Na Grécia e em Roma, consistia a missão do historiador em narrar os acontecimentos memoráveis. Obra de arte, e não de ciência, a história se escrevia geralmente para perpetuar, encarecendo, os feitos militares, ou políticos; e seu principal merecimento estava em reproduzir tradições e crônicas, muitas vezes infiéis, sob os primores literários do estilo descritivo. Dionísio de Halicarnasso nota uma certa semelhança entre a forma animada e pitoresca da História de Heródoto e a dos poemas de Homero. A profunda concisão de Tucídides e a perfeição ática de Xenofonte fizeram da História da guerra do Peloponeso e da Retirada dos dez mil, inimitáveis modelos de narração. Salústio, de quem dizia o poeta Marcial primus romana Crispus in historia, exige do historiador, como primeira condição de sucesso, “uma linguagem à altura dos acontecimentos”. Sem embargo das suas qualidades de homem de ação, dos seus dotes de incomparável cabo de guerra, César foi exímio na gramática e na retórica; e tão rigoroso era o seu classicismo, que aconselhava a evitar as expressões novas ou incorretas, com a mesma solicitude com que o marinheiro deve fugir das penedias. É por isso que Cícero, segundo o testemunho do Suetônio, admirava o estilo puro dos Comentários, ao ponto de recomendar que ninguém “bordasse sobre essa talagarça”. Tito Lívio é a eloquência romana: tendo vindo já muito tarde quando a liberdade era apenas uma tradição para exercitar os seus talentos oratórios, e achando interdita a tribuna das arengas forenses, transportou o rosto para as Décadas, e, no dizer de Taine, “il fut historien pour rester orateur”. Quinto Cúrcio, um simples teórico, a nenhum escritor cede na descrição das batalhas. A energia, a profundeza e o brilho do estilo de Tácito, que “a poesia, o ódio e o estudo inflamaram e sombrearam”, só se encontram uma vez na história.
Mas, sob as formas atraentes, ou empolgantes, dessa consumada arte de descrever, não se procure, pois frequentemente seria vão esforço, apurar a fidelidade das informações, inquirir a verdade dos fatos. Não se observavam, porque se ainda não conheciam, os cânones da heurística, da diplomática e da crítica de interpretação, sem os quais ninguém hoje se aventura à árdua tarefa da historiografia. Raros historiadores, ao reconstruírem os fatos políticos e militares da vida de um personagem, de uma família ilustre, ou de um povo, em determinado período (e cifrava-se nisso a História), procediam a um escrupuloso exame das provas, ou se davam ao ímprobo labor de cirandar meticulosamente os documentos. Quão poucos poderiam repetir, convencidos, as palavras de Tucídides: “No que toca à verdade dos fatos, diz o autor da História da guerra do Peloponeso, não dei crédito às primeiras pessoas que encontrei, nem às minhas impressões pessoais; narrei somente os acontecimentos de que fui espectador, ou sobre os quais adquiri informações precisas e de certeza absoluta.” Na Anábase, Xenofonte descreve fatos de que foi testemunha, porquanto fez parte da expedição de Ciro, o moço, a qual comandou depois da morte de Clearco, e por isso a sua narrativa se aceita como verdadeira; mas, na Ciropédia, tanto desdenhou a verdade, que é hoje opinião unânime não passar a história de Ciro de um romance moral. Em verdade, aquele jovem príncipe, dotado pela natureza de todos os encantos imagináveis do espírito e do corpo, educado no seio de um povo singular, que a tudo antepunha a utilidade pública, e de tal arte formava o coração de seus filhos, que estes não cometiam jamais atos censuráveis, nem tinham nunca motivo para corar; aqueles bárbaros, tão zelosos cultores da justiça, que nas escolas só ensinavam as normas do Direito, tão imbuídos dos preceitos da mais pura ética, que escrupulosamente praticavam todas as virtudes mais tarde preconizadas pelo Cristianismo; aquele perfeito e elevadíssimo estoicismo, que nos faz antever em cada persa, sectário da religião mazdeísta, o mais bem acabado protótipo do místico medieval; tudo isso por certo pode constituir o ornato e o ensinamento moral de um livro destinado à educação da juventude, mas destoa profundamente da severidade do historiador. Se, para escrever a Retirada dos dez mil, Xenofonte fez de Tucídides o seu modelo, quanto à fidelidade da exposição, na Ciropédia imitou o Pai da História, o qual com fábulas e lendas, entretecidas nos fatos, compôs os seus nove livros, consagrados às nove musas, e que mais se assemelham aos cantos de uma epopeia do que aos capítulos de uma História.
Não obstante o manifesto desdém de Quintiliano, ao aludir às histórias gregas, os historiadores romanos não foram menos descaroáveis para com a verdade. Dificilmente compreendemos hoje o modo como Tito Lívio se preparou para escrever a História, a sua absoluta ausência de curiosidade quanto aos documentos e testemunhos com que devia cimentar as suas narrativas. Era-lhe fácil ir ao tesouro público e ao templo das Ninfas, para ler sobre as tábuas de bronze as leis régias e tribunícias, os antigos tratados celebrados com as nações vencidas pelo povo romano, os decretos do senado e os plebiscitos; cumpria-lhe, ao menos, recorrer aos anais preparados pelos pontífices, que minuciosamente foram anotando todos os acontecimentos merecedores de transcrição na história romana; mas Tito Lívio teve por indigno de si proceder a essas pesquisas, aliás tão fáceis a um cidadão romano; nem sequer visitou os lugares onde se passaram muitos dos feitos militares, por ele descritos. Daí os equívocos, os erros, as falsidades, que abundam nas Décadas. Salústio escreveu somente para revelar a admirável perfeição do seu estilo, e por isso “explorou a História, como se fora a sua província de África, como egoísta e artista de gênio”, tratando apenas dos fatos suscetíveis de descrições brilhantes pela forma.
A História, para os gregos e romanos, é um gênero literário. A amplificação oratória, as ficções, o maravilhoso épico, inçam as narrativas, desfigurando os fatos, e subtraindo-os à justa apreciação dos mais claros e seguros entendimentos. O que constitui a sedução da História na Antiguidade é a língua, o estilo, a arte da composição, a movimentação dramática, fonte inesgotável de emoções e de prazer, a nos mostrar, em quadros animados da mais vívida eloquência, as grandes e fortes virtudes do heroísmo e do patriotismo.
Alguns historiadores desse período alimentavam a pretensão de fazer da História um vasto repositório de lições políticas e morais, a “mestra da vida”. Políbio e Plutarco foram insignes no gênero. Já Xenofonte tinha sido um iniciador, e Salústio fez preceder a cada uma de suas obras (Catilina, seu Bellum catilinarium, e Jugurtha, seu Bellum jugurthinum) um discurso da mais enaltecida moral, tão destoante da vida de quem foi expulso do Senado por suas escandalosas imoralidades.
A Antiguidade clássica não fez da História uma ciência. Nem quanto a essa doutrina que, muitos séculos depois, se chamou a Filosofia da História, conseguiu mais do que rudimentar e grosseiro esboço. Apenas o gênio profundo de Tucídides teve uma percepção fugaz das leis a que estão sujeitos os fenômenos sociais: acreditava o autor da História da guerra do Peloponeso que seu estudo seria útil a todos que quisessem, partindo do conhecimento dos fatos passados, compreender os fatos futuros, que, “segundo as leis humanas serão semelhantes, ou análogos”. Mas, lançadas acidentalmente essa e outras observações de admirável justeza, o historiador grego prossegue em sua narrativa, sem induções, sem sistematizar os fatos, explicando, quando muito, os acontecimentos como um político, pela natureza das instituições, pelo papel desempenhado pelos partidos, pelo conflito dos interesses, pelo jogo das paixões, pela eloquência dos homens de Estado e pela tática dos homens de guerra. Ainda é a personalidade humana, a vontade individual ou coletiva, que ocupa a cena da História, como em Heródoto. Não se nota mais a sensibilidade ingênua, a imaginação juvenil de Heródoto, para quem a queda de um raio sobre os bárbaros reunidos junto aos muros do templo de Minerva Proneia, e o despenharem-se com fracasso dois rochedos do cume do monte Parnaso, são os maiores prodígios, os mais portentosos acontecimentos que pode narrar um historiador. O autor da História da guerra do Peloponeso não se eleva às causas naturais dos fatos, nem nos dá as leis a que aludiu no começo de sua crônica, em um rasgo assombroso do gênio. Continuador do método histórico de Tucídides é Políbio, que procura explicar a superioridade política e militar de Roma, comparando-lhe as instituições com as dos outros povos. Mas, toda a filosofia de Políbio está condensada nesta fórmula: “Cumpre estudar a constituição de um Estado, como a causa primordial dos bons e maus sucessos em tudo. É dessa constituição, como de uma fonte, que derivam as empresas e seus efeitos.” Salústio, Tito Lívio, Tácito, todos os historiadores romanos, nos dão uma única explicação da grandeza e da decadência de Roma: a cidade cresceu, elevou-se, dominou, em consequência de suas virtudes e por uma predestinação divina; decaiu, perdeu a liberdade e o império do mundo, em consequência da dissolução dos costumes, produzida pelo luxo. Não passa dessa rudimentar consideração a Filosofia da História em Roma.
Não se pretenda tampouco descobrir, nos historiadores gregos e romanos, a coordenação metódica dos fatos, a sistematização científica dos elementos preparados pelo historiador, para as generalizações das ciências sociais. Taine caracterizou bem a História, tal como foi compreendida pela Antiguidade clássica, dizendo que ela nos oferece unicamente uma sucessão de acontecimentos, e não classes de fatos. Preocupados com os feitos bélicos e as ações dos políticos, os historiadores do período greco-romano poucas ou nenhumas informações nos ministram sobre a indústria, o comércio, os costumes domésticos, a religião, a ciência, as letras, as artes liberais e mecânicas, sobre todos aqueles fatos estudados hoje pelos historiadores, como o conteúdo principal da História.
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(É a História uma ciência?, 1900)
A TEORIA DE IHERING
Na teoria de Ihering não há lugar para um Direito ideal. O Direito positivo nasce da luta dos interesses. Entre Direito e verdade nada há de comum. O que determina a promulgação de uma nova regra de Direito é o aparecimento de um novo e momentâneo interesse. Ainda neste ponto o ensinamento de Ihering não se conforma com os fatos. Constantemente vemos condenada pela opinião dos competentes uma instituição, ou preconizada a necessidade de promulgar normas jurídicas sobre uma série de atos que escapam à sanção do direito. Nada mais comum do que julgar uma sociedade que certas leis precisam ser reformadas. Qual o critério que nos guia ao formarmos esses conceitos? É a observação dos resultados colhidos da aplicação de um dado instituto jurídico que nos revela que o legislador, ao promulgar a lei, não apreendeu uma necessidade social: ou a dedução de uma verdade científica do domínio da Antropologia, ou das ciências sociais particulares, que mostra que uma condição de vida e desenvolvimento social deve ser assegurada pela coação social. Também a sociedade se modifica. Como organismo, ou ser vivo, que é, passa por uma constante evolução, e a cada período de seu desenvolvimento se liga uma série de necessidades peculiares. Assim, ao lado das necessidades comuns a todos os organismos sociais, constantes, permanentes, há outras próprias de cada fase social, o que faz que ao lado dos princípios e das normas jurídicas universais e imutáveis haja instituições variáveis. Nem se diga haver contradição entre esta verdade e o conceito de que o Direito é um conjunto de leis científicas, que servem de base à formulação das normas jurídicas. O homem fisiologicamente está sujeito a leis imutáveis, e a leis peculiares a cada idade. A alimentação da infância não é a da juventude. A higiene da maturidade não é a da decrepitude. As verdades que aqui ficam expostas são a cada momento implicitamente reconhecidas pelos adeptos de todas as escolas. O sectário da escola teológica, quando coerente, ortodoxo, arquiteta todo o edifício do Direito sobre os alicerces fornecidos de uma lei destinada a assegurar uma das condições primordiais da existência social, ou a promulgação de uma norma jurídica que atenta contra essas condições, exclama: onde irá parar a sociedade, se as coisas continuam assim?! O racionalista harmônico entende que todo o Direito não passa de um desenvolvimento, ou antes aplicação, do princípio do justo, dado pela razão como faculdade intuitiva; mas, quando se lhe depara uma dessas inversões da ordem social, que põem em perigo a vida coletiva, por sua vez apela para o instinto de conservação individual e social, como o mais poderoso argumento contra o abuso perpetrado. No âmago de todas as doutrinas filosófico-jurídicas está o reconhecimento implícito de que o Direito nada mais faz do que formular normas de conduta cujo conteúdo é, ou deve ser, uma verdade científica, o conhecimento de uma condição de vida ou de desenvolvimento da sociedade.
Se na realidade a missão do Direito consiste em, verificada uma condição de vida e desenvolvimento da sociedade, dar-lhe a forma de norma de conduta e assegurar-lhe a realização pela coação do Estado, e se o processo de que dispomos para conhecer as condições de vida e desenvolvimento da sociedade se reduz ao método positivo, à indução e à dedução, porque não havemos de aceitar a doutrina que sistematiza as verdades implicitamente reconhecidas por todas as outras escolas? Quer-se saber qual a idade em que a norma jurídica deve permitir o casamento. A resposta de todas as demais escolas não tem a coerência e a precisão da que nos oferece a teoria científica do direito, a qual nos manda consultar a Fisiologia, parte da Antropologia que estuda os fenômenos da vida e as funções dos órgãos. Tem o legislador de fixar a substância de que se deve fazer a moeda. Cumpre-lhe indagar o que ensina a respeito a Economia Política. É mister promulgar uma constituição para um povo. Antes de fazê-lo, incumbe ao legislador constituinte examinar a história política dos povos, e apurar qual a organização do poder público que mais eficazmente tem garantido a liberdade, a ordem e o progresso. E assim por diante.
A formulação das normas jurídicas não é uma tarefa do empirismo, mas um trabalho científico. Não basta pesquisar isoladamente, e no momento de formular cada norma, ou de criar cada instituição jurídica, as verdades particulares que devem servir de molde à regra de direito. Importa elevar-se aos princípios, às verdades gerais fundamentais, espiritualizar a ciência pela Filosofia.
(Estudos de Filosofia do Direito, 1912)