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Tranquilizemo-nos

 

Ninguém vai negar que temos fartas razões para um certo nervosismo, uma certa ansiedade, uma certa vontade de que parem o planeta para descermos. Confusão demais, controvérsia demais, pressão demais, informação demais, medo demais, tudo demais. Outro dia li que nós, brasileiros, como em outros terrenos notáveis, nos destacamos pelo consumo de bolinhas para acalmar e dormir. Dispomos de grande acervo de médicos compreensivos, capazes de dar receitas de ansiolíticos e similares qual candidatos distribuindo santinhos, e existem aqui e ali farmácias mais camaradas, onde o pessoal se recusa a participar da palhaçada e vende a bola que sabe que acabará sendo vendida de qualquer forma. Para não falar nas bolinhas paraguaias, que também são consumidas. Tudo pode ser paraguaio e, no boteco, me garantem que o Viagra paraguaio, bem mais barato, vem tendo circulação cada vez mais intensa, até porque não é só coroa que toma, são praticamente todos os homens, tudo morrendo de medo das mulheres e portando o aterrador e traiçoeiríssimo HMLV (sigla em inglês de Human Male Limpness Virus - peça aí a um amigo para traduzir, se você não entendeu; eu tenho vergonha de falar nessas coisas, só falo se for em inglês, que é chique). Contam-me, aliás, com perdão da digressão, que outro dia, num boteco aqui do Leblon, ouviu-se a revoltada voz de um cavalheiro, gritando lá de dentro do banheiro:


- Sai, covarde, é só pra fazer xixi!


Sim, o clima geral induz ao estresse e a deploráveis incidentes desse tipo. Antigamente, tudo era mais previsível, ou pelo menos parecia ser. Hoje não se tem certeza de nada e, se é verdade que o mundo sempre viveu em transição, a transição agora é tão acelerada que acaba deixando a maioria no meio do caminho, ou permanentemente angustiada porque não consegue acompanhar as mudanças. Diante dessa situação, há reações extremas, como a de um de meus mais ilustres companheiros de mesa, o brigadeiro Bimba, hoje reformado e próspero causídico, que, através de uma declaração enfática, proferida para todo o boteco ouvir, fundou o bimbismo (ele está procurando um nome melhor, porque, com certa razão, não acha este muito eufônico). O postulado basilar do bimbismo é “já estou velho demais pra me preocupar com essa merda, vou dormir”. Perdão, senhoras, pela palavra chula, mas trata-se da reprodução de uma declaração histórica, que não pode ser falseada por pudores quiçá ultrapassados. Em suma, o brigadeiro desistiu e agora só conversa sobre comida, futebol europeu e “tornozelos que eu vi”, alusão ao tempo em que as moças não viviam levantando a saia e mostrando as amígdalas a toda a humanidade, como hoje em dia.


Encontro-me fortemente propenso a aderir ao bimbismo. Chega de es-tragar minha preciosa qualidade de vida de terceira idade, entre sorvos deleitados de guaraná com gelo (sem laranja, puro mesmo), banquetes de capim e suflê de chuchu e agitadas rodadas de palitinho, com preocupações que acabaram virando vício ao longo de décadas e nunca adiantaram nada. Aliás, o bimbismo, por ser filosofia advinda na ancianidade, levanta a suspeita, nem sempre velada, de demência senil e sugere até mesmo dúvidas gnoseológicas gagás, mas não nos deixaremos abater pelo preconceito. A realidade pode passar a ser mais maleável, ou a ser como a gente queira, ou negada à vontade. Que é a realidade, afinal? Qual delas escolher? O bimbista se sente muito à vontade para questionar os fundamentos epistemológicos de qualquer coisa.


E, na sabedoria de seus longos anos, o bimbista mira em torno e vê o quê? Razões para intranqüilidade? Sim, meu Gafanhoto, como dizia o mestre, naquele seriado americano jurássico a que a gente assistia, no qual eram ministradas aulas da Misteriosa Sabedoria Oriental. Mas só na superfície, porque, observe bem, “a flor de lótus brilha no lodo, porém a cabeça da serpente já foi decepada à luz do Oriente e o Homem Sábio se regozija na viagem”- o que não quer, naturalmente, dizer nada, mas se presta a meses de debate exegético sobre mais uma pérola da Misteriosa Sabedoria Oriental.


Sim, este simpatizante do bimbismo que lhes fala tampouco entende o aforismo do mestre, mas imagina-o um recurso para vencer as conclusões do senso comum, às que primeiro vêm à mente. Que vemos agora? Vemos o dr. Maluf apoiando o PT (“mas não colo o adesivo”, disse ele, mais ou menos parafraseando o “fumei, mas não traguei” de Clinton, em relação à maconha), o PT fingindo que não é apoiado. Vemos ameaças do tipo “vocês não vão ver mais um tostão federal”, se for eleito o candidato oposto. Vemos casas vendidas a eleitores por um real ao mês. Vemos programas sociais nas mãos de es-truturas corruptas que, pior, são constituídas de gente como nós mesmos, não adianta querer fingir que são marcianos e não como nós, aqui nascidos, criados e formados. Vemos ameaças divinas brandidas contra opositores. Vemos a sensação de que grassa geral e vigorosa esculhambação, que ninguém sabe quem manda e querem até trazer de volta os belos tempos em que generais tinham por ocupação principal fazer advertências à nação. Vemos o dr. Genoíno (não sei se ele é doutor, mas não é gozação, é conhecer o meu lugar, o homem fica importante e a gente chama logo de “doutor”, não sou besta e a imprensa está sob olhos vigilantes) classificar uma candidatura de aventureira, a candidata se dar bem e ele agora ficar de cara mexendo. E com o PT, além do dr. Maluf? Outras figuras inesperadas, o dr. ACM, dr. Roberto Jefferson, dr. Quércia, dr. Newton Cardoso, dr. Jader Barbalho... Intranqüilidade, Gafanhoto? Ao contrário, está tudo a mesma coisa - ou você não notou? Não vamos perder a intranqüilidade tão cedo, quanto a isso pode ficar tranqüilo.


 




O Globo (Rio de Janeiro) 24/10/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 24/10/2004