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Língua portuguesa, uma disciplina fora de moda

 

Nas preocupações da Academia Brasileira de Letras, avultam as questões relativas à cultura e à educação do povo e, aí, ganha relevo maior uma competente e bem orientada política da língua portuguesa como fundamento e instrumento da cultura nacional.


Se cabem às instituições de ensino o estudo, a pesquisa e a investigação da língua portuguesa em toda a sua dimensão histórica, cabe fundamentalmente à ABL a promoção dos meios e providências necessárias ao cultivo e florescimento da língua escrita padrão ou exemplar, como a entendemos, para efetivar os objetivos traçados pelos fundadores da Casa de Machado de Assis e que estão consagrados, como cláusulas pétreas, no art. 1º dos nossos estatutos.


No tocante à cultura da língua nacional, a ABL tem cuidado da questão ortográfica e da elaboração no dicionário. Neste sentido, a Comissão de Lexicografia, sob a competente presidência de Eduardo Portella, está trabalhando na área de suas atribuições e de projetos paralelos. Há cem anos, quando se fundou a Casa de Machado de Assis, essas atividades eram suficientes. Mas hoje, com o privilégio das variedades lingüísticas, a ABL está retomando, com medidas e ações efetivas, o compromisso da cultura da língua.


Para tanto, tomamos a iniciativa de propor a criação de uma nova coleção (que já foi aceita) - com o nome de Antônio de Morais Silva, destinada à publicação de obras de real mérito, originais ou reedições, sobre língua portuguesa, bem como um prêmio especial, com o nome de Silva Ramos, atribuído bienalmente a trabalho publicado relativo ao estudo da língua escrita padrão.


Com essas providências, como salientou recentemente o acadêmico e jurista Miguel Reale, a Academia legitima a sua importante posição central no cenário cultural do país.


Na ABL, nós reconhecemos que com o advento dos estudos lingüísticos modernos introduzidos no Brasil no fim da primeira metade do século passado, se vem acentuando não só nos meios universitários mas também nas propostas de política do idioma para o ensino fundamental e médio a idéia redutora de que o objeto de estudo e de atuação gramatical é a chamada língua falada ''primária'', espontânea e usual, por ser a manifestação natural do falar.


E dentro desta ótica, o estudo e a atuação da língua escrita, mormente na sua realização literária mais elaborada, resultariam de uma ação coercitiva do grupo social elitista.


O texto literário dos autores dos séculos 19 e 20 foi substituído pelo texto jornalístico, pelas letras de músicas populares, pelas charges e cartuns e pelos textos verbais e não verbais da publicidade comercial. Privilegiou-se o uso, o discurso; deslocou-se também o eixo de preocupação da linguagem humana concretizada na língua para outros códigos de comunicação; saiu-se do sistema lingüístico para o plano semiótico; passou-se, então, como seria esperado por natural, a falar mais sobre a língua, do que de língua, quer no âmbito das universidades, quer no âmbito de sala de aula para alunos do nível fundamental e médio.


Essa alteração de pedras no tabuleiro do xadrez lingüístico veio mexer profundamente em certos princípios em que se assentavam os alicerces didático-pedagógicos da correção idiomática e, por conseqüência, as metas de política do idioma. O professor de língua, cuja tarefa se caracteriza por um ensino normativo, passa a ser desbancado pelo lingüista que, na qualidade de pesquisador de como a língua funciona e não como deve funcionar, defende o moto ''Deixe o seu idioma em paz!''.


J. Mattoso Câmara Jr. (1904-1970), introdutor da Lingüística Moderna no Brasil e em Portugal, já denunciara, na década de 60, os malefícios resultantes da confusão dessas duas disciplinas corretas mas independentes. Segundo ele, a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática descritiva. Mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer lingüística sincrônica com preocupações normativas.


Correto em língua é tudo o que é tradição fixada na comunidade, tudo o que é normal e usual em cada membro da comunidade com os outros dessa mesma comunidade. Este conceito de correção, tanto no léxico como na gramática, tem vigência circunscrita: chamar o fruto da aboboreira de abóbora ou jerimum tem sua vigência territorial circunscrita ao Sul ou ao Norte e Nordeste do país, respectivamente. E no Sul a vigência da pronúncia abóbora está circunscrita ao regime formal, enquanto abobra está circunscrita ao regime informal e popular.


Na gramática, eu lhe vi tem sua vigência no registro informal e popular, pois não é a construção eleita para os textos de natureza cultural, social ou científica. Todas estas formas e construções são corretas no âmbito da dimensão histórica da língua, mas só algumas são eleitas como exemplares. Professores e gramáticos puristas continuam a exigir que se escreva e até que se fale no Brasil: ''O livro de que eu gosto não estava na biblioteca''; ''Vocês vão assistir a um filme maravilhoso''; ''O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno''; ''Eles se vão lavar/ ou vão lavar-se naquela pia''.


Há dois anos, no cumprimento imperativo de suas disposições estatutárias, a ABL tomou a iniciativa de designar uma comissão constituída de cinco acadêmicos que se debruçaram carinhosamente sobre o nosso problema lingüístico e emitiram um parecer a respeito.


Desse parecer, resultou um documento oficial, talvez um dos raros documentos oficiais já emitidos pela Academia até agora, ao longo dos 107 anos de sua existência, que foi apresentado ao então ministro Cristóvão Buarque, da Educação, definindo a sua atual posição na defesa da língua e da literatura nacionais. Elas são um patrimônio sagrado que, como herança, recebemos dos nossos fundadores e antecessores e que, como legado, devemos transmitir, forte e enriquecido, às nossas futuras gerações.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 24/11/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 24/11/2004