Um dos mais veneráveis dramas de quem escreve regularmente é ver chegar a hora de perpetrar mais uma crônica ou artigo e não ter assunto. Eu, naturalmente, não sou exceção e, nestas mais de três décadas de jornalismo, já me encontrei nessa triste situação com mais freqüência do que gostaria de admitir. Existe a tradicional crônica sobre a falta de assunto, mas, menino metido a besta, prometi a mim mesmo, desde o primeiro dia, que jamais a escreveria. Tenho quase certeza - pois, com os escassos neurônios rateando cada vez mais, é imprudência confiar na vã memória - de que tenho me mantido fiel à promessa. Remexo aqui, remexo ali, enrolo alhures e algures e acabo atamancando alguma coisa. Hoje, contudo, estou com um problema bem diverso.
Entalamento de assunto, eis o meu problema. O carnaval já passou, a Quaresma começou e o nosso imenso Brasil se prepara, embora com a relutância habitual, a retomar o trabalho depois da Semana Santa, mas o assunto não vai embora, encravelhou-se aqui na caixa da idéia. Imagino que quase todos vocês já sabem qual é ele, do qual só estarei livre depois de exorcizá-lo. Pois é, perdão, leitores, mas ele é o carnaval que se foi. Tentei afastá-lo, porque não fica bem falar das próprias glórias, mas não tive êxito e, além do mais, o Estatuto do Idoso deve conter algum dispositivo que me dê cobertura. Todo mundo sabe que nós, idosos, às vezes nos tornamos meio chatinhos e manda a caridade que se exercite alguma indulgência quanto a isso, eis que talvez renda alguns anos a menos no Purgatório.
Acho que a maioria de vocês deve me ter visto na televisão, pois, segundo me contam, apareci em todos os noticiários. Certamente muitos não acreditaram que era eu mesmo, saracoteando em cima de um trio elétrico, na companhia estonteante de Margareth Menezes e ladeado pelos festejadíssimos conterrâneos Gil Ministro e Caetano de Santo Amaro, este último parceiro numa dançazinha de orixá que encenamos umas duas vezes, durante o desfile. Era eu, sim. Não vou dizer que estava nos meus planos, mas, quando o governador e o prefeito me disseram severamente que a Bahia esperava que cada um cumprisse seu dever e meu dever era subir no trio elétrico do Bloco da Cidade, não trastejei. Respirei fundo, me encomendei a todos os santos (que, felizmente, moram aqui mesmo e estão sempre à mão) e encarei.
No comecinho, que talvez vocês também tenham visto, me encolhi no fundo, mesmo porque tenho medo de altura e só quem subiu num trio elétrico é que pode ter noção do que lá se sente, assim como não faz idéia do carnaval baiano quem nunca o testemunhou pessoalmente, por mais que ache o contrário. Mas não era o dever completo. O dever completo era ir para a frente de combate. O ministro me chamou a atenção para esse fato e, depois de me benzer novamente, resolvi que não ia envergonhar Itaparica numa hora daquelas e fui. Fui e, orgulho-me em registrar, mandei ver. Os santos, que não costumam negar amparo aos necessitados, acudiram em peso, baixaram de bolo e logo eu parecia haver nascido em cima de um trio elétrico, sangue é sangue, terra é terra. Terminei achando pouco e perguntando se alguém podia me ceder um abadá para eu sair em outro bloco imediatamente e sumir na perdição até a quarta-feira.
E da missa vocês não viram, e não cometerei o despautério de contar, nem a metade. Antes eu, que esperava somente dar um pulinho lá para rever velhos amigos e lembrar os tempos em que pilotava um tarol nos ensaios do mitológico Bloco do Jacu, hoje finado mas imortalizado enquanto houver carnaval, tinha demonstrado meus dotes de passista na avenida, comandando as evoluções do bloco Chegando Bonito. Sorry , periferia, mas sambei (e criei a já famosa dança da bochecha, que depois mostro a vocês) durante umas cinco horas e, modéstia às favas, fui cumprimentado pelo criador do bloco, o legendário Waltinho Queiroz em carne e osso, porque minha contribuição garantiu nota dez em evolução, é o que estou lhes dizendo. Claro, cinco horas momescas, no meu caso, são somente um aperitivo e, mais claro ainda, fui esticar no camarote da não menos estonteante Daniela Mercury, de onde só me retirei depois que o pessoal da limpeza quase me varre por engano. E quando a outra estonteante Ivete Sangalo me mostrou as pernas na avenida e tive de ser contido pelos circunstantes? E quando os outros trios me saudaram e me jogaram beijos? E quando...
É tudo verdade, paciente leitor, encantadora leitora. Este ano, o carnaval baiano teve como tema “Viva o povo brasileiro”, título de um livro meu e mote para a indescritível misturada que cobria a cidade, estendido hospitaleiramente ao pessoal que chegou do Oiapoque ao Chuí, até porque somos todos brasileiros, e acolhendo a gringalhada em que a cidade no carnaval abunda. Faz uns poucos séculos, a gente aqui comia os gringos que apareciam. Hoje, é fácil observar, continuamos comendo, mas de forma bem menos traumática e não restrita aos da terra, pois quem quiser pode comer quem quiser, sem distinção de sexo, idade, cor, nacionalidade ou credo, contanto que a comida ou o comido concordem, o que geralmente é o caso. E o homenageado era eu, com direito, ah meu tempo, a bitoquinhas da linda rainha e das lindas princesas do carnaval e, mais importante ainda, a ser saudado, abraçado e beijado pelo povo nas ruas, o povo de todas as cores da minha terra, que me deu e me dá tanto e a que dou somente o pouco que posso dar. Desculpem, sim, prometo não voltar a contar prosa, mas espero que vocês compreendam, tudo isso só pode afetar o juízo e o meu está afetado, talvez para sempre. Afinal, a que glória maior posso aspirar?
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) em 29/02/2004