Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O sarcasmo do Judeu

O sarcasmo do Judeu

 

O Tribunal do Santo Ofício, abominável em sua essência, operou no Brasil cerca de 240 anos, com a matriz situada em Portugal, onde teve mais de 280 anos de existência. Foram várias as injustiças cometidas contra os judeus, com processos infames e descabidos. Com isso, muitos foram sacrificados e outros viveram na clandestinidade, sem poder professar claramente a sua fé original.


O nome de Antônio José da Silva, o Judeu, é um dos mais notáveis e emblemáticos. Nascido no Rio de Janeiro, em 1705, sempre foi considerado descendente de judeus. Com seu pai, mudou-se para Lisboa aos 8 anos de idade, para acompanhar a mãe prisioneira, acusada de praticar o judaísmo, com se isso fosse crime em qualquer época.


Antônio José escreveu diversas peças teatrais, alcançando fama e popularidade, no dizer do estudioso Salomão Serebrenick, autor do célebre Quatro séculos de vida judaica no Brasil (Edições Biblos, Rio de Janeiro, 1962). São suas palavras: ''Como de suas peças, genialmente arquitetadas, com freqüência extravasasse um sarcasmo sem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou no afã de eliminá-lo.''


Era como então se interpretava o sagrado direito à opinião. A primeira tentativa de calar o poeta foi a intimidação, sendo-lhe confiscados os bens e esmagando-se os seus dedos - ato praticado na Igreja de São Domingos, em 13 de outubro de 1726 - na esperança de que assim ficasse impedido de manejar sua pena mordaz. O efeito foi o contrário, acirrando-lhe o ódio contra o Tribunal. Então, a tática foi outra: criou-se uma rede de denúncias e falsos testemunhos, como a de que ele ria quando ouvia falar o nome de Cristo, jejuava às segundas e quintas-feiras, vestia roupa limpa aos sábados e rezava o Padre Nosso, substituindo no final o nome de Jesus pelo de Abrahão e o Deus de Israel.


Acabou inapelavelmente condenado à pena capital, em 11 de março de 1739, sendo queimado em 21 de outubro do mesmo ano, em praça pública, como se fosse um grande espetáculo. Não faltaram requintes de crueldade: foram obrigados a assistir ao ato sua mãe septuagenária, sua mulher e sua filha de 4 anos. Uma lamentável exibição, que não exime os responsáveis pela Igreja daqueles tempos tenebrosos. Confundir com a Igreja Católica de hoje, no entanto, é um equívoco de que devemos nos divorciar. Não pode haver essa culpa eterna.


A realidade e a ficção, na obra de Antônio José da Silva, o Judeu, estão presentes num dos seus grandes biógrafos: Camilo Castelo Branco. O seu martírio se desprende das páginas do livro, para retratar o advogado e cristão-novo pertinaz, ou seja, aquele que não se arrepende, mesmo diante da morte iminente. Isso também está muito claro na obra, de extraordinário valor histórico, da especialista Anita Novinsky, titular da Universidade de São Paulo. O seu trabalho é feito de muita paixão, mesmo quando, imitando Antônio José, dirige-se ao ''leitor desapaixonado''. Como se pudesse existir essa categoria, quando se trata de lidar com tamanhas brutalidades, numa época em que a delação poderia ser moeda de troca de uma vida. Praticada até mesmo entre irmãos, como era comum na ocasião.


Para o acadêmico Moacyr Scliar, os judeus deram importante contribuição à cultura brasileira. Marrano foi o primeiro poeta brasileiro, Bento Teixeira, assim como marrano foi o seu primeiro grande dramaturgo, Antônio José da Silva. Apesar da permanente ameaça, por mais de dois séculos, os judeus aferraram-se às suas crenças e costumes, dando raro exemplo de dignidade. Um breve interregno ocorreu apenas quando do domínio holandês, no Nordeste brasileiro (1624-1654). Sob os tolerantes calvinistas, puderam os judeus praticar a sua religião e prosperaram do ponto de vista econômico.


Não se diga que faltou a Portugal o sábio aconselhamento do Padre Antônio Vieira a respeito das perseguições aos judeus. Em várias correspondências e atitudes públicas, o autor de Os sermões tomou corajosas posições, o que lhe valeu uma prisão de dois anos e três meses. Uma carta ao rei D. João IV é bem elucidativa: ''Uma opinião se espalhou pelo mundo e nos tem feito grandes danos: a de que Vossa Majestade é pouco afeito aos homens de nação, os quais, de outro modo, poderão ser muito úteis a Portugal, pelo muito que poderão nos dar, adotando o país como sua pátria.''


Foi o que não pensaram os algozes de Antônio José da Silva, o Judeu, e tantas outras vítimas da lamentável Inquisição.


 




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 11/05/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 11/05/2005