Há cidades que também são personagens. E há escritores que as pegam de jeito para transformá-las em presenças quase humanas e colocá-las como partícipes de uma história erguida com palavras. Outra coisa não fez Jorge Amado ao afeitar sua Ilhéus para que nela Gabriela e seus companheiros de tempo vivessem suas aventuras. Antes dele, Manuel Antônio de Almeida criara seu Leonardo num Rio de Janeiro que nunca mais deixaria de existir exatamente como o romancista o havia concebido.
Livros recentes vêm dizer-nos que Brasília, com menos de 50 anos de inaugurada, já invadiu os escritos das gentes para se tornar personagem, e aí está e "Concerto para arranha-céus", de Ronaldo Cagiano, que no-lo prova. Seu estilo, descompromissado com gêneros literários definidos, leva-o a escrever páginas que surgem como narrativas, crônicas, análises, interpretações, "cahiers", num tipo de literatura que revela a presença do espectador participante.
Nem outra coisa era Rainer Maria Rilke em seus "cadernos": o homem que pensa, descreve e sente. Há, nessa posição, uma indisfarçável nota cartesiana. Mas, no caso, a dúvida normal de Descartes é substituída por um desejo de integração com a vida que passa.
No centro de um mergulho na cidade - o capítulo que Ronaldo Cagiano chama de "Paralelo 16: Olhar 43" - as palavras como que se jogam umas contra as outras. O autor pega Brasília por todos os lados, às vezes na linha lírica, outras parecendo pedir desculpas por o mundo ser como é, ou sugerindo que na certa há uma razão, uma explicação, um sentido, uma finalidade, e que, portanto, a culpa é nossa que não sabemos ver nem compreender.
Com este "Concerto", chega Ronaldo Cagiano, com justiça, a uma posição de vanguarda em nossa literatura, se por tal entendemos uma ousadia total na feitura de um livro, não só como linguagem e técnica de narrativa, mas também como coragem de dizer coisas e abrigar significados que ultrapassam a mesmice do enredo "chegou-fez-saiu". Pois o autor faz de tudo com as palavras, dominando-as com a tranqüila sensualidade de quem sabe que esse caminho pode terminar a qualquer instante.
Nem só de Brasília vive o livro de Ronaldo Cagiano. Pertencente a um nascedouro que vem de Cataguases - a cidade mineira em que, nos anos 20 do século passado, Ascânio Lopes e Rosário Fusco abriram caminhos - o primeiro na poesia e o segundo na ficção - outras cidades aparecem no "Concerto", mas é nas terras de Brasília que Ronaldo levanta uma série de enigmas fatigados ocultos no homem.
Das mais belas páginas do "Concerto" são as que homenageiam Samuel Rawet, o grande escritor brasileiro (nascido lá fora mas intensamente brasileiro), autor de livros com a altitude de "Contos do imigrante" e "O terreno de uma polegada quadrada". Samuel Rawet morreu na solidão de seu apartamento e seu corpo só foi descoberto uma semana depois.
Engenheiro que também era, integrara a equipe de Niemeyer na construção da cidade. No seu quarto de morte foi encontrada uma folha solta na qual Samuel escrevera: "Tenho grandes frustrações e decepções, e grandes euforias. Amo e odeio apaixonadamente. Uma vida intensa, difícil, saborosa. Acho a vida uma grande aventura. Espero que os idiotas me compreendam."
As novidades de Ronaldo Cagiano tem consistência e levam a efeito, entre nós, duas tarefas necessárias: a de dar tratamento trágico ao ridículo e a de juntar o grandioso ao grotesco.
"Concerto para arranha-céus" é um lançamento da Editora LGE, de Brasília. Editor: Antônio Carlos A. Navarro. Projeto gráfico de Marcus Polo Rocha Duarte. Coordenação editorial de Anna Cristina de Araújo Rodrigues. Capa de Marcus Cardoso.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 23/08/2005