Hoje eu ia escrever novamente sobre o assunto do momento, o qual, goste-se ou não de política, é a eleição em São Paulo. A prefeitura da maior cidade do país já é importante em si e foi transformada por “eles” em mais importante ainda. A disputa, pelo menos na minha modestíssima opinião, se federalizou, virou queda-de-braço nacional. Tudo obra “deles”. Não sei bem quem são “eles” e, aliás, já falei bem mais do que acabei decidindo falar, que era nada. Preciso resolver certas questões éticas preliminares, tais como conspirações e esquemas nos quais me disseram que estou envolvido, mas, talvez por contar entre meus inumeráveis defeitos a distração excessiva, não tinha notado. No momento, acho que me encontro enredado em tramas cavilosas com o núcleo da novela de não sei bem que horas da Globo. Preciso de mais informações, estão me escondendo alguma coisa, acho que o núcleo da novela está me desprestigiando e não me chamou para qualquer sessão de conspiração ainda. E, o que é pior, ninguém me deu dinheiro nenhum até agora.
E, como não moro em São Paulo, está me deixando nervoso a maneira pela qual as diversas conspirações a cuja autoridade estou sujeito ou vendido me enviam as instruções da semana. É como naquela série “Missão impossível”, que passava na tevê, em que a mensagem se autodestruía. “Presta bem atenção aí, ô meu”, recomendam, sempre que começam as instruções. É muito estressante e desconfio até de que posso estar sendo inocente útil outra vez e, depois de uma vida praticamente devotada à inocência útil, a pessoa fica desgastada. Que vença a ou o melhor - é tudo o que posso dizer sem levantar suspeitas, embora não vá deixar de haver quem note que pus o “a” antes do “o”, caso em que retiro a ordem e a submeto à modificação dos leitores: por favor, ponham o “o” ou o “a” onde lhes parecer mais apropriado.
Felizmente, não há paucidade - palavra que o saudoso Paulo Francis procurava importar do inglês porque, como de tudo mais, sentia falta dela no Brasil - de assuntos, notadamente para residentes, como por acaso eu, do famoso bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Aqui, como se sabe, somos todos barões e vivemos uma vida à parte, em que não temos nenhum problema. No começo, eu apenas gostava daqui, mas agora compreendo seu valor com cada vez mais intensidade. Certas ocorrências ajudam, como a carta satisfeitíssima de um leitor para não lembro agora qual jornal, comentando o arrastão acontecido na praia aqui do bairro. “Bem-vindos ao inferno!” rejubilava-se ele, cansado de ouvir falar como viver no Leblon é uma tranqüilidade.
Senti-me um pouco injustiçado, porque não é bem assim. Agora mesmo está na moda tomar edifícios inteiros aqui. Claro, todo mundo é barão e guarda uma reserva de centenas de milhares de euros em casa para os assaltantes, pois dizem que eles não estão aceitando mais dólares. E, como sempre, desenvolve-se a economia, com o boom dos aparatos de segurança e até mesmo o dos cursos especializados. Mal posso esperar que essa formalidade boba da eleição americana passe, para que o governo crie por medida provisória (permanente) a Escola Nacional de Segurança Participativa, conveniada com o FBI, custeada pela Contribuição Provisória (Permanente) de Segurança e dando cursos para síndicos, porteiros, faxineiras, ascensoristas e, finalmente, moradores. Morar tem que deixar de assumir a postura passiva de antigamente e assumir novo paradigma: morar agressivamente, no ver dos mais radicais; morar proativamente, no dizer dos mais sofisticados.
Tenho certeza de que o engenho nacional e a eficiência das autoridades continuarão a possibilitar a sobrevivência aqui no bairro, atualmente ameaçada, apesar das negativas oficiais. E, já que se deve procurar fazer sugestões e não simplesmente espalhar críticas fáceis, por que ninguém, em área tão abastada, ainda não promoveu uma edição (colorida, encadernada, em papel importado, com renda destinada ao Projeto Flores para Bangu I) do Estatuto do Desarmamento, ou que outro nome tenha a lei que torna crime inafiançável a posse de armas? Um exemplar dessa lei em cima da mesa central do tríplex com piscina em que aqui todos residimos é indispensável, para mostrar ao assaltante. É certamente por ignorância que ele entra armado nos edifícios e, como já sugeri uma vez, assim que aparecer em sua frente um assaltante empunhando uma arma, você deve imediatamente pedir licença (um pouco de educação não custa - olha os direitos humanos do assaltante) e exibir a ele o artigo aplicável à situação. Ele pedirá desculpas pela falha (“foi mal”), agradecerá pelo ensinamento (“valeu”) e sairá envergonhado (“fala sério”).
No mais, sei que continuaremos a enfrentar a violência com meios eficazes e prontos. Claro que nem todos poderemos aspirar a ter uma filha delegada, mas podemos fazer esforços para nos aproximarmos da polícia, cada qual dentro de suas possibilidades. E vamos prosseguir em nossos esforços comunitários. Que tal a Marcha do Beija-Beija, em que celebridades leblonenses e convidados de toda parte sairiam desfilando pela beira do mar, cada um levando um(a) excluído(a) de sua livre escolha? Em certos momentos, embalados pela música de cantores e bandas de muita popularidade, até mesmo - vamos pensar grande, vamos pensar grande! - os desfilantes pegariam o(a) excluído(a) e lhe tacariam um beijo na boca. E tudo sem distinção de opção sexual nem de coisa nenhuma, liberdade geral. Ou seja, vamos deixar o catastrofismo outra vez e reconhecer que sobreviver legal é fácil e divertido, quer no Rio, quer em São Paulo. O quente agora é uma ponte aérea esperta - uma semana fazendo campanha em São Paulo, outra fazendo passeata, abraçando a lagoa e beijocando excluídos no Rio. Temos tudo e não sabemos ser gratos.
O Globo (Rio de Janeiro) 17/10/2004