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A herança de Rosa

 

Dentro de dois anos comemoraremos o cinqüentenário do lançamento de "Grande sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Deverá a data ser lembrada em ciclos de conferências e seminários sobre o livro e a dimensão da obra rosiana como um todo no contexto da cultura brasileira. Haverá também uma nova edição do romance, com estudos e análises.


Ao publicar, em 1956, seu livro maior, já havia Rosa provocado espanto nos meios literários do País com o volume de contos "Sagarana", que saíra em 1946. Nesses dois livros estava o povo de nossa terra por inteiro, representado por um grupo de heróis de modo geral sem ligação com o litoral do País.


Vale a pena que se chame à atenção para esse particular, porque os heróis de Rosa, embora diferentes em quase tudo dos personagens que Euclides da Cunha surpreendera em Canudos, têm com eles um parentesco: o de que os dois ambientes mostram um Brasil longe do mar, sem máscaras e sem enfeites.


Veja-se, no caso de Rosa, a importância, digamos geográfica, em que se planta seu livro. A região do São Francisco, perto do Urucuia, pegando o norte de Minas, o sul da Bahia e o leste de Goiás, é, sob vários aspectos, o centro do Brasil.


Nenhum dos habitantes do romance pensa em cidade grande: talvez o maior aglomerado humano, citado em "Grande sertão: Veredas" seja Montes Claros. Nem a capital do Estado, Belo Horizonte, nem o Rio de Janeiro, nem qualquer outra cidade maior, aparecem ali, concentrando-se a ação em território a que pouquíssimos brasileiros de outras zonas tivessem, até aquele momento, dado atenção.


Essa configuração geográfica do enredo já é sintomática, levando-nos a achar que, com o trabalho de Guimarães Rosa, incorporamos um novo pedaço de terra ao Brasil. É sintomático também não tenham os personagens do romance a visão romântico-econômica normal em lutas pela conquista de um chão. A vingança e o amor, motivadores das caminhadas dos heróis gregos, determinam também os movimentos de Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joça Ramiro.


Para mostrar sua gente, usa Rosa um sistema unificado e reto de narrativa, deixando, por isto, de se subordinar a capítulos, preferindo a adoção de um relato ininterrupto, coeso, fechado sobre si mesmo. E a concatenação, o entrosamento entre as diversas fases do romance, a passagem de um acontecimento a outro, tudo é feito com espantosa riqueza, tanto de vocabulário como de técnica narrativa.


O simples fato de escrever uma história corrida, sem capítulos, não bastaria para fazer de um romance uma obra extraordinária, não fosse, no caso, a cadência larga em que decorrem os acontecimentos, levando-nos a lembrar os rios da região, tão importantes na demarcação literária do trabalho de Guimarães Rosa como o são no traçar limites naturais nas terras que banham.


O que faz, contudo, de "Grande sertão: Veredas" uma obra-prima é o fato de dentro dessa justeza técnica, revelar um povo, mostrar-nos a nós mesmos, dar-nos uma consciência de existir, como raros trabalhos literários brasileiros o tinham feito até então.


É a nossa grande epopéia, no mais lato e, ao mesmo tempo, exato sentido da palavra. As batalhas do romance são descritas num tom épico, tom de heroísmo que não se prende às palavras, mas a pessoas e ao que elas fazem. Guimarães Rosa não se perde em literatizar seus acontecimentos, sua gente ou suas coisas. Tudo o que está no livro é natural e aparece contado por um narrador que, vivendo no meio, não se espanta com o mundo que é seu.


O maior defeito de bons romances de qualquer tempo, é o de darem eles a impressão de que seus autores estão visitando os lugares em que os fatos acontecem, o que os leva a se comportarem como repórteres que, tomados de espanto, desandam a fazer má literatura descritiva. O espanto, quando existe, deve vir de dentro do próprio romance, e não a ele ser artificialmente imposto pelo escritor.


O desenvolvimento e a fixação dos tipos humanos do livro são de absoluta nitidez. Diadorim, por exemplo, ficará como das grandes criações de nossa literatura. Mesmo os tipos incidentais, como o alemão Vulpes, Seu Habão, as damas da aldeia, o homem amedrontado no meio do caminho, o leproso, têm, todos eles, uma força de traços que daria para que dali fossem extraídos outros romances.


Os encontros e desencontros entre os personagens apresentam um tom de flagrante macheza. Dessa masculinidade inerente às coisas primitivas. O passeio de canoa de Riobaldo com o menino, o julgamento de Zé Bebelo, o ataque à fazenda, o primeiro contato com os catrumanos, o pacto com o diabo, todas as páginas seguintes ao momento em que Riobaldo assume o comando dos jagunços, a parada na fazenda de Josafá Ornelas, a luta contra Ricardão e, acima de tudo, a batalha final contra Hermógenes, com a revelação do verdadeiro Diadorim, são trechos da mais alta literatura, numa narrativa que põe o máximo de acontecimentos num mínimo de palavras.


Outro lado raro do livro é a linguagem. Temos, enfim, um escritor de linguagem absolutamente pessoal que, dentro dessa pessoalidade, concentra a fala de uma região. Pode-se imaginar o trabalho de requinte de Guimarães Rosa para escrever como o fez. Tudo o que a gente do interior, daquele interior do romance, é capaz de dizer, em frases típicas, em poucos momentos de uma vida inteira, o romancista colocou numa narrativa ininterrupta de quase 600 páginas.


O importante, no caso, é saber, de um lado, se a linguagem é adequada ao romance e, do outro, se atinge largo plano literário. Quanto ao primeiro, podemos dizer, a narrativa falada de Guimarães Rosa, e sua corrente interna de significados, são inseparáveis. As palavras, e a forma como são usadas, não constituem, aí, mero recurso externo.


A ligação entre o conteúdo do relato e sua exteriorização vem de dentro, de uma fase anterior à sua fixação formal, tornando-os de tal modo inconsúteis, que a história, contada como o foi, não o poderia ter sido de outra maneira. Quanto ao segundo, nunca atingiu, a língua portuguesa falada no Brasil, nível de tanta beleza.


Há partes do romance que, de tão espantosas, obrigam o leitor a se deter um pouco, para se convencer de que não se enganou com o inesperado da imagem ou da expressão.


Foi por isso que o romance de João Guimarães Rosa, "Grande sertão: Veredas", há meio século firmado em nossa literatura, veio alargar os planos em que os escritos de um povo se fundam.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) 11/05/2004

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ), 11/05/2004