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Ocasião um pouco tensa

 

Não sou muito bom em questão de férias. Na verdade, férias mesmo, com tudo a que o sujeito tem direito, acho que jamais tirei na vida. Desde pequeno, por exemplo, meu pai encarava as férias escolares como o perigoso ingresso numa vida de vagabundagem impenitente, de maneira que, apesar de me permitir jogar futebol e tomar uma folguinha aqui e acolá, sempre me lembrava que eu não estava fazendo nada de produtivo e, portanto, solidificando um caráter duvidoso e contribuindo para um Brasil cada vez pior, convicções que nunca me abandonaram. Nas férias, a depender do humor dele, eu era obrigado a copiar sermões de Vieira com boa letra, decorar trechos dos Lusíadas, tirar letras de canções francesas na vitrola ou, aos dez anos de idade (juro a vocês, quem não acredita é porque não conheceu meu pai), ler e comentar os Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola.


Depois de mais crescidinho, como agora, dir-se-ia que eu teria melhorado. Melhorei nada, piorei muito e venho piorando a olhos vistos, a ponto de, hoje mesmo, comunicando aqui que vou entrar em férias, já ter estendido a mão para o telefone umas quatro vezes, a fim de dizer ao editor que desisti da idéia, fica para o próximo ano, ou qualquer coisa assim. É sempre uma luta, porque me persegue um indivíduo baixote e desagradável, que se posta a meu lado o tempo todo, me recriminando incessantemente por não estar fazendo nada. E olhem que eu sou baiano e itaparicano e, por conseguinte, devo ter uma carga fortíssima de genes de não fazer nada, mas não adianta. Ele não sai de meu pé. "Bonito hem?" chacoteia ele, com intolerável desdém. "Pai de família, sem nada pra deixar para a viúva, com uma conta ridícula no banco e aí de papo pro ar! Depois se queixa do Brasil, quando mesmo é o pior exemplo da irresponsabilidade, da preguiça e da falta de iniciativa que levam o país a esta situação! Por que não aproveita o tempo vago e monta uma banquinha de camelô para faturar pelo menos uns trocados ? Por que não escreve uns folhetinhos de cordel para vender na feira de São Cristóvão ? Por que não arruma a bagunça do escritor ? Por que..."


É um inferno. E o pior é que obedeço e, se vocês pensam que vou entrar em férias mesmo, estão muitíssimo enganados. As férias são somente do jornal, porque a pilha de trabalho amontoada aqui ao lado desafia em meu peito a própria morte. Bem verdade que vou viajar uns dias e dirão que estarei esbanjando alguns dos meus milhões em esbórnias européias. Pois sim, vou é voltar a Portugal mais duas vezes, e para trabalhar. Primeiro à Póvoa do Varzim, onde sempre poso ao lado da estátua de Eça para ver se ele me passa alguma coisa e ele nunca passa e perco todas as minhas moedas nos caca-níqueis do casino (assim mesmo, com um esse só, como escrevi aqui da outra vez e me emendaram ; para os portugueses, "cassino", com dois esses, deve querer dizer alguma coisa impublicável, a julgar pela cara que eles fazem quando ouvem a palavra).


Depois à feira do livro em Braga, onde já me preparo para proferir inanidades sobre a diferença entre erotismo e pornografia e trocar as mesmas risadinhas fesceninas com minhas velhotas de estimação. Tudo trabalho e ainda me darei por muito feliz se tiver a oportunidade de comer um guisadinho de picas-no-chão, feliz apelido dado em Portugal ao que chamamos aqui de galinhas caipiras, as quais, obviamente, picam no chão restos de comida, baratas, lagartixas, e outros acepipes que as tornam tão saborosas. Isto tudo para não falar do estado de nervosismo em que vou ficar, pois sempre aprontam alguma coisa, quando me ausento. Da última vez, como vocês viram, foi o derramamento de óleo na Baía de Guanabara. Agora pode ser muito pior e não vou ter um minuto de sono tranqüilo, porque, se desistiram do "fora, FHC" como solução democrática para os nossos problemas, em vez disso resolveram instituir o fuzilamento. Pronto, de fato "fora, FHC" soava como golpismo, um ataque inaceitável às instituições e a um presidente legitimamente eleito, não ficava bem. Por conseguinte, propõe-se o fuzilamento. Não me lembro de presidentes fuzilados na História recente (a não ser por meios informais, como de vez em quando os americanos gostam), de maneira que não deixa de ser uma visão original. Lamentavelmente para os defensores da idéia, temo desapontá-los, mas, da mesma forma com que fui contra o "fora, FHC", sou ainda mais contra o fuzilamento. Quem diria, hem., o dr. Brizola e o deputado Bolsonaro perfilham a mesma idéia e, apesar de tudo, não acho justo que, hoje em dia, no Palácio do Planalto, pronunciar a palavra "parede" na presença do Homem, notadamente em sua forma aumentativa, seja considerado uma gafe imperdoável. Há limites para tudo.


Não, não creio que a idéia do fuzilamento vingue, embora saibamos que tudo entre nós é possível. Pode ser até que, quando eu voltar de Braga, a prática já se tenha estendido a outras áreas de atividade e receio que sofrerei pesadelos em que, depois de sentenciado por uma comissão de críticos literários, me amarrarão num poste à entrada da Academia me darão um último cigarrinho, me vendarão os olhos com as folhas dos originais de meu último (último mesmo) livro e me despacharão desta para pior. Não, não farão isso, é tudo maluquice minha, por causa de meu trauma de férias. Tirarei férias como todo mundo mais e estarei de volta a este prestigiado espaço, se não erro nas contas, no próximo dia 12 de março. Isto, naturalmente, como preveria meu pai, na hipótese de o jornal não resolver me demitir, ao chegar à conclusão de que não faço a mínima falta. É isso, claro, vão me demitir, bem que eu resisti a esse negócio de tomar férias. Esta vida é muito insegura e acho que vou garantir logo uma colocação numa tasca de Braga, por precaução. Mas os poucos entre vocês que sentirem saudades minhas não tem com que se preocupar, pelo menos uma cartinha de leitor o jornal de vez em quando me deixará publicar.


 


O Globo - Rio de Janeiro - RJ, 06/02/2000

O Globo - Rio de Janeiro - RJ,, 06/02/2000