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Tem governo aí, não?

 

Uma coisa que ninguém pode nos negar é a originalidade. Já começa que devemos ser, como diziam os professores, o mais extenso país do mundo em terras contínuas e férteis. E, se não somos, estamos perto. Somos também um país dotado de imensos recursos naturais e um clima no geral amigável e não temos tribos ou facções secularmente inimigas. Somos, assim ou assado, uma nação, com a mesma língua e os mesmos traços culturais. Fica difícil entender, portanto, a razão por que tanto atraso e problemas tão terríveis.


Não vou nem pensar em repetir algo das toneladas de papel que já foram gastas para explicar o Estado, justificá-lo, caracterizá-lo ou mesmo condená-lo. Vamos pelo menos concordar num ponto, o que não é muito difícil. As obrigações básicas de um Estado são segurança, educação e saúde, entendidas as três em seus sentidos mais latos. O Estado brasileiro tem uma estrutura enorme e complexa, sobre a qual ele próprio não dispõe de dados em muitas áreas, tanto assim que fazer recadastramentos é especialidade nacional e todo ano há vários, inclusive repetidos.


Para sustentar esse mamute, os brasileiros pagam mais impostos que os cidadãos da maior parte dos outros países. No entanto, não obtêm praticamente nada que preste como retorno de uma carga tributária indecente, até porque os ricos não costumam pagar impostos e mesmo bancos, cuja Terra Prometida é seguramente o Brasil, não recolhem nada sobre sua renda. Não canso de lembrar meus amigos ricos que recebem restituição. Sabe como é, tudo é da empresa - o carro, os empregados domésticos, as contas do dia-a-dia - de maneira que não só o rico abate esses gastos como não precisa de dinheiro vivo, a não ser uns trocados para miudezas. Até se convida a moça para jantar, o jantar é pago pelo cartão da empresa, sai como despesa de negócios. E, se a moça for profissional, dessas que nordestino gosta de pegar em bordéis semidisfarçados do famoso Sul do país (Rio e São Paulo), é bem capaz de essa despesa, digamos, de entretenimento, ser contabilizada como da empresa. Até se, generosamente, a empresa patrocina um atleta ou um evento cultural, é às custas do pagador de impostos, pois se abate do dinheiro que seria público.


Não que essa última hipótese represente algum consolo, porque vem de novo a originalidade brasileira mostrar como de fato somos diferentes. O Estado aqui vive, mal e porcamente, para sustentar o próprio Estado, aí compreendidos a roubalheira e o desperdício. Cada vez mais o Estado parece um fim em si mesmo. Pagam-se impostos para quê? Para quitar dívidas obscenas, para sustentar o monstrengo e para fornecer o dinheiro necessário aos esquemas de corrupção que existem em absolutamente qualquer setor que se investigue - ou pelo menos é o que parece, para quem se inteira das notícias.


E agora, por exemplo, quem está tomando conta da casa? A máquina parece que vai indo na banguela, como quase sempre, mas o Executivo? Bem, a chefia do Executivo, exercida pelo presidente da República, segue em linhas gerais, o mesmo caminho que a anterior. Não fizeram nada (a primeira fez as privatizações que melhoraram tanto a nossa vida, mas principalmente a dos envolvidos diretamente), a não ser bazofiar reformas que nunca de fato vieram e cuidar da reeleição. O atual presidente, com todo o respeito, não se declara candidato, com uma cara-de-pau exemplar. Tratando-se de Sua Excelência, com toda a certeza é de madeira de lei da melhor qualidade e legalizada, pois pirata só DVD mesmo. Dizem - mas é claro que esse pessoal inventa muito - que outro dia ele mandou parar sua comitiva inesperadamente, ao ver um aglomerado em frente a uma espécie de boteco. Depois de mandar lá dois funcionários, um deles inspetor de vaias especializado em ver se ele não será vaiado, voltaram com a informação de que era mais um puxadinho. Aí ele foi lá, inaugurou o puxadinho, vestiu o avental do mestre-cuca e tacou um improviso a respeito de como nunca se fizeram tantos puxadinhos de alto nível neste país. E assim lá vai a campanha custeada pelo Estado, desde os vencimentos dele até as chuvas de bolsas e cestas de tudo quanto é tipo, uma grande Legião Brasileira de Assistência, com a suprema vantagem de atender a todos, sem distinção de raça, religião ou situação financeira e social. É isso que o povo quer, é isso que ganha voto e os otários não aprendem. Para cumprir que programa de governo o Executivo quer continuar no poder? Nenhum, que se saiba, além do Assistencialismo Novo, nome com que seguramente os historiadores futuros designarão esta afortunada era. O poder é para o poder e o Estado é para o Estado.


Devia estender-me mais também sobre um Congresso praticamente desmoralizado e visto pelo povo como um antro de bandidagem escolada, que não trabalha e atribui a seus membros privilégios inauditos. Tem tanta consciência de que não representa ninguém além dos próprios interesses que, na hora de vermos se estamos representados mesmo, eles votam secretamente e se escondem de nós, de quem, aliás, não são patrões apenas na hora da campanha. A sensação que se tem é que ninguém está de fato interessado no país, ninguém vai reformar nada que o prejudique e ninguém nem mesmo legisla para justificar o nome, isso fica a cargo do Nosso Guia (ou Chefe da Ditamole da MP, no ver de alguns).


Faltou espaço para o Judiciário, depois eu falo nele. Temos Judiciário? Claro que temos, olhem só como ele vem interferindo no Congresso a favor do Executivo. Mas eu não perguntava isso, fazia apenas a mesma pergunta que me fez um vizinho que está com uma ação rolando há cerca de vinte anos, sem solução à vista.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 26/03/2006

O Globo (Rio de Janeiro), 26/03/2006