Muitas mansões tem a ficção, e em todas pode estar uma obra de arte. Nem sempre o romance e o conto se manifestam simplesmente como contadores de histórias, embora esta seja uma de suas mais altas prerrogativas. Existe a ficção percuciente, a que penetra no chão das emoções primitivas e não admite meias medidas no julgamento de seus personagens, a começar pelo retrato que possa traçar de si mesma, isto é, da história narrada e ao mesmo tempo daquele ou daquela que se responsabiliza pela narração. Assim vejo os contos de Beyla Genauer em seus três livros de páginas também confessionais.
Dos mais estranhos, dos mais violentos - e dos de maior força literária em nossa produção recente - são os livros dessa autora. Nela o ato de escrever está intrinsecamente jungido ao fato de ser mulher. O ato não surge naturalmente do fato, mas dele eclode, na realidade explode. Sobre todas as suas memórias de também personagem, deixa a autora cair seu látego, seu chicote de machucar lembranças e realidades. Em cada página, uma revolta; em cada revolta, uma denúncia. As histórias de Beyla Genauer são, do começo ao fim, uma defesa da mulher. A mulher de sempre e a mulher de hoje. Talvez a diferença não seja grande, apesar da maior liberdade feminina de agora.
Na realidade, continua a mulher a ser vilipendiada, condenada, machucada, amada/ não amada, afastada de qualquer escolha decisiva, empurrada para fora dos momentos de mudanças, dilacerada, perseguida em todos os sentidos, negada em seus desejos de ser ela mesma, enfim abandonada e jogada sozinha no silêncio de sua velhice. As exceções que existem, desaparecem diante da exclusão geral. A visão de Beyla Genauer penetra no íntimo de uma psicologia feminina, nos mistérios da condição de ser mulher, dona de uma existencialidade lateral de um sexo que parece ter nascido para não mandar no destino do mundo. Mesmo quando manda.
Nas páginas em que apostrofa os preconceitos contra a mulher, percorre também Beyla Genauer o mundo agitado e excludente das últimas décadas, no Brasil, em Israel, em Nova York, em Paris, em que existem sábios, amigos, noivos, maridos, amantes, artistas, com encenações de pessoa, bailarinas e músicas sinfônicas, festas com cenas de amor e de ódio, de ternura e desprezo, de vez em quando lançando palavras de condenação aos mitos do momento, políticos, estéticos, filosóficos, sexuais, jornalísticos.
Ao longo de sua caminhada pelos meandros dos séculos - o que morreu e o que apenas engatinha - fala de livros e escritores, menciona o Sabadoyle em que pessoas ligadas à cultura e ao livro freqüentavam a casa de Plínio Doyle aos sábados, no Rio de Janeiro, num verdadeiro panorama de um tempo que só não chamamos, como fez Rimbaud, de "Tempo de assassinos" porque temos a esperança de ajudar no aperfeiçoamento dos costumes da pequena parcela de tempo que nos cabe viver.
Como estilo, o de Beyla Genauer é de perfeita pessoalidade. Pega nas palavras com uma força que vem das entranhas mesmas da escritora, e atira-as na cara do livro, sem pensar em diminuir o ímpeto das denúncias que faz. O fato de ter sido uma excelente atriz de teatro - que interpretou grandes peças, inclusive de Tchecov, no Rio de Janeiro, em Israel e Nova York, aluna que foi de Stella Adler - influi na dramaticidade com que nos examina a todos, homens e mulheres de seu tempo, nas transformações por que viemos passando a partir das muitas guerras que tivemos depois de 1914.
As guerras mais recentes - como a do Kuwait, com o nome de Sádam Hussein ganhando as manchetes - aparecem em livros da autora, que se refere à imprensa desta maneira: "Vieram jornalistas do mundo inteiro, convictos de sua importância, megalomaníacos, certos de que sem eles não aconteceria nada.
Como é que o mundo poderia continuar se eles não notificassem os acontecimentos? As guerras não existiriam. O sol não nasceria. A lua se afogaria no mar. Nada seria projetado nas televisões do mundo, com seus cabos e vassouras."
Em três livros - "Galo de Chagall", "O lobo", e "Levantar vôo" - consegue Beyla Genauer retratar um tempo no que ele tem de mais trágico, o de uma solidão inserida na multidão, com cenas que poderiam ter acontecido em qualquer outra época, mas que, na de hoje, assumem caráter mais sério porque refletem uma série de pequenas tragédias cercadas por todo o conforto da tecnologia moderna. Tudo isto num estilo direto, castigante, sem desconversa, que, em determinados momentos, usa o palavrão e atinge o plano da ternura, apesar da convicção de que não há saída possível para a solidão de cada um dentro de cada um.
"Galo de Chagall", lançado por Massao Ohno Editor, tem capa de Glauco Rodrigues, ilustrações da própria autora e prefácio de Antonio Carlos Vilaça. "O Lobo" e "Levantar vôo" aparecem sob a égide da Editora Book-Link, um deles com capa de Carlos Scliar e prefácio de Olga Savary, o outro com capa de Beyla e "orelha" de Inez Barros de Almeida.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) em 04/02/2004