Estranha posição, a de Albert Camus, na literatura do século passado. Aos 45 anos conquistou, contra todas as previsões, o Prêmio Nobel de Literatura. Nascido na África do Norte, passaria seus anos de formação longe da Europa, só tendo chegado a Paris aos 23 anos de idade. Se por alguma coisa se distinguia esse racionalista do mito, foi pelo aspecto moral de sua obra. Pode Camus ser classificado como um escritor para quem a ética estava acima da técnica (eu estaria inclinado a usar aqui a palavra estética em vez de técnica, se não estivesse convencido de que a estética pega campo maior do que a simples técnica, já que na estética está contido um princípio de ética). É por isto que Germaine Blée classifica as histórias de Camus ("A peste", "A queda", etc,) de "parábolas". Esta era a sua linguagem, este o seu modo de discutir o que às vezes chamava de absurdo das coisas.
Morreu Camus não muito depois do Nobel, num desastre de automóvel, deixando um livro incompleto, "O primeiro homem", agora republicado no Brasil. No caso, todo homem é primeiro homem, no que não conseguirá repetir o que os homens anteriores fizeram. Toda mulher é uma primeira mulher, toda pessoa é uma primeira pessoa, de tal modo que o sentimento normal de qualquer começo é o espanto.
O lado geográfico da vida de Camus marcou seu caminho. Nascido na Argélia, passou ali a infância e a adolescência. Só conheceu Paris já homem feito. Fez seus estudos na África, onde começou também a escrever e a trabalhar em teatro. Foi jogador de futebol, de nome famoso nos campeonatos locais. Organizou - antes dos vinte anos - grupos teatrais, dirigiu peças. Importante: foi ator. Ao chegar a Paris, já estava formado pela África. As novidades, que insuflou na literatura francesa, vinham, em grande parte, dessa diferença de continentes. Por muito cartesiano que tenha chegado a ser (e mostrou na sua adaptação de "Requiem for a nun", de William Faulkner), retinha Camus um africanismo que o impedia de chegar ao ponto de uma completa europeização.
Foi natural que ele escolhesse o mito de Sísifo para símbolo. Quando escreveu sobre o assunto era muito jovem. E não deixava de ser significativo que fosse buscar Sísifo na cultura grega para chamar a atenção daquela segunda metade do século XX. Sísifo vira-se condenado a sem cessar fazer rolar monte acima uma rocha que, por força de seu peso, também incessantemente voltava ao ponto de partida.
Comentário de Camus "Pensaram com razão que não há castigo maior do que o trabalho fútil e sem esperança". Era como Camus via em geral o homem de hoje: entregue a trabalho "fútil e sem esperança".
Contudo, Camus era africano e isto influiu em sua obra. Há uma contradição no africano ocidental, se por tal entendemos o homem nascido e criado na África, mas de cultura européia. Os primeiros séculos do cristianismo apresentaram dois escritores assim: Tertuliano e Santo Agostinho, ambos nascidos no continente africano. A mistura de africanismo a filosofia racionalista pode produzir uma espécie de pensamento que passamos a chamar de existencialismo. Não é sem razão que Santo Agostinho se apresenta como um dos primeiros existencialistas da era cristã, em contraposição ás vezes ao pensamento ortodoxo que viria a produzir um Santo Tomás de Aquino.
É visível, nos textos de Camus, principalmente os de teatro, uma sacralização da palavra. Tal como em Proust, para Camus a literatura era uma religião em si. Embora não pertencesse ativamente a qualquer religião definida, muitas de suas frases acabavam na igreja. Jornais franceses costumavam divulgar pensamentos de Camus - ditos por ele em reuniões ou extraídas de livros e artigos seus - que serviam de temas para sacerdotes católicos e pastores protestantes em suas prédicas em diversos templos, o que se compreende porque as implicações morais do que tinha Camus a dizer pareciam sob medida para as considerações de um padre.
Sua atividade teatral apresentava também semelhanças com o modo de religiosos tratarem de suas liturgias. Mais de uma vez declarou que via no palco um dos púlpitos modernos. Eram púlpitos que precisavam ser aproveitados sempre que possível para fazer com que idéias e pensamentos capazes de mudar pessoas e comunidades chegassem ao maior número possível de ouvintes. Não muito antes de morrer, encenou "Os possessos", de Dostoiévski, peça que adaptou e dirigiu diretamente e de que participou. Insistia em atrair jovens para as peças que escrevia, para os de textos alheios que adaptava ou dirigia, achando que o palco atinge com mais força uma platéia do que qualquer outro meio de comunicação conhecido. Repetia: o palco é um dos púlpitos do apóstolo moderno. Porque, como todo humanista, que busca a justiça e se liga à esperança, Albert Camus se sentia apóstolo. E como tal será lembrado.
Seu último texto, "O primeiro homem", aparece no Brasil em tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silveira.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 31/1/2006