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A solução é clara

 

A julgar por muitas entrevistas, artigos, ensaios, poemas, discursos e outras manifestações a que tenho sido exposto, às vezes com requintes de crueldade mental, as tentativas de elucidação dos problemas brasileiros começaram desde Cabral, talvez até muito antes. Os índios parecem ser considerados por quase todo mundo os primeiros habitantes do Brasil, os verdadeiros brasileiros. Tenho que fazer considerável esforço para aceitar esse raciocínio que, acatado por tanta gente, deve estar certo. Eu é que sou tapado e já fui até chamado de racista e inimigo dos índios, pois a triste verdade é que ainda me atrevo a discordar, pela óbvia razão de que não existia Brasil nenhum, antes dos processos deflagrados pela colonização e não encerrados até hoje.


Há quem considere o nome “Brasil” uma odiosa imposição estrangeira, pois os índios o chamavam Pindorama. Já falei nisso aqui, mas acredito que ninguém lembre e não acho demais repetir. Vai ver que, quando Cabral desembarcou, uma comissão do governo pindorâmico o recebeu com estranheza, embora sem dispensar nossa tradicional cordialidade. Sabia ele que estava invadindo Pindorama, vasto país que se estendia do Oiapoque ao Chuí e não tinha fronteiras apenas com o Chile e o Equador? Os índios, que certamente falavam a mesma língua do Oiapoque ao Chuí, só guerreavam entre si de brincadeirinha e certamente tinham uma Constituição não-escrita, talvez até hajam exibido mapas: “Olhe aqui, o senhor está entrando ilegalmente em Pindorama e violando a nossa soberania, isto não vai ficar assim, espere só a criação da ONU.” Pode ser mesmo que tenham tentado explicar que ele dera sorte por ter arribado à Bahia, onde o povo era festeiro, preguiçoso, desligadão e chefiado pelo cacique Caimmyão, que preferia ficar na rede cantando a se aporrinhar com visitantes esquisitos. Mas, se os portugueses tivessem aportado por exemplo no Rio Grande do Sul (os índios já tinham dividido Pindorama em regiões geográficas e políticas), era bem possível que encontrassem forte resistência, pois os gaúchos sempre foram chegados a um bom quebra-pau ou, como já se dizia por influência das áreas influenciadas pelo falar uruguaio ou argentino, uma “pelea”. Se vissem aqueles gringos se metendo na terra deles, largavam o tradicional chimarrão e partiam para o desforço físico, chê.


Bem, não tenho certeza, essas coisas históricas são complicadas, mas deve ser por causa de tal confusão que ninguém chega nem perto de um consenso vago sobre o assunto. O velho império pindorâmico teve que ceder lugar ao Estado denominado Brasil, quer queiramos ou não. E no meu tempo, diziam que os elementos do Estado eram governo, povo e território, apesar de ser noção que talvez tenha sido alterada por alguma medida provisória (ouvi falar que o presidente cogita baixar uma MP revogando a lei da gravidade, facultando os brasileiros voar e solucionando - pela primeira vez em nossa história, como tudo o que o governo dele faz - o problema do transporte).


Residirá aí, quiçá, o busílis. Um desses nossos elementos vive criando caso, tanto assim que a toda hora se reitera, quase sempre com as mesmas palavras, o que um presidente militar já disse: o país vai bem, mas o povo vai mal. Admito que ainda tenho dificuldade em compreender a afirmação. Mas gradualmente o entendimento me chega: problema do Brasil é o povo, isso é que estraga tudo. O povo atrapalha demais, é um absurdo, coisa de gentinha atrasada da pior categoria. Qualquer um vê que o país vai bem. É só escutar a voz dos analistas oficiais. Todos os indicadores são fantásticos, com uma rara exceção aqui e ali. Só o que falha é o povo. Mas nem essa constatação, que seria de orgulhar qualquer um, satisfaz o povo. Há sempre uma reclamação, um descontentamento, o vício de torcer o nariz para tudo. Cresce até a estapafúrdia mania de querer algo em troca dos impostos que pagamos. Claro que os impostos são para sustentar o governo e o governo não pode fazer tudo - ou alguém pensa que manter o país bem não dá suficiente trabalho?


Um país em tão boa situação como a do Brasil não pode continuar tendo povo. As tentativas de melhorá-lo nunca alcançaram êxito. Ele insiste em observar inapropriadamente o que os poderosos (sinônimo de país, imagino eu) fazem e imitá-los. É não se enxergar demais. Furta, frauda e falcatrua quem pode e está na posição de fazê-lo, mas o povo se sente no direito de agir da mesma maneira. Vamos reconhecer que o povo, por alguma razão inexplicável, é mal-educado e mal-acostumado, não merece desfrutar de um país que vai tão bem. Vamos reconhecer igualmente que já chegamos ao limite, não há mais salvação sem uma medida radical, quem sabe dolorosa, mas a única capaz de inscrever o Brasil na lista honrosa das grandes civilizações, em que já estaria folgadamente, se não fosse o povo. Minha sugestão é singela: acabar com o povo. Isso mesmo, acabar, extinguir, eliminar. Sem povo, ninguém mais vai poder dizer que o país vai bem e o povo é que vai mal, pois não haverá mais povo. E ele pode redimir-se no final, evitando o trabalho de causar gastos excessivos com o extermínio em massa e se saindo gloriosamente, para variar. Sim, compatriotas, não esperemos mais, a hora é esta. Vamos cometer um haraquiri coletivo, talvez até custeado pela Contribuição Provisória (desta vez provisória mesmo, já que depois não haverá ninguém para pagá-la) de Suicídio Participativo. Pronto, aí tudo fica perfeito. Talvez um pouco esquisito, mas objeto inquestionável de admiração internacional e mais uma vez pioneiro: seremos o primeiro país sem povo e todos os problemas desapareceriam. Por que não pensamos nisso antes? Erram, como sempre, os catastrofistas. O Brasil tem futuro, sim, apesar de que não estaremos aqui para testemunhá-lo, mas não se pode querer tudo neste mundo.


 


 


O Globo (Rio de Janeiro) 06/03/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 06/03/2005