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Confissões de um escrevinhador contrafeito

 

Já contei a vocês que, desde a primeira vez, resolvi que jamais escreveria a tradicional crônica sobre falta de assunto e venho cumprindo a decisão. Não que já não tenha enfrentado esse pavor, pois houve tempo em que escrevi três por dia, eis que a necessidade é a mãe da porcaria. Mas sempre dei um jeito e, na verdade, nunca deixa de haver assunto. Agora mesmo, o que não falta é assunto. Mas que tipo de assunto? Só assombração. Basta folhear este ou qualquer outro jornal, ou assistir ao noticiário da tevê, ou ouvir as rádios. Claro, nas tevês, por exemplo, tem a reportagem do fim, a que se encerra com um sorrisinho terno dos apresentadores, sobre como Seu Lalinho, de Cobrobó, aprendeu a ler depois dos 86 anos e, lépido e lampeiro aos 93, mantém uma escola para os pobres da cidade, onde dá aulas de capoeira, brinca nas onze na pelada anual de confraternização e é vocalista do conjunto de roque-xaxado Ketchup na Rapadura, em companhia de Edelzuíta Fole Ousado, mocetona de 44, que por sinal está esperando o segundo dele.


Mas o resto não é bem assim e a verdade é que cronista, ou o que eu lá seja, também é filho de Deus. Tem coisa mais chata do que chegar aqui todo santo domingo, como venho fazendo, para falar mal do governo ou reclamar de tantas situações e acontecimentos que precisam ser denunciados? Está certo, o sujeito tem espaço no jornal, se sente na obrigação de dar sua penada a favor do que julga ser o interesse público, mas também é muito chato. Hoje mesmo, eu estava com o dedo aqui coçando para escrever sobre o jeitão ansioso com que nosso presidente foi fotografado, parecendo o chefe dos garçons (garçom é uma profissão respeitável e digna como qualquer outra, peço aos entrelinhistas que não vejam depreciação onde não há) de uma churrascaria emergente, num churrasco para o presidente chinês, destinado a ajudar a que eles comprem carne brasileira.


Ia falar sobre esse assanhamento todo em torno da China. Muito bem, os chineses estão investindo fortunas incalculáveis aqui, o mercado chinês é um colosso, negócio da China vai voltar a ser expressão corriqueira. E reconhecemos que a China é uma economia de livre mercado, ou algo semelhante, o que dá a ela certas condições de negociação internacional. Nos Estados Unidos, usa-se a expressão “exportação de empregos”. No Brasil, onde estamos precisando criar empregos desesperadamente, até porque os dez milhões que iam ser criados ainda não pintaram (deve ter sido queda no sistema ou outra dessas coisas modernas, que acontecem e não entendemos), fingimos que não sabemos que operários chineses recebem salários vis, o custo é minúsculo e a bagulhada que eles produzem, podem esperar mais um pouco para ver, sai mais barata do que a daqui, jogando a concorrência nacional para escanteio. Li que a indústria paulista já andou chiando e tende a continuar chiando. Empregos não deviam constar de nossa pauta de exportações, mas podem constar — e quem diz isso não sou eu, são os homens da indústria paulista, ou seja, grandes empregadores. Pelo visto, eles não acham a China essas Chinas todas.


Mas que estou dizendo? Parece coisa do Cão, o sujeito quer evitar esses comentários e volta a eles. Claro que há razões para otimismo, com toda a certeza elas existem. Onde as esconderam, não faço idéia. É porque vocês, como não podia deixar de ser, já pegam esta coluna pronta e editada. Não me vêem enquanto a escrevo, aqui me levantando volta e meia e fazendo discursos para mim mesmo. Só faltei gritar, como nos combates medievais dos romances, “eia, sus!” E voltei várias vezes à barafunda de jornais e revistas que me cerca, procurando as razões para otimismo. Deve ser a idade outra vez, pois até cachorro perdigueiro fica sem faro depois de velho, mas não achei nenhuma. Só inventando uma, mas a imaginação vem travando com renitência, diante de fatos que a ela própria, mesmo em seus estados delirantes, não ocorreriam.


Ou então conto uma piada, pronto. Claro, nada melhor do que uma piada, para desanuviar o astral. Se bem que, hoje em dia, contar piada seja muito difícil, porque tudo é politicamente incorreto. Até comentar qualquer coisa, mesmo que não seja piada, é arriscado. Faz tempo escrevi aqui, crente que estava abafando, que a mulher brasileira é patrimônio nacional e recebi uma carta de uma senhora me espinafrando, porque eu usei a palavra “patrimônio”, que vem do latim pater , ou seja, “pai”. “Eu estava até gostando”, escreveu mais ou menos ela, “mas aí você usa essa palavra, falando na mulher”. Fiquei aflito, naturalmente, tinha dado uma grave mancada. Mas como fazer? Escrevi de volta a ela, perguntando se, em vez disso, ela queria que eu usasse “matrimônio”, mas ela não me respondeu, até hoje estou na dúvida.


Sim, a piada. Piada velha, mas muitos de vocês certamente nunca a ouviram ou leram e não existe de fato piada nova, todo mundo sabe disso. E piada em que possa ser vista alguma relevância para a atual conjuntura. Lembrei uma, em mais um ingente esforço de reportagem. É a história do chefe Sioux. O inverno se anunciava brabo e o chefe Sioux mandou reunir o povo. Era o seguinte, disse ele. Tinha duas notícias para dar, uma boa outra ruim. Qual a que queriam ouvir primeiro?


- A ruim, ruim!


- A ruim é que, este ano, só vamos ter estrume de búfalo para comer.


- Que coisa horrível! E a boa?


- A boa é que temos um enorme superávit de estrume.


Ho-ho. Pois é. Está certo, não tem graça, mas pelo menos é relevante para a atual conjuntura. Levando-se em conta o superávit primário, isso me parece inegável, embora também não tenha graça nenhuma, pensando bem.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 21/11/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 21/11/2004