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Personagens universais

 

Por exemplo: os nomes dos personagens. Podia ser qualquer outro aspecto, porém. Cada um dos fios que se entretecem para formar a prosa densa e irresistível de Guimarães Rosa. No final dos anos 60, tendo resolvido que ia focalizar no doutorado esse autor (em cuja obra não existe nada que não seja, antes de mais nada, linguagem), restava-me escolher uma linha de manifestação de sua exacerbadíssima consciência linguística. Um escritor que, confessadamente, procurava seguir o “método de usar cada palavra como se ela tivesse acabado de surgir pela primeira vez”. E que, não contente com esse processo de passar uma limalha no léxico, ainda se permitia inacreditáveis malabarismos sintáticos. Como o de começar um relatório burocrático de supetão, numa linha: “Por exemplo, José Oswaldo”.

Parti, então, de uma hipótese que me parecia óbvia, mas que ainda não havia sido estudada. A de que, diante de cada página em branco, as únicas palavras que o autor não podia, a rigor, usar como se estivessem surgindo pela primeira vez, eram os nomes próprios. A não ser em sua menção inaugural naquela narrativa. Em seguida, batizados os personagens, eles se convertiam nas únicas palavras pré-existentes ao texto que ia ser escrito. Não teriam como não desempenhar um papel relevante no engendramento desse texto, atraindo ou repelindo as outras palavras que o autor escolheria.

Dessa forma, os nomes das criaturas rosianas deixam de ser meros indicadores de identidade, como ocorre na vida real, e passam a ser significativos, pois o autor, ao escolhê-los, já tem em mente o papel que irão desempenhar. Em “Grande sertão: veredas”, construído em torno de um pacto com o demônio, o protagonista Riobaldo (um rio que não flui, mas se fecha num baldo) guarda em seu nome o do diabo. E Diadorim encerra o diá, como tanto o demo quanto o personagem são chamados na narrativa. Duro guerreiro cheio de ódios. Mas também dea, que se revela adorada Deodorina, a Deus dada. Embora finja ser Reinaldo, o que leva à constatação de que “dão par, os dois nomes”. Um exame de perto revela ainda como na própria escolha das palavras usadas os nomes próprios reverberam em rimas, aliterações, alusões, como procurei mostrar em meu estudo e não cabe ficar citando aqui. E se multiplicam em apelidos e apodos, acrescentando novas camadas semânticas no desenrolar da narrativa.

Também nas novelas de “Corpo de baile” o processo é recorrente. Se não levamos em conta os nomes próprios, parte do sentido se perde. Em “O recado do morro”, por exemplo, a significação da história seria outra se os personagens tivessem outros nomes. O vaqueiro Pedro Orósio faz uma viagem pelo sertão. Alguns de seus companheiros de viagem preparam uma cilada para matá-lo. Ele só escapa porque o morro lhe manda uma mensagem, construída ao longo de uma semana, em sete etapas. Os estágios do aviso, em frases truncadas, passam por loucos, crianças e beatos até chegarem a um cantador que lhe dá forma de canção ouvida pelo vaqueiro. Pedro como pedra, Orósio como oros (montanha). Também conhecido como Pê-Boi, pé na terra. Da terra recebe o recado. Depois uma viagem em que percorre as fazendas do Apolinário, de Nhá Selena, do Marciano, de Nhô Hermes, do Jove, de Dona Vininha e do Juca Saturnino. Em companhia dos vaqueiros Helio Dias Nemes, João Lualino, Martinho, Zé Azougue, Jovelino, Veneriano e Ivo Crônico. Assim enfileirados, dá para perceber o que no texto vem esparso e diluído: a alusão aos dias da semana (tais como são nomeados em outras línguas) e aos deuses aos quais são dedicados e seus planetas correspondentes: Apolo/Sol; Selene/Lua; Marte, Mercúrio/Hermes; Júpiter, Vênus, Saturno/Cronos. O que acontece em cada fazenda tem a ver com cada deus dominante, claro (beleza, festa, guerra, comércio/mensagem, poder e fartura, amor, tempo). Mas a Terra escapa. O recado é decifrado por Pedrão Chãbergo (chão e berg , rocha em alemão).

Em “Buriti”, tudo gira em torno do patriarca viril, o grande eixo, sempre comparado à palmeira que dá nome à novela, descrita como se fosse um homem poderoso, símbolo fálico dominante da narrativa. O nome dele é Liodoro Maurício Faleiros. E o nome científico da palmeira é Mauritia vinifera . É um mundo vegetal, cheio de mulheres com nomes de plantas, como Dionéia, Leandra, Alcina. Em “Dão-lalalão”, o próprio texto explicita que “até o nome de Doralda, parece que dá um prazo de perfume”. Em “Cara-de-bronze”, um fazendeiro recluso encarrega o vaqueiro Grivo de ver o sertão e lhe trazer as palavras para descrevê-lo. Outros se juntam em voz coletiva a essa descrição grifada. Entre eles, se dilui o próprio autor, espalhando sua arte entre o vaqueiro Mainarte, outro chamado Moimeichego (que soma “eu” em quatro línguas: moi, me, ich, ego ), um certo João Cantador sobrenomeado Quantidades e os comentários ao pé de página feitos por um Soares Guiamar, anagrama de Guimarães Rosa.

Os exemplos são inesgotáveis e não cabem em nosso espaço. Plenos, são nomes que enchem os tons - para usar uma expressão do autor. Mas são apenas um fio a se puxar, de tantos que formam o texto de um autor transbordante e incontível.

 

O Globo - Prosa e Verso - (Rio de Janeiro) 11/03/2006

O Globo - Prosa e Verso - (Rio de Janeiro), 11/03/2006