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Hora de esquecer os defeitos e ver o valor de Gilberto Freyre

 

Os que apostaram na transitoriedade da obra de Gilberto Freyre fizeram um mal negócio crítico. As reedições dos seus livros clássicos, e as edições quase inesperadas de textos inéditos ou talvez extraviados, apontam em direção oposta. Agora mesmo a Global Editora vem de lançar, em cuidadoso volume comemorativo dos seus 70 anos, nova edição do Casa-grande & senzala. A Editora da Universidade de Brasília, com a Imprensa Oficial de São Paulo, também entrega ao público de Gilberto Freyre quatro volumes certamente inesperados: Palavras repatriadas, China tropical, Americanidade e latinidade da América Latina e outros textos afins, e Três histórias mais ou menos inventadas. Eles foram reunidos e anotados por ninguém mais, ninguém menos, do que o qualificado gilbertiano Edison Nery da Fonseca. O quarto volume, de narrativas provavelmente desconhecidas, conta com inteligentes prefácio e posfácio do poeta e ensaísta César Leal.


É o Gilberto Freyre que tantos conhecem, e alguns poucos, cada vez menos, preferem desconhecer. É o escritor aberto, descontraído, sensível aos mínimos sinais da vida do seu país e da vida do mundo. Ele partiu da sociedade patriarcal brasileira: seus saberes difusos, seus prazeres escusos. E com um método ametódico, uma vontade quase anárquica, ele foi apreendendo e configurando a rede de relações inesperadas que identificam o projeto brasileiro.


Desde cedo as suas operações hermenêuticas puderam contar com o aval e o apoio do escritor, do imaginoso produtor de linguagem. A prosa, a vida, calorosa, colorida, oxigenavam o seu desconcertante conjunto interpretativo. A ociosa separação entre o escritor e o pensador sofreu aqui os seus primeiros abalos. Na verdade ela sempre decorreu de uma insuficiência crítica - a que consiste em retirar o pensamento da linguagem, ignorando a sua parceria constitutiva. E se é certo, como suponho, ser imprescindível levar em consideração a qualidade, a vibração, o apelo do texto, vem a ser perigoso desconsiderar este pré-requisito. Não vale sopa de pedra. E nesta matéria Gilberto é incomparável.


Já é hora de retirar as interpretações de Freyre, pensador ostensivamente relacional, das velhas e cansadas dicotomias de senhores e escravos, brancos e pretos, urbanos e rurais, e assim por diante. Mesmo porque o forte de Gilberto Freyre são as correlações, as trocas não apenas materiais porém imateriais, as infiltrações e os intercâmbios simbólicos, as jornadas do desejo, todas essas instâncias da alteridade que permaneciam escondidas ou emudecidas. Ou antes de tudo permaneciam proibidas pela moral prescritiva e inabilitadas pela nossa ciência social monodisciplinar.


Certa vez freqüentei no Recife um curso ministrado pelo autor de Casa-grande & senzala, que se ocupava do que ele chamara de ''rurbano''. Tornavam-se bastante visíveis as sobrevivências rurais no urbano e, em menor proporção, as perfurações urbanas no rural. É provável que o expansionismo da mídia eletrônica, seu poder homogeneizador, as suas fábricas de sonhos, a substituição do povo pela massa, tenham alterado o peso e o alcance desses componentes culturais. Mas não ao ponto de restaurar referências exauridas ou conceitos terminais. O que beneficiou aquelas posições pelo menos heterodoxas.


Gilberto Freyre se move no pólo oposto, no outro lado do academicismo insensível ao viés ou ao matiz. Por isto soube entender a aventura social, intercultural, interpessoal, urdida por sentimentos insólitos, traços imperceptíveis, inesperadas inclinações, recebendo, como previsível recompensa, a impugnação da academia de plantão. Ele prosseguiu celebrando o espetáculo humano, perto das pessoas e das coisas, sem se deixar atrair pela distância analítica, que em vez de distância era antes o abismo.


As leituras de Gilberto Freyre vêm em boa parte falhando, porque não conseguem desvencilhar-se do reducionismo ideológico e do estrabismo produtivista. A lógica das relações de produção atropela a ontologia da produção de relações. A ciência arrogante, burocrática, incolor, talvez performática, já condenou, declarada ou disfarçadamente, a possível cientificidade de Freyre. Preferiram desconhecer que um dos traços fundadores da interpretação gilbertiana reside na circunstância de que ele opera na fronteira das ciências e das humanidades, sem deixar que uma perturbe a outra. Não é o caso das ciências sociais pragmatistas. Sobretudo da economia que, ao menos na sua versão hegemônica, costuma ser excludente. Os analistas empíricos, e os declaradamente pragmáticos, têm dificuldade em reconhecer essa incessante correlação de forças.


O mundo que Gilberto Freyre criou, pluricultural e multiétnico, transgressor e, não raro, chocante, nunca foi a paisagem idílica e orgiástica, entregue à apologia tendenciosa. Freyre não vacila em apontar para a história da crueldade no período colonial. Ele nos falou de um Brasil existente. Se distribuiu os atores sociais com maior ou menor adequação, é outra coisa. Até porque esses atores se movem o tempo todo, segundo pressões materiais e impressões subjetivas. Também aqui Gilberto contribuiu para desmitificar as crenças epistemológicas das ciências sociais monodisciplinares. O que acontece é que elas jamais foram capazes de acompanhar a pluralidade das diferentes intervenções. Se Freyre fosse um sociólogo puro e duro jamais teria dado conta da diversidade brasileira, porque o sociologismo acadêmico tem se distinguido por irresistível inapetência diante do outro, do não-idêntico. O autor de Sobrados & mocambos pertence a família dos que conseguem ver, a uma só vez, a árvore e a floresta.


Gilberto Freyre leva a bom termo o descontraído elogio da diferença, o reconhecimento do direito de ser um ''outro''. Nunca, vale insistir, a diferença congenitamente dissociativa ou segregacionista, nem o diferencialismo predatório, porém o ''outro'' no seu vigor associativo e confluente. Por isso ele conseguiu equilibrar - um equilíbrio inevitavelmente instável - a força da cultura portuguesa da época, acompanhada da militância das ordens religiosas, a contribuição indígena, a lição africana, não somente nas artes, mas nas micro-tecnologias da vida cotidiana. Torna-se evidente que os processos emancipatórios somente são levados a bom termo com a precisa compreensão de diferenças imunes ao particularismo e à uniformização, ou uniformatação. Freyre pode ver tudo isso, ancorado no seu posto de observação na tradição, e, como dizia, ''para além do apenas moderno''.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 21/02/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 21/02/2004