A morte de Josué Montello, ocorrida há uma semana, deixa-o cada vez mais vivo entre nós. Foi ele autor de uma obra literária aberta e aliciante, numa linhagem que veio de Manuel Antonio de Almeida, passou por José de Alencar e Aloísio de Azevedo, atingiu uma culminância em Machado de Assis e continuaria em Lima Barreto até pousar na arte narrativa de Josué.
Sua obra-prima, "Os tambores de São Luís", parece embarafuscar-se pela nossa ficção adentro e abrir um caminho próprio de feitura literária. Assim foi Josué Montello desde o começo de sua atividade literária.
Em "Décima noite", "O labirinto de espelhos", "Os degraus do Paraíso", "A luz da estrela morta" e no livro de novelas "Duas vezes perdidas", estabeleceu Josué um corpo ficcional da mais alta qualidade que mostrava de que maneira o romance brasileiro nos revela como povo e como indivíduos desse povo. Com "Os tambores de São Luís" pegaria ele o ponto mais fundo e mais sério de nossa mistura racial e de nossa diversidade humana.
Quando esse romance teve sua edição francesa, "Les tambours noirs", como dois romances meus igualmente ligados à cultura africana - "A casa da água" e "O rei de Ketu" - fui convidado a falar para alunos de letras da Sorbonne sobre o livro de Josué.
Lembro-me do interesse pelo assunto demonstrado por esses alunos e pelo modo como entenderam o romancista, que pegara sua gente do Maranhão para erguê-la a uma posição de símbolo e retrato, mas símbolo e retrato que surgem vivos, com um tempo e um espaço que nos envolvem como se neles estivéssemos inseridos.
Uma análise puramente material da ferramenta literária de Josué Montello daria uma contagem de bons e sólidos substantivos, manejando (ou sendo manejados por) verbos firmemente plantados no campo da ação, e servidos por adjetivos e advérbios absolutamente necessários à estruturação da história.
Conseguiu Josué unir a sabedoria da ficção clássica, passível de seguir uma crescente urdidura dramática, a uma novidade que leva a narrativa a um ápice de interesse. Sente-se no livro um avanço lento e lúcido, que de repente se transforma num movimento rápido e forte, quase como se o autor estivesse disposto a uma rebelião contra o romance tradicional, o que na realidade acontece a cada instante quando os personagens mais importantes da história, que são os próprios tambores, mostram que são eles os donos do romance.
Os tambores da Casa Grande das Minas abrem o romance com a força de seus significados rituais. Poderiam ser os tambores do Opô Afonjá da Bahia ou os tambores das centenas de agrupamentos que se curvam diante de uma tradição africana que se firmou no Brasil.
De minha experiência de vida na África, onde entrei em contato com os tambores de Oió, terra de Xangô, e os de Keto, terra de Oxóssi, foi natural que descobrisse, nos tambores que Josué recriou, a mesma ligação que me levou a sentir, na cultura africana, um lado importante de nosso complexo cultural.
Escrevendo um romance que é também inspirado num crime famoso, o da Baronesa de Grajaú, leva Josué a narrativa a abranger todo o universo deste País que é nosso e que às vezes desconhecemos.
Para isto mesmo estão aí os romancistas como Josué Montello, que nos explicam e analisam, pondo-nos em ações de uma história, fazendo-nos caminhar, odiar, amar e às vezes matar ou morrer, já que o romance, tal como nós o concebemos desde que Cervantes inventou a triste figura de Dom Quixote, passou a ser nossa leitura preferida.
Para isto viveu Josué Montello uma vida inteira preso às palavras, transformando-as em gente e pondo todos os sentimentos imagináveis como base dos movimentos de seu mundo, obrigando-nos a ver, nos seus personagens, a nossa própria face.
Para isto deixou Josué Montello uma obra que não se fixou nos romances ou na literatura normal, já que também compôs volumes e mais volumes de seus "Diários", que retratam o Brasil dos últimos noventa anos, em sua literatura, em sua política, em suas alegrias e em seus desacertos, em seus momentos de fantasia e de riso, em seus gestos de fuga e de entrega. O ato de ler e reler hoje os "Diários" de Josué pode levar-nos a uma avaliação precisa do que foi todo este estranho tempo que tentamos viver.
A mais recente edição de "Os tambores de São Luís", de Josué Montello, foi lançada este ano pela Nova Fronteira em sua coleção "40". Prefácio de Wilsom Martins, responsabilidade editorial de Isabel Aleixo e Daniele Cajueiro. Preparação de originais de Anna Carla Ferreira. Revisão de Ana Elisa Vianna, Denise Scofano, Maria Beatriz Branquinho, Michele Sudoh, Patrícia Reis e Rachel Agavino. Diagramação da Arte das Letras. Capa e projeto gráfico de Victor Burton. Produção gráfica de Lígia Barreto Gonçalves.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 21/03/2006