Nascido em 1905, foi nos anos 30 do século passado que o nome de Érico Veríssimo começou a figurar como sinônimo de literatura brasileira. Depois de romances que, no Brasil e no exterior, revelaram nele um grande talento de narrador - inclusive através do contraponto de "Caminhos cruzados" e do traço romântico de "Olhai os lírios do campos" - foi ele de tal maneira se assenhorando, gradualmente, de todos os segredos inerentes à arte de Cervantes, que se preparou para chegar, em "O tempo e o vento", à posição de grande romancista de um tempo.
Nele, mais do que o drama de pessoas, mais do que a história de uma família, o que narra é a tragédia da formação de uma terra, de uma cidade, um país, num levantamento da permanência de um espírito capaz de criar raízes e superar vidas individuais. Nele se concentram 200 anos da história do Brasil (de 1745 a 1945), em que, aliada à utilidade ou inutilidade das coisas, o autor se fixa na grandeza de existir e de agir.
Dos cinco volumes de "O tempo e o vento", os três últimos, chamados "O arquipélago", narram acontecimentos que vão da revolução de 1923 até o fim do Estado Novo, em 1945. Tenho insistido na peculariedade de acontecimentos recentes caberem com mais facilidade na ficção do que na história propriamente dita. Independente de alentados livros, baseados na realidade, sobre Getúlio Vargas, é nos romances que podemos vê-lo sob aspectos novos, por exemplo em tão diferentes entre si como "A lua caiu", de Benedito Valladares, e "O arquipélago", de Érico Veríssimo.
A razão para isto pode ser clara. Falta-nos serenidade para a história do quase atual, que muitos de nós acompanhamos em nosso tempo de vida. Na ficção, ficamos à vontade em face de opiniões que personagens, inventados pelo narrador, externam a respeito de Getúlio, Oswaldo Aranha, Bernardes, Washington Luís, porque o personagem assume, no romance, um caráter de vida que o torna isento diante de pessoas de verdade. O personagem fictício pode conhecer a verdade da ficção.
A revolução assisista de 1923 é motivo para algumas das melhores páginas de "O tempo e o vento". A força das descrições de Homero situavam-se às vezes em pormenores de completo realismo, principalmente nas cenas de guerra. Como no trecho em que o Poeta, depois de afirmar que um guerreiro tivera uma espada enterrada no ventre, conta que ele caminhou segurando os próprios intestinos a fim de que não caíssem. Algumas descrições de "O arquipélago" são assim.
Toda a narração do movimento revolucionário, em que o velho Licurgo, Rodrigo e Toríbio percorrem o interior do Rio Grande, é de extraordinário vigor, como na do ataque a Santa Fé, com os detalhes de gente que morre desta ou daquela maneira, sob um cavalo, atravessada de tiros, parada ou numa corrida.
A Coluna Prestes, de que Toríbio participa, revela o método ficcional de Érico Veríssimo da melhor maneira possível. Mostrando uma caminhada que percorrera todo o Brasil e de movimento que antecederam a subida dos gaúchos até o Rio de Janeiro, analisando a revolução de 32, o levante comunista de 37 e a presença de Rodrigo e sua família nos 15 anos da hegemonia getuliana no País, nem por um momento se afasta o romancista de Santa Fé. É de lá que tudo surge. O ponto de partida de toda a narrativa é a pequena cidade de Santa Fé. A Coluna Prestes não entra, assim, diretamente, no romance, mas faz parte das tranqüilas rememorações de Toríbio, em seu regresso.
A Constituição de 34, o golpe de 10 de novembro, a entrada do Brasil na guerra, o 29 de outubro de 1945, quando Getúlio foi retirado do poder, a campanha presidencial de então, com Dutra, o Brigadeiro e Fiúza de candidatos, tudo aparece no livro. Na medida em que os Cambarás melhoram de vida e sobem na política e Santa Fé se civiliza, os marcos do século XX entram no romance. Os primeiros automóveis começam a substituir os carros puxados a cavalos. Surgem os primeiros integralistas na cidade, em geral descendentes de alemães, e um comunista, Aarão Stein, um dos grandes personagens do romance. A influência do cinema começa a se mostrar em tudo.
Os tempos de Tom Mix, Nita Naldi, Pearl White, Rodolfo Valentino, o de John Gilbert, modificam os hábitos dos santafezenses. Organizam-se clubes para homenagear Valentino e, quando de sua morte, moças e solteironas mandam celebrar missas por alma do artista. Isto aconteceu em todo o Brasil, não só em Santa Fé, mas em Ubá, MG; em Jaú, SP; em Itabuna, BA; em São Luís, Belém e Manaus. O fonógrafo, o gramofone, o rádio, tudo entra a quebrar solidões ou a acentuá-las.
Quase na última página do romance, às nove horas da noite do Ano Bom, um grupo de moças promove uma reunião no palacete dos Teixeira para eleger a diretoria do "Clube das Fãs de Frank Sinatra", que devia tomar posse "ao raiar esperançoso de 1946". A partir dessa continuação - que leva à frente a agremiação das viúvas de Valentino e das admiradoras de John Gilbert - faz Érico Veríssimo um resumo de sua gente, com seus temores e esperanças diante de um novo ano.
Romance, no seu melhor sentido, é isso mesmo que Veríssimo cria. Com esta grandeza de perspectiva, esta nitidez de traços nos personagens, esta violência de cenas, esta segurança de técnica, este entrelaçamento de realidade com ficção, esta rude generosidade de concepção e realização literárias.
A obra de Érico foi, durante muitos anos, lançada pela Globo de Porto Alegre, editora também de Balzac e Proust completos em português. No momento, a Companhia das Letras é responsável pela edição de todos os livros de Érico Veríssimo.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 13/09/2005