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Eles cuidam de nós

 

Já vivemos tempos mais chiques, em que artigos de jornal às vezes ostentavam epígrafes em língua estrangeira, sem tradução. Senti um pouco falta desses tempos agora, porque quis tacar aí em cima a epígrafe que, de qualquer forma, taco aqui embaixo, embora assim não seja mais epígrafe: will wonders never cease ? - jamais cessarão as maravilhas? É o que me pergunto, mais uma vez, ao tomar conhecimento das medidas que vêm sendo adotadas para nossa segurança, bem como dos conselhos que a experiência e o know-how (lá vem inglês de novo, devo ter-me exposto em excesso ao sereno na Barra da Tijuca) das nossas autoridades nos ditam. É uma demonstração cabal de que, ao contrário do que espalha a canalhocrática mídia, está tudo sob controle e nossa segurança, na verdade, só depende de nós mesmos.


A semana começou com um petardo no coração do tráfico de maconha, um tiro certeiro que, se não o golpeará de morte, seguramente reduzirá drasticamente suas proporções. Vocês também devem ter lido que, pelo menos no Rio de Janeiro, está se iniciando uma campanha para apreender, imagino que em botecos, tabacarias e alguns poucos outros estabelecimentos, o papel usado pelos maconheiros para enrolar os baseados com que levam a nação à ruína. Para quem só recebeu o impacto de notícia agora, confirmo-a. A idéia é não ter contemplação, é não perdoar nada, não deixar seda sobre seda.


Imaginem o choro e ranger de dentes que já não se ouvem em todas a bocas de fumo da cidade, o tráfico arrasado e sedinha outrora ínfima chegando a valer quase um euro, a depender do cerco da lei e da ordem. Dois deputados estaduais, também li, apresentaram projetos sobre o assunto. Um abole a venda de seda para cigarro em qualquer forma e em qualquer lugar do Rio de Janeiro. O outro vai mais longe: propõe que se proíba terminantemente a fabricação da dita seda em todo o território do estado, é o que estou lhes dizendo. Desde o dia em que ouvi a notícia sobre o deputado federal que apresentou, ou vai apresentar, projeto proibindo que se dêem nomes de gente a animais, não me batia com iniciativa de tamanha repercussão para a sociedade.


Fazendo também a minha parte, como o colibri que, com seu delgado biquinho cheio de água, ajuda a apagar o incêndio da floresta, aproveito e chamo a atenção para o esquecimento de uma droga bem mais pesada, a cocaína. Minha sugestão é o imediato confisco dos estoques de canudinhos de suco, em todas as lanchonetes, padarias, confeitarias, sorveterias, botecos e congêneres. Os consumidores usam esses canudinhos para cheirar a droga, se vocês não sabiam. Usam, pensando bem, qualquer tubo que caiba numa narina. O melhor seria, por conseguinte, criar-se a Agência Estadual de Controle de Canudos, Tubinhos e Correlatos, cuja primeira medida será - adivinhem - a criação do Disque-Tubinho, o qual estará franqueado, gratuitamente e sob garantia de anonimato, a qualquer cidadão que dispuser de informações sobre canudos suspeitos.


É necessário abrigar no coração muita má vontade, para não se reconhecer como os governantes, de administradores a legisladores, se esforçam. Mas não é só dando sugestões, como acabo de fazer, que desempenhamos a nossa parte. É também agindo. Por exemplo, ouvi dizer, não sei se é verdade, embora não duvide, que uma autoridade criticou a mãe do Robinho, pois ela, de certa forma, teria sido responsável pelo próprio seqüestro. O filho lhe deu um Mercedes e ela andava no Mercedes. Segundo também soube, não é nenhum Mercedão desses importados, é dos menores, que rolam muito por aí. Mas é Mercedes e a mãe do Robinho não tinha nada que andar desfilando de Mercedes, é muita imprudência, assim também já é quase convidar o criminoso. O Mercedes deve manter-se na garagem para ser olhado às segundas, quartas e sextas (São Paulo usa rodízio para carros, lembrem-se) e alisado nos domingos. Vai ver que, se o Robinho desse à mãe um Rolex ou um colarzinho de pérolas legítimas, ela iria querer usá-los.


Aí também já seria demais. Todo mundo sabe que quem puder ter seu Rolex que tenha, somos um país livre, mas não é para sair exibindo-o por aí. Ter Rolex é uma coisa, usá-lo é outra, inteiramente diferente, e quem tem consciência sabe disso. Ou então contrata seguranças. O que não falta é segurança para contratar, só não vê quem não quer. Alegar-se-á que muita gente não tem dinheiro para pagar seguranças, mas aí, paciência, tudo custa um preço, inclusive curtir um relógio ou sair à noite (ou de dia também, pensando melhor). Então não saia de casa. As grades dos edifícios estão aí mesmo, para proteção geral e os assaltos a edifícios são todos por culpa dos porteiros, tanto assim que aguardo para qualquer instante um projeto de lei extinguindo a categoria dos porteiros e em conseqüência deixando os assaltantes de edifícios inteiramente desnorteados, fora de combate mesmo.


E dá para sair numa boa, tem muita paranóia, muita neura, nesse negócio todo. Basta seguir os conselhos simples das autoridades. Não andar sozinho à noite. Não levar cartão de banco, ou de crédito. Lembrar o dinheiro do assaltante, para não aborrecê-lo com uma frustração que pode ser fatal para sua recuperação, lá em Bangu. Aliás, Bangu, não, mudaram o nome do bairro onde ficam os presídios, agora não há mais presídios em Bangu, embora eles não tenham sido removidos de lá, só trocaram o nome. Já é alguma coisa. Enfim, basta ver a realidade com os olhos desarmados (e o resto do corpo também, porque dá cana, só não dá cana para o ladrão) para perceber que eles cuidam de nós. Mal posso esperar ver na televisão o primeiro condenado por porte de canudinho, é muito bom o sujeito se sentir protegido.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 05/12/2004

O Globo (Rio de Janeiro), 05/12/2004