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O 'Livro do Apocalipse' do século 20

 

Quando citamos o admirável mundo novo de celulares, laptops, internet e MP3, estamos nos esquecendo dos milhões de excluídos sobre a face da Terra, que não têm nem o que comer. As cifras são chocantes: mais de um bilhão de pessoas no mundo (sobre)vive com menos de um dólar por dia; 11 milhões de crianças morrem anualmente de doenças que poderiam ser facilmente evitadas; 840 milhões de pessoas vivem com fome crônica e outro bilhão não tem acesso a água potável. Este é o panorama traçado pela maior pesquisa sobre a pobreza no mundo, elaborada por 265 especialistas em desenvolvimento e divulgado pela Organização das Nações Unidas em Nova York em 17 de janeiro de 2005.


Este verdadeiro Livro do Apocalipse do século 20, intitulado Investindo no desenvolvimento: um plano prático para atingir os objetivos de desenvolvimento do milênio, ocupa 3 mil páginas encadernadas em 13 livros e conclui que essa desgraça está longe de ser inexorável: se os países ricos cumprissem a promessa de investir 0,7% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em ajuda ao desenvolvimento, mais de 500 milhões de pessoas poderiam sair da miséria e dezenas de milhares escapariam da morte na próxima década. O Brasil não está fora do problema: embora a classe média das regiões urbanas viva em condições de Primeiro Mundo, nosso país abriga 13 bolsões de miséria que englobam 600 municípios em regiões com 26 milhões de pessoas, o equivalente à população do Marrocos e ocupando um território quatro vezes maior do que o da França. Segundo o coordenador-residente do sistema ONU no Brasil, Carlos Lopes, o país poderia adotar, nesses locais, 16 ações de impacto rápido que constam do relatório Investindo no desenvolvimento.


No plano global, a ONU estabeleceu as suas Metas do Milênio, válidas para até 2015: erradicar a extrema pobreza e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a condição de saúde materna (das gestantes); combater a aids, a malária e outras doenças; assegurar um meio ambiente sustentável; estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.


Diretor do Instituto da Terra da Universidade de Columbia e diretor do Projeto do Milênio da ONU, o professor Jeffrey Sachs afirma: ''O mundo tem tecnologia e know-how para acabar com a pobreza. Sejamos claros: o sistema não está funcionando direito. Existe uma enorme preocupação com a paz e a guerra, mas uma preocupação muito menor com a pobreza e com os necessitados ''. Segundo Sachs, a tragédia do fim do ano passado na Ásia mostrou que existe compaixão e solidariedade no mundo: ''Agora é a hora de os países ricos se mobilizarem contra a tsunami silenciosa que mata milhões: a fome, a pobreza, a falta de acesso à água potável e as doenças ligadas à falta de saneamento e educação''.


O mês de janeiro de 2005 aqueceu-se também com os fóruns globais de Davos (Suíça) e de Porto Alegre. O primeiro, o Fórum Econômico Mundial, reuniu os principais dirigentes mundiais, homens capazes de tomarem decisões concretas, mas preocupados acima de tudo com dinheiro e poder. O segundo, o Fórum Social Mundial, foi o costumeiro festival de ONGs e contestadores integrantes do que não se poderia mais chamar de novíssima esquerda, mas sim de novíssimo protesto global - uma vez que o embate ideológico direita vs. esquerda morreu antes de entrarmos neste milênio. Os fóruns começaram com a notícia vinda de Londres de que as emissões de gases do efeito estufa poderão fazer as temperaturas globais sofrerem um aumento de até 11 graus Celsius, segundo as conclusões de um estudo em escala internacional - mais uma prova grave de que não estamos cuidando devidamente do nosso planeta.


A inclusão digital não poderia deixar de constar da pauta de Davos. E o Brasil foi de certa forma contemplado com uma das medidas de natureza prática tomadas: o Fórum Econômico Mundial anunciou a escolha do país como sede do projeto piloto do programa Itafe, Internet Access for Everyone (Acesso à Internet para Todos). A idéia, lançada no Fórum de Davos de 2004 e mantida por grandes empresas do setor de hardware, software e consultorias, visa acima de tudo promover a inclusão digital dos países emergentes. O Brasil sobrepujou a Índia e o Chile, cogitados inicialmente para sediar o programa. A medida é de extremo interesse para o país, um dos mais populosos do mundo, mas com um índice de apenas 8% da população conectada à internet. Levamos a melhor nesta escolha principalmente pela extensão dos programas já em curso, como o PC Conectado, o de terminais públicos (as chamadas Casas Brasil) e o G-Sac, matriz do E-gover (governo eletrônico), além de iniciativas estaduais e municipais, como os telecentros paulistanos.


É louvável que a inclusão digital chegue para todos, mas não se deve esquecer também da inclusão de um bilhão de seres humanos ao direito de comida, água potável e saúde. Como salientou o presidente francês Jacques Chirac, para resolver o drama da miséria o mundo precisa mobilizar apenas 3% do aumento anual da riqueza. Chirac propôs ainda a criação de uma taxa sobre o combustível usado no transporte aéreo e marítimo e a cobrança de um dólar sobre cada uma das três bilhões de passagens aéreas vendidas anualmente no mundo. E proclamou: ''A juventude da África, da Ásia e da América Latina reivindica, com toda razão, o seu direito a um futuro''.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 30/03/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 30/03/2005