A unanimidade mundial nas exéquias de João Paulo II fizeram de um Papa o símbolo contundente contra a “civilização do medo” que nos rodeia. A seu sucessor, no rastro deste momento único, impunha-se desbordar a expectativa do vai-e-vem entre a conservação e o progressismo. O sorriso novo de Bento XVI no balcão da basílica trazia muito desta quase transfiguração, nas palavras do novo pontífice, tão longe do cardeal Ratzinger, como estrito guardião da fé. Refletiu a humildade radical e o peso descomunal da investidura. Ainda na Sistina, cabeça baixa após os votos, um novo homem se levantava, cativo da escolha esmagadora. O fascinante de agora não é uma prospectiva de embate com a prévia lógica de Ratzinger, mas do que seja, nos tempos modernos, um primeiro Papa, teólogo e intelectual exigentíssimo, neste retorno ao profetismo do Vaticano II.
Empataram as votações do primeiro escrutínio entre o futuro pontífice e o candidato claro do retorno conciliar, cardeal Martini, antigo arcebispo de Milão. Mas este desimpediu a votação do contendor, tanto crescia o compromisso do futuro Bento XVI com uma verdade na caridade, pedida por uma crença à cata dos sinais dos tempos. Um Papa que quer um discurso adulto da fé vai à busca de uma Igreja relevante. João Paulo II nos deixou o carisma de uma Igreja-espetáculo que transbordou na Praça de São Pedro. Mas para exigir, de imediato, mais que a sua inércia gloriosa. A enormidade do consenso simbólico em torno de Wojtyla - de George Bush a Khatami - rompia também o simples passo adiante entre cristalização e mudança.
A humildade radical de Ratzinger durante o conclave, e o pedido ao concurso de todo povo fiel para sua inspiração, diz da consciência do lance à frente do pontífice. O recado será de um pensador no trono de São Pedro, distinto, tanto da experiência da cúria de um Bento XV, Pio XI ou Pio XII quanto da pastoral, de Pio X, João XXIII, Paulo VI ou João Paulo II, todos antigos arcebispos de dioceses exemplares da catolicidade, Veneza, Milão e Cracóvia. Ratzinger, o debatedor de Habermas, não dispensa a melhor argüição crítica no apuro das verdades teologais. Mas, nessa mesma medida, substanciou um entendimento do nosso tempo que põe justamente em causa o que seja a manifestação da verdade na História que constitui, talvez, o impacto mais profundo da lição do Vaticano II.
O relativismo é também essencial a estes sinais dos tempos, e ao que seja o caminho das certezas, a se disputar nas tensões do concreto e não pelo seu sumário enjeitamento ou descarte. Não estamos, como disse Ratzinger, sob uma “ditadura do relativismo”, mas no encontro, por ele, da efetiva condição existencial de chegar ao verdadeiro. A modernidade não se caracteriza por um vai-e-vem infinito entre conhecimentos fragmentados, mas pela adição destes conteúdos, de cujo avanço se faz a História. E só no seu seio a verdade se despega de seus ídolos. É num percurso entre relativos, e não num jogo de somas zero, como pode sugerir a antiga palavra de Ratzinger, que a barca da Igreja singra. Ela não balança entre vagas contrárias: a trajetória é entre erros de pesos diferentes permitindo o rasgo à frente da encarnação.
Dialogando com os maiores filósofos do seu tempo, Ratzinger sabe do quanto o umbral da pós-modernidade implica, na sociedade complexa de hoje, todo o jogo dos simulacros, das idolatrias do conhecimento, que só neste entrechoque podem ser superadas. Não descartadas simplesmente. A revelação fala por dentro de um mundo de tensões a pedir a leitura daquela idade adulta do cristão a que quer se voltar Bento XVI. O Vaticano II repetiria que as ideologias não necessariamente se equivaleriam nos seus desvios, mas que em todos habita uma verdade. A fé exigente e madura passa por estas diferenças onde, afinal, a visão evangélica cresce no tempo - e pede um discernimento. E toda a conquista da libertação sabe por onde avança, entre socialismo e capitalismo.
A surpresa do sorriso largo do novo pontífice no balcão anunciava um ir adiante, inclusive, das verdades do cardeal. Só pode a agudeza do seu raciocínio mais servir, na sua vocação de entrega à colegialidade de um juízo a que sacrifica a própria auto-reflexão. Um Papa da cabeça, nesta específica humildade a que se volta, entende que o anúncio não se exime à consciência crítica do seu tempo. Bento XVI herdou a praça de Wojtyla para falar nas suas palavras à Igreja prospectiva, jovem, que começa.
O Globo (Rio de Janeiro) 14/05/2005