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A reunião de Brasília e a "civilização do medo"

 

A reunião em Brasília da primeira Cúpula Árabe-Latino-Americana demonstrou, no êxito e nos percalços, toda uma nova fronteira para a presença internacional das periferias do antigo Terceiro Mundo. Marcou, ao mesmo tempo, essa nossa indiscutível liderança externa, a que Lula tem dado o melhor de nossa visibilidade no após 11 de setembro, e da dita "civilização do medo". A deselegância Argentina, no rompante da saída de Kirchner, só confirmou o desconforto com o paroquial, no rompimento de nossas cláusulas de negociação mundial.

A cúpula com os países do crescente foi como que o assento, ou retorno, de um grande salto começado pela busca do eixo Pretória-Nova Deli, que marcou o primeiro ano do Governo petista. O importante é que, ao abrir esses novos espaços, o País também reflui sobre as suas matrizes continentais. Mas, para dissociar-se das velhas amarras do Mercosul, como se aceitássemos um delineio político marcado pela maximização dos mercados aparentes e das projeções naturais do desenvolvimento, na sua expressão geográfica tradicional. É este Brasil largo que já logrou, inclusive, de saída, e nas Conferências de Cancún, o próprio apoio hindu ou sul-africano à quebra das visões tradicionais da OMC, na busca de uma nova perspectiva nos pactos tarifários e, sobretudo, na trazida dos Estados Unidos a um jogo de contrapesos e ao decalque da economia hegemônica no mundo contemporâneo.


Arrimamos esta vasta envergadura internacional, para além da bacia do Prata. Ou das visões do Pacto Andino, fora de um regionalismo obsoleto, disposto Lula, ao mesmo tempo, ao impulso econômico, e ao político, para situar os protagonismos internacionais que defrontem a desmesura americana a beneficiar-se - tal como vem de reinsistir Alan Greenspan - da maior bonança financeira contínua desta última trintena.


O novo horizonte brasileiro expande-se na busca das mediações com a Farc na Colômbia - antecipando-se à composição destas guerras civis pelo diktat hegemônico. Identicamente, Lula tem logrado a ação, ao mesmo tempo, suasória e vigilante, no empenho de impedir o insulamento de Chávez, ou a sua abrasão cubana. Sobretudo, e frente às tensões, muitas vezes, de uma retórica de contra-reação americana, a manter indiscutível o que é o respaldo do governo de Caracas. Ou seja, o do primeiro regime democrático no continente, que enfrentou a regra do recall e aceitou ser plebiscitado em meio de mandato, para garantir-se, ou não, um efetivo e continuado apoio da maioria de sua população.


A cunha da iniciativa brasileira agora, na ambição deste acordo macrocontinental, juntando o mundo árabe ao latino-americano, enfrentaria o abafamento de seu impacto, de parte dos Estados Unidos, no empenho do status quo internacional, e seus quintais segregados de influência. Desfalcou-se a primeira agenda de potentados árabes a partir, sobretudo, do soberano saudita e do presidente Mubarak, do Egito, todos ligados à entente americana na área pressentida para após o conflito iraquiano. Mas, a presença do chefe do governo argelino, Boutefleka, e sua posição-chave no Magreb se remataram na do presidente palestino Abbas, permitindo todo o eco internacional, ao que venha a ser a expressão efetiva dessas soberanias do Oriente Médio. O tom estratégico foi o da torna aos acordos de Oslo, e a um mundo que escape às lógicas imediatas de um terrorismo e sua possível e interminável guerra de cem anos.


A Conferência de Brasília quis sobrepor-se os lances de uma desestabilização internacional, a pretexto do imbróglio palestino já denunciado pelas Nações Unidas. A presença de Abbas reforçou-se pela do recém-eleito presidente Talabani, do Iraque, peremptório em refugar a ocupação americana sine die na área crítica à estabilidade mundial.


A Conferência de Brasília, nesses mesmos termos, finca estaca no que seja o retorno a uma efetiva "cultura da paz". Mais importante , neste contexto, foi a reiteração do respeito à identidade cultural, como prévia à garantia dos sistemas democráticos, ou das liberdades, em que o mundo hegemônico confronta o respeito a um povo, para dizer das instituições e dos direitos a que dá origem e vigência. O repúdio universal ao terrorismo não pode envolver o desconhecimento das ações de defesa nacional, soterradas sobre o argumento e a repressão da "civilização do medo". A Presidência palestina sai fortalecida por este clamor, ou na consciência de que um mundo que supere o 11 de setembro começa pelo respeito das diferenças coletivas. E, essas, pela eliminação dos rolos compressores em que uma ideologia hegemônica se sobreponha no embate internacional, criando os fatos consumados de um universo que decida, de vez, nunca mais dormir em paz.


 




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 13/05/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 13/05/2005