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Martinho e a cultura negra

 

O Brasil aprendeu a gingar em Angola e sofreu influências variadas, que passam por Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Portugal. É natural que não queira (e nem deva) se desprender das suas raízes, apesar de tudo o que isso representa em sofrimento, escravidão e miséria.


Ao ter essa consciência, o cantor Martinho da Vila realiza um trabalho missionário. E não é de hoje. Nos idos do início da década de 80, procurados por ele, um jovem cantor em ascensão, cedemos a Sala Cecília Meirelles, no Rio de Janeiro, pertencente à Secretaria de Estado de Educação e Cultura, para que pudesse ser realizado o espetáculo "Quizomba", feito afinal com muito êxito e sacrifício.


Por aí se pode ter idéia da idade da nossa amizade e o nosso envolvimento recíproco no cultivo às tradições, pois o significado da palavra tão forte é mesmo "festa". Foi uma festa para despertar o povo para a importância da cultura negra em nossa sociedade.


Na recente visita do presidente Lula a São Tomé e Príncipe e Cabo Verde a lusofonia foi lembrada. O nosso presidente desculpou umas dívidas, daqueles países, o que prova que não somos tão pobres assim, e prometeu ativar nossas relações, com a remessa de kits culturais e especialistas em ensino superior. Impor a Cabo Verde o discutível modelo brasileiro de ensino superior é maldade indesculpável. Ou o que se deseja é testar, em Praia, com professores da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Ceará, uma universidade moderna, renovada, crítica, aberta para o mundo, como ainda não temos entre nós? Haverá também o emprego inteligente da educação à distância.


Com a visita oficial de Lula, reacendeu-se a velha questão do Acordo Ortográfico de Unificação da Língua Portuguesa, sonho frustrado do inesquecível acadêmico Antônio Houaiss, quase realizado em 1990, com a grande ajuda do senador José Sarney. Foi um movimento que contou com o entusiasmo da Academia Brasileira de Letras, especialmente dos imortais Austregésilo de Athayde e Josué Montello. Parou quando somente três parlamentos aprovaram o documento que representava a alteração de 3% dos 350 mil verbetes registrados no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Já se vê que não seria muito. Outros países, além de Portugal, Brasil e Cabo Verde, não subscreveram o Acordo - e ele deixou de ser implementado. A causa pode também ser encontrada em guerras civis que então povoavam a comunidade lusófona.


Passou-se o tempo, as coisas foram se complicando e as propostas de maiores alterações ganharam corpo, como foi o caso do terrível hífen. Havia 18 modificações propostas, hoje são 25. E vem a discussão sobre a fonética, como esclarece o filólogo Evanildo Bechara: "Os portugueses querem que se mantenha o c na palavra "director" para que se possa abrir a acentuação tônica na vogal seguinte." As falas ficarão com pronúncias distintas, aliás, como sempre aconteceu.


A ciência da computação, por uma questão de pressa e economicidade, pede essa unificação. Ganhariam as comunidades mais pobres, com tiragens maiores de livros imprescindíveis, hoje muito caros. Mas a resistência é grande, como aconteceu com aquele jornalista de Lisboa que colocou na manchete do seu periódico: "Querem assassinar o português." Não é bem essa a intenção, mas fica provado que nenhuma revolução se faz sem dor. Descomplicando, politicamente, as relações entre os nossos povos respectivos, chegaremos mais facilmente à desejada unificação ortográfica. Esse é o fato. Ou facto?




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) 22/08/2004

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ), 22/08/2004