como elemento aglutinador por excelência das comunidades que, mesmo heteromorfas quando unidas por interesses e idiomas comuns, precisam de outros pontos de união e reunião, e de permutas, de entendimento eventual e de trocas de produtos. No princípio era o verbo, e este se exercitava comunalmente nos lugares de compra e venda, em que a necessidade absoluta de comunicação aguçava o raciocínio, despertava idéias e provocava planos itinerários.
Único entre os idiomas criados a partir do latim, o português adotou o mercado como ponto de referência para o seu dia-a-dia. Numa divergência em relação à nomenclatura dos dias da semana das línguas neolatinas, do alemão, do inglês, dos falares da Escandinávia, abandonou o português as divindades pagãs como patronas da labuta diária. Qualquer que tenha sido a origem, a verdade é que os dias da semana portuguesa são dias de mercado, dias de "feira".
De segunda-feira a sexta-feira, a indicação normativa da semana repousa sobre a "feira". Os dias antigos - Lunae dies, dies Martis, dies Mercurii, dies Jovis, dies Veneris - homenageavam a Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter e Vênus, e continuaram na maioria dos idiomas da Europa a ter o mesmo caráter: lunes, martes - ou lundi, mardi - ou monday etc. Inclusive o dia máximo, o domingo, Dia do Senhor para os novos tempos cristãos, manteve sua vassalagem ao Sol, deixando o Senhor de lado e sendo sunday, sontag etc.
O livro de Arno Vogel, Antonio da Silva Mello e José Flávio Pessoa de Barros - "A galinha d'Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira" - surge como ápice de uma série de estudos que, iniciada sob muitos aspectos por Nina Rodrigues, contribui para dar consciência a uma identidade nacional brasileira que nos afirma como povo e como nação. Colocam os três autores, nesse livro, o mercado como início de tudo. Sabem que "uma viagem ao mundo afro-brasileiro começa no mercado".
Na linha da sacralização de objetos e animais, o bicho de sustento se transforma em símbolo e, como os deuses se alimentam - e revelam preferência por tal ou qual produto ou comida - a obrigação de "dar de comer ao santo" eleva a importância simbólica do vegetal ou animal preferido. Assim penetrou a galinha d'Angola no seleto rol da sacralidade afro-brasileira.
Os bichos sacramentais podem ter vários nomes e, no caso da galinha-d'Angola, conforme analisa o livro de Vogel/Silva Mello/Pessoa de Barros, apresenta um vasto leque de denominações, de "guiné" e "galinhola" a "pintada", "tô fraco" e "conquém". Essa tendência à sacralização geral da natureza, com plantas, animais e objetos ganhando nacos de sacralidade, foi amplamente estudada por Mircea Eliade, o escritor romeno a quem devemos uma extensa obra de estudos sobre "a essência do sagrado".
Em discurso que fiz num congresso internacional de escritores realizado em Barcelona, discutia-se sobre homens que haviam influenciado a cultura européia nos últimos 50 anos. Quando chegou minha vez, ponderei que dois homens me pareciam básicos em nosso tempo: o homem do sagrado e o homem do mercado. E eles eram Mircea Eliade, autor de "O sagrado e o profano" e Jean Monnet, o criador do Mercado Comum Europeu.
No livro sobre a galinha-d'Angola de novo se misturam o sagrado e o mercado. E essa mistura se dá num contexto brasileiro, num ambiente que é nosso, mas também da África e de toda as sociedades que - indígenas, européias, libanesas, japonesas, armênias, indianas, polinésias - hajam influído na formação deste País que revela ser mestre do sagrado e do mercado.
"Galinha d'Angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira", de Arno Vogel, Marco Antonio da Silva Mello e José Flávio Pessoa de Barros, tem a marca editorial da Pallas. Ilustrações de Raul Lody. Capa de Leonardo Carvalho, foto de capa de José Medeiros.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 25/10/2005