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Sem milagres mesmo

 

Não adianta falar mais, o assunto já é velho e interessa a relativamente poucos leitores. Como tudo em nosso tempo, durou pouco e foi esgotado pelos consumidores de informação que nos tornamos. Transferimos para a informação e mesmo para a denúncia os hábitos de consumo contemporâneos. Tudo é objeto de consumo ávido, cansa e fica obsoleto às vezes em minutos, o que se exemplifica pela lembrança, apenas um pouco exagerada, de que, ao tirarmos um computador novíssimo da embalagem, ele já está superado por novo lançamento. Da mesma forma - e o comentário está virando lugar-comum - a maioria dos que hoje são chamados de “celebridades” permanece nessa condição durante alguns dias ou meses, para depois sumir.


Acho que não escrevi aqui uma linha acerca do fuzuê (ainda se usa esta palavra?) em torno da reportagem do “New York Times” sobre o nosso presidente. Reclamaram, mas eu acho que tinha razão, e não somente porque, no domingo passado, o assunto já estava ficando velho e muita gente não queria mais nem ouvir falar nele, mas também porque as toneladas de papel e torrentes de palavras gastas com ele já tinham opinado tudo o que se podia imaginar. Como sempre, ficamos preocupadíssimos com o que se diz lá fora a nosso ilustre respeito e não precisa ser no “Times”. Se um foca do Muskogee Weekly Bugle, combativo hebdomadário dessa progressista cidade de Oklahoma, o qual acabo de inventar, passar duas semanas de férias no Brasil e publicar uma notinha dizendo que a picada de mosquito que o vitimou no interior de Roraima não foi bem tratada pelo posto médico local, sai uma manchete aqui: “Imprensa americana faz duras críticas ao sistema brasileiro de saúde.” E se a verba curta que todo mundo hoje enfrenta permitir, alguém pautará um repórter para investigar o alegado (tudo agora tem que ser “alegado”, senão dá processo) descalabro no setor de picadas de insetos dos postos de saúde de Roraima. Desde que me entendo é assim e acho que vou morrer sem que isso se altere.


O que ainda talvez dê para dizer, na ressaca (ao acabar de digitar esta palavra, ocorreu-me que talvez venha a ser lida como trocadilho e pensei em mudá-la, mas não vou mudar; não foi a intenção, mas não posso, nem quero, evitar que cada um pense como quiser e até me tenham na conta de um preconceituoso agente anti-Lula, a soldo de interesses escusos; sei que não sou, mas, novamente, cada um acha o que quer ou pode) dessa história ridícula, é que perdemos um tempo enorme discutindo besteiras e só incidentalmente fazendo, lá e cá, considerações importantes suscitadas pelo episódio. Estragos houve, não podem ser consertados, pelo menos a curto prazo, e então vamos em frente, o país tem muitos problemas graves e urgentes a resolver.


Mas aí vem a questão, nestas manhãs e tardes sombrias em que a “sazão que sói ser fria”, do verso de Sá de Miranda (acho que é de Sá de Miranda, mas, se alguém discordar, cartas indignadas ao editor, por caridade), se anuncia intimidadora, até com furacão em Santa Catarina e ciclone em Saquarema, de como vamos fazer para resolver ou suavizar pelo menos alguns desses problemas. Vamos fazer alguma coisa? Há sempre quem diga que sim, mas é pouca gente e, de modo geral, ninguém está vendo nada ser feito. A Natureza, com perdão da poética de brega antigo (lupanares de antanho), em seu manto álgido, suas nuvens atrás e seu mau humor, espelha, quem sabe, o estado de espírito que me parece prevalecer no país.


Agora, deu-se para falar em milagres. Sempre se gostou de falar em milagres no Brasil, mas a nova fase, creio eu, se inaugurou com o presidente mesmo, quando ele revelou à nação que não é Deus. Não deve ter surpreendido muita gente com essa confissão, embora os exaltados só tenham faltado acusar o Larry Rohter de blasfemo, como chegou mais ou menos a fazer o ministro Gushiken, ao comparar o presidente ao imperador japonês, que é considerado divino pelo seu povo. Mas foi a deixa que ele usou para nos fazer compreender que não pode fazer milagres. Só estranho que, se talvez alguns esperavam milagres, a maioria não chegava bem a isso. Esperava só trabalho mesmo, programas bem definidos e conduzidos, esperava que tivesse acontecido alguma mudançazinha significativa neste tempo de exercício do poder por aqueles que se elegeram para mudar e garantiam saber perfeitamente o que fazer, quando lhes chegasse a oportunidade.


Até o ministro Gil, sobre quem admito que não posso ser isento porque nos damos bem há uns quarenta anos e que não costuma abordar este tema, falou na impossibilidade de milagres. Quem pediu milagres, a não ser a Deus mesmo, ou ao santo de sua devoção? Todo mundo sabe que milagre não acontece com muita facilidade e não se multiplicarão o pão e o peixe através de invectivas retóricas contra o atraso. Ninguém pediu milagres. Ninguém deve pedir nada ao governo, aliás. Deve-se é exigir o que se espera do governo que escorchadamente sustentamos, ou seja, trabalho, objetividade, eficiência, sensibilidade, resultados ou perspectivas concretas. Isso se vê, ainda que escassamente? Pouca gente vê, inclusive dentro do governo e do PT.


O Verissimo, no tempo do dr. Fernando Henrique, fez um pequeno ensaio sobre ex-presidentes, chegando à conclusão de que, se ele não foi bom presidente, viria a ser excelente ex-presidente, como Jimmy Carter. Eu havia chegado à mesma conclusão, de forma mais ou menos independente. E agora acrescento algo que talvez mitigue nossa frustração coletiva: a figura do ex-candidato. FH não foi, na minha opinião, um bom presidente, mas pode, sim, manifestar-se um notável ex-presidente. E Lula, também na minha opinião, não está sendo um bom presidente. Mas, sem sombra de dúvida, já é um dos melhores ex-candidatos de nossa História.


 


O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 23/05/2004

O Globo (Rio de Janeiro - RJ), 23/05/2004