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Aqui me tens de regresso

 

Tenho um fã aqui no Leblon, sobre quem só sei que o apelido é Gugu e que freqüenta botecos na Rua Humberto de Campos, e que, toda vez que me vê, junta as mãos, curva-se para a frente numa atitude de veneração meio oriental e o mínimo que faz é me chamar repetidamente de “mestre”. Às vezes ele também me beija as mãos. Trata-se de um homem meio careca, aparentando, acho eu, 40 e poucos anos. Pois bem, estou eu na Bartolomeu Mitre, aqui pertinho de casa, esperando um táxi passar, quando Gugu surgiu não sei de onde e começou a mesma rotina, só que desta vez com abraços e me beijando fervorosamente as mãos. Eu já tinha acenado para um táxi, que parou, e consegui fazer um sinal para o motorista para que ele esperasse que Gugu acabasse seus ritos de saudação. E Gugu, num rompante entusiástico, disse que não queria atrapalhar, porque estava vendo o táxi à minha espera e me tacou um beijo na bochecha. Agradeci atabalhoadamente, entrei no táxi e contrariando, como sempre faço, o lema de Henry Ford III ( never explain, never apologize - nunca explique, nunca peça desculpas), dei uma explicação ao motorista.


- Mal conheço esse rapaz - disse eu. - Mas eu sou escritor e ele gosta do que escrevo, de maneira que faz esse negócio todo que o senhor viu, até me beijar. Fico meio sem graça, mas não posso fazer nada, porque ele me parece uma ótima pessoa e só tem carinho por mim.


- Mas que bobagem, o senhor se preocupar com isso - respondeu o motorista. - Ele podia ser seu filho, seu neto...


- Meu o quê? Meu neto? Quantos anos o senhor acha que eu tenho, assim pela minha cara?


- Hummm - ele, me avaliando pelo retrovisor, enquanto esperava o sinal abrir. - Uns 70, 75...


- Hem?


- Tem mais? Bem, não parece, dou no máximo 76.


Fiquei indignado e, chegando ao consultório médico a que estava indo, me olhei num espelho. 75? 76? Bem verdade que, ao contar que tenho 60, ninguém nunca mais me disse “não parece”, mas 76? Examinei minha papada, olhei as rugas do pescoço, tentei dar um sorriso confiante para o espelho. O motorista só podia ser maluco, eu não tenho cara nenhuma de 76. Bem, 72, talvez. Também fumando, bebendo, perdendo noites como perdi, pago um preço. É, o cara podia estar me subestimando (ou superestimando, conforme o ponto de vista do observador), mas eu tinha de admitir que se tratava de uma fonte insuspeita, até prova em contrário.


Declarou-se uma guerra já em andamento e da qual antes eu apenas desconfiava. Não caminhar, correr ou andar de bicicleta - segundo lemos todos os dias, nos jornais e revistas - significa uma velhice caquética, tomar sol às sete da manhã numa cadeirinha de lona, assistido por um cuidador (profissão cada vez mais numerosa, à medida que aumentam os setentinhas e oitentinhas) que me limpe a baba do queixo a cada dois minutos, ou me tornar um velhote insuportável, beliscando traseiros de senhoras em público, dando gritos de Tarzan e contando mentiras deslavadas sobre minha carreira futebolística. Não, não, tenho que fazer o que me recomendam. Morrer, sim, pois todos morrem, mas morrer em perfeito estado de saúde.


Ponderei a grave decisão, verifiquei as condições do único par de tênis que jamais possuí, relíquia da última temporada calçadonista, e resolvi. Doravante andaria no calçadão todos os dias, o que venho fazendo com regularidade religiosa - e, ao contrário de todo mundo, me sentindo um horror depois da caminhada. Mas vou firme. Comprei um relógio desses de plástico, mas com um marcador do tempo transcorrido, para não andar nem mais um segundo do que o recomendado para minha idade e meu (des)condicionamento, ajusto-o bravamente no início do meu percurso e passo a marchar, em velocidade para mim vertiginosa.


O calçadão do Leblon continua o mesmo. Mudaram algumas coisas, mas, no geral, é tudo o mesmo. O capenguinha nunca mais apareceu, mas há um substituto em seu lugar, que também manca, embora menos acentuadamente, e também me ultrapassa com o mesmo garbo, diria até uma certa condescendência. A moça de saiotinho que andava de bicicleta sumiu, assim como nunca mais vi um senhor negro que fazia alongamento num dos bancos, aprontando caretas tão medonhas que eu evitava olhar para ele, a fim de não ter pesadelos atléticos. E, enquanto o tempo decorre e vou adquirindo forma menos ruim, continuo sem passar ninguém e sendo passado por todo mundo. Fico imaginando espectadores, sentados nos quiosques e comentando entre si “lá vai o homem-bala”, “será que ele ainda vai ter joelhos daqui a 500 metros?” e assim por diante.


Mas eu não me incomodo, não me deixo abater. Riram de Colombo, mofaram de Pasteur, ironizaram Einstein, nunca elegeram Balzac para a Academia Francesa e assim por diante. Por que não ririam do grande caminhante que, tenho certeza, serei, aos 80 (claro que vou chegar lá, quem caminha terá vida eterna, para não falar que já sou imortal), no pelotão da rabada dos caminhantes da terceira idade, em evento promovido pela prefeitura do Rio, que dará uma dentadura grátis a todos os participantes que concluírem o percurso? Vão rindo, pois ri melhor quem ri por último. E hoje, fisicamente um farrapo, mas psicologicamente um Napoleão em Austerlitz, comunico que passei alguém. Era uma velhinha empurrada numa cadeira de rodas, mas não interessa; ultrapassagem é ultrapassagem, as regras são claras.


 


O GLOBO em 13/01/2002

O GLOBO em, 13/01/2002