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Por que o prêmio José Ermério de Moraes foi para José Nêumanne

 

Aqui estão dois Nordestes: um é o Nordeste do doce, do massapê, da chuva grossa, do maracatu, da prataria, dos santos barrocos; outro, é o dos homens encoletados em couro, de rios secos, de chuva magra, dos xaxados, dos coronéis de boiadas de boi e de boiadas de voto, um mundo onde não há luxo, que o luxo não é de sertanejo.


Um é o Nordeste de José Ermírio de Moraes; o outro é o Nordeste de José Nêumanne.


O Prêmio José Ermírio de Moraes outorgado este mês a José Nêumanne, pela Academia Brasileira de Letras, está na sua 11ª edição. Por ele já passaram, entre outros, Roberto Campos, Wilson Martins, Evaldo Cabral de Melo, Cícero e Laura Sandroni.


A nordestinidade é, de nossa parte, um ato de convicção e constância, uma forma de vitalidade histórica. Com esse sentimento, exalto a Paraíba de José Nêumanne, ''pequenina e heróica'' de todos os tempos. Louvados sejam o Ponto de Cem Réis e a festa das Neves, o Treze de Campina e o bar do Onaldo, Vidal de Negreiros e o ''Velho Capitão'', as bagaceiras dos engenhos - tema para um dos maiores clássicos da língua portuguesa, escrito por um saudoso acadêmico - e Dom Vital, Zelins e Ariano, Celso Furtado e Augusto dos Anjos, a Borborema e o Cabo Branco, Elba Ramalho e o Teatro Santa Rosa, onde Gilberto Freyre fez a primeira conferência de sua vida.


Louvo o escritor José Nêumanne por não ter faltado com o seu esforço para que nada disso se apergaminhasse na memória dos homens.


Quando José Ermírio de Moraes, filho de viúva, deixou as comodidades de menino de engenho e a tradição do bacharelado em direito, largando-se para estudar engenharia nos Estados Unidos, traçou a sua história de valoroso tycoon da indústria brasileira. Não desatendeu aos deveres da cidadania. Fez-se político, senador e ministro de Estado. Declarou-se compromissado com o desenvolvimento social e não só com o crescimento econômico. Deu à família essas responsabilidades e refiro três exemplos da sua boa sangüinidade: a Beneficência Portuguesa, a AACD e um Prêmio literário que tem o seu nome.


Nesta edição do Prêmio José Ermírio de Moraes, foi difícil escolher um ganhador. De um lado, havia o culto à democracia como face ostensiva de José Nêumanne. Do outro, o espetáculo de preservação da história, em livro admirável de Arno Wehling: Direito e Justiça no Brasil Colonial.


Acredito que não fomos pelo caminho rigoroso do mérito, pois daria empate entre a democracia e a memória. Fizemos uma opção, diante de tantos merecimentos de parte a parte.


Enfileiro alguns aspectos relevantes em José Nêumanne: o senso de visão ampla, na antologia dos melhores poetas brasileiros do século; e a astúcia de unir Bob Dylan, os Beatles e Caetano Veloso, como embrulhara num mesmo saco Barcelona e Borborema, Gaudi e o forró.


O crítico Wilson Martins diz de O silêncio do delator, o livro que consagramos, ter inovado o romance contemporâneo tanto na temática quanto nas técnicas narrativas.


E o acadêmico Antônio Olinto, louvando o livro, observa que, para entender qualquer realidade, é preciso atentar para a sua correspondente ficção, que é uma verdade. E dela vem.


José Nêumanne produziu o silêncio sonoro do seu protagonista. Diz, fingindo que está calado. Quase lembra a sentença perfeita de Eduardo Portella: o silêncio é o mais dizer, é o que se diz naquilo que se cala.


Acredito que o jornalismo facilitou a José Nêumanne conhecer o homem e isto facilitou-lhe a arte no romance. Ele transferiu o datado para o transtemporal.


Sua intolerância à tirania tem simetria com o que falou Roberto Romano sobre O silêncio do delator, ao alegar que os tiranos odeiam o riso pois o riso é estranho e intolerável.


Por isso, José Nêumanne deve continuar, como é do seu jeito de ser, transgredindo tudo aquilo que lhe parecer ''direitinho''. Sempre encontrará um cânone em sua rota, pois sem o cânone só haverá o caos. E do caos ele não gostaria. Espero um ensaio seu e isto é um afetuoso desafio.


O passado autoriza a nós, acadêmicos, recusar anemias no fazimento do presente e na formatação do futuro. O novo nos interessa. A tradição da nossa Academia não é feita de ancoragem de horas, mas da libertação da palavra. Sem pressa e sem descanso.


Não somos nem esféricos, nem monolíticos. Temos as assimetrias da existência, mas sem falhar na missão histórica. Haveremos de conciliar o apolíneo com o dionisíaco.


A imortalidade que existe na Academia Brasileira de Letras é a da palavra. Premiamos agora a palavra de José Nêumanne e cuidamos em honrar a memória de José Ermírio de Moraes, um homem de palavra.


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 14/9/2005