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Uma proposta modesta

 

Uma das poucas certezas sobre o jornalismo é a de que a ironia não funciona em texto para ser consumido por um público heterogêneo. Pede-se do autor uma definição imediata e concreta contra ou a favor de um assunto ou pessoa. Admira-se o panfletário que dá nome aos bois, nem sempre acertando com os bois e os nomes. Admira-se o humorista, que nem precisa acertar o boi e o nome, entre outras coisas, porque é um humorista.


Nem mesmo na literatura a ironia funciona, sobretudo quando ela ultrapassa o comentário marginal da narrativa, território em que Machado de Assis foi mestre. O bruxo era tão bruxo que só usava a ironia para o "caco" saboroso, sem se comprometer com a essência do texto, que era sério, até mesmo solene.


Irônico foi Jonathan Swift (1667-1745), que pouco se preocupou com detalhes, indo fundo na condição do homem e nas circunstâncias da sociedade. Sua obra prima, "As Viagens de Gulliver", tem o tom de farsa que a tornou clássica, impondo respeito acima de qualquer consideração moral e instalando-se na prateleira mais nobre da literatura universal.


O mesmo não acontece com "Modesta Proposta", agora relançada aqui no Brasil, em que Swift dá literalmente uma receita para acabar com a fome no mundo sem apelar para programas furados como o Fome Zero. Pega-se o filho de uma família pobre, entrega-se a uma família de recursos que engordará o recém-nascido até que ele complete um ano de idade e tenha carne bastante para ser comido por ricos e pobres.


Apoiado em testemunhos de povos que praticam o canibalismo, Swift elogia o sabor e as qualidades alimentícias da carne ainda tenra, melhor do que a dos frangos "al primo canto". Faz ainda outras considerações para o bem da humanidade em geral, partindo do ponto em que tudo o que fora feito até a sua época era insuficiente ou idiota. Dois séculos depois dele, poucos o entendem.




Folha de São Paulo (São Paulo) 27/08/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 27/08/2005