SONETOS
I
Para cantar de Amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento,
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é que de compaixão sois animados:
Já vós vistes que aos ecos magoados
Do Trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.
Bem sei, que de outros Gênios o destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino;
O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um Peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.
IV
Sou Pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos (lhes digo), que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
VII
Onde estou! Este sítio desconheço:
Quem fez tão diferente aquele prado!
Tudo outra natureza tem tomado;
E em contemplá-lo tímido esmoreço.
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço
De estar a ela um dia reclinado:
Ali em vale um monte está mudado:
Quanto pode dos anos o progresso!
Árvores aqui vi tão florescentes,
Que faziam perpétua a primavera:
Nem troncos vejo agora decadentes.
Eu me engano: a região esta não era:
Mas que venho a estranhar, se estão presentes,
Meus males, com que tudo degenera!
VIII
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e às vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
XX
Ai de mim! como estou tão descuidado!
Como do meu rebanho assim me esqueço,
Que vendo-o tresmalhar no mato espesso,
Em lugar de o tornar, fico pasmado!
Ouço o rumor, que faz desaforado
O lobo nos redis; ouço o sucesso
Da ovelha, do Pastor; e desconheço
Não menos do que ao dono, o mesmo gado;
Da fonte dos meus olhos nunca enxuta
A corrente fatal, fico indeciso,
Ao ver quanto em meu dano se executa.
Um pouco apenas meu pesar suavizo,
Quando nas serras o meu mal se escuta
Que triste alívio! ah infeliz Dalizo!
FÁBULA DO RIBEIRÃO DO CARMO
SONETO
A vós, canoras Ninfas, que no amado
Berço viveis do plácido Mondego,
Que sois da minha lira doce emprego,
Inda quando de vós mais apartado;
A vós do pátrio Rio em vão cantado
O sucesso infeliz eu vos entrego;
E a vítima estrangeira, com que chego,
Em seus braços acolha o vosso agrado.
Vede a história infeliz, que Amor ordena,
Jamais de Fauno, ou de Pastor ouvida,
Jamais cantada na silvestre avena.
Se ela vos desagrada, por sentida,
Sabei que outra mais feia em minha pena
Se vê entre estas serras escondida.
* * *
Aonde levantado
Gigante, a quem tocara,
Por decreto fatal de Jove irado,
A parte extrema e rara
Desta inculta região, vive Itamonte,
Parto da terra, transformado em monte;
De uma penha, que esposa
Foi do invicto Gigante,
Apagando Lucina a luminosa,
A lâmpada brilhante,
Nasci; tendo em meu mal logo tão dura,
Como em meu nascimento, a desventura.
Fui da florente idade
Pela cândida estrada
Os pés movendo com gentil vaidade,
E a pompa imaginada
De toda a minha glória num só dia
Trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta e prado
Bem polido mancebo,
Girava em meu poder tão confiado,
Que até do mesmo Febo
Imaginava o trono peregrino
Ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco, ou penha,
Que não desse tributo
A meu braço feliz; que já desdenha,
Despótico, absoluto,
As tenras flores, as mimosas plantas
Em rendimentos mil, em glórias tantas,
Mas ah! Que Amor tirano
No tempo, em que a alegria
Se aproveitava mais do meu engano;
Por aleivosa via
Introduziu cruel a desventura,
Que houve de ser mortal, por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
Aonde a Pátria tive,
Vivia Eulina, esse prodígio raro,
Que não sei se inda vive,
Para brasão eterno da beleza,
Para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
A mais prezada filha;
Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo
Se lhe prostra, se humilha
Na cópia da riqueza florescente,
Destro na lira, no cantar ciente.
De seus primeiros anos
Na beleza nativa,
Humilde Aucolo, em ritos não profanos,
A bela Ninfa esquiva
Em voto ao sacro Apolo consagrara;
E dele em prêmio tantos dons herdara.
Três lustros, todos d’ouro,
A gentil formosura,
Vinha tocando apenas, quando o louro,
Brilhante Deus procura
Acreditar do Pai o culto atento,
Na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa de Eulina
Respirava a beleza;
De ouro a madeixa rica, e peregrina
Dos corações faz presa;
A cândida porção da neve bela
Entre as rosadas faces se congela.
Mas inda que a ventura
Lhe foi tão generosa,
Permite o meu destino que uma dura
Condição rigorosa
Ou mais aumente enfim, ou mais ateie
Tanto esplendor, para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
De tantos sacrifícios
Abrandar o seu Nume: a dor veemente,
Tecendo precipícios,
Já quase me chegava a extremo tanto,
Que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
De render-lhe a fereza,
Busquei na minha indústria o meu despenho:
Com ingrata destreza
Fiei de um roubo (oh mísero delito!)
A ventura de um bem, que era infinito.
Sabia eu como tinha
Eulina por costume,
(Quando o maior planeta quase vinha
Já desmaiando o lume,
Para dourar de luz outro horizonte)
Banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir destinado
Com o furto precioso
Desde a Pátria, onde tive o berço amado;
Recolhi numeroso
Tesouro, que roubara diligente
A meu Pai, que de nada era ciente,
Assim pois prevenido
De um bosque à fonte perto,
Esperava o portento apetecido
Da Ninfa; e descoberto
Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)
Chego; abraço a mais rara gentileza.
Quis gritar; oprimida
A voz entre a garganta
Apolo? diz, Apol... a voz partida
Lhe nega força tanta
Mas ah! Eu não sei como, de repente
Densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente ao vento
Vou estendendo os braços:
Buscar nas sombras o meu bem intento:
Onde a meus ternos laços...!
Onde te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
Mais ia por diante;
Quando entre a nuvem densa
Aparecendo o corpo mais brilhante,
Eu vejo (oh dor imensa!)
Passar a bela Ninfa, já roubada
Do Númen, a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
O louro Apolo presa;
E já ludíbrio da fadiga minha,
Por amorosa empresa,
Era despojo da Deidade ingrata
O bem, que de meus olhos me arrebata,
Então já da paciência
As rédeas desatadas,
Toco de meus delírios a inclemência;
E de todo apagadas
Do acerto as luzes, busco a morte impia,
De um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando,
E sobre mim caindo,
Na funesta lembrança soluçando,
De todo confundindo
Vou à verde campina; e quase exangue
Entro a banhar as flores de meu sangue.
Inda não satisfeito
O Númen soberano,
Quer vingar ultrajado o seu respeito;
Permitindo em meu dano,
Que em pequena corrente convertido
Corra por estes campos estendido.
E para que a lembrança
De minha desventura
Triunfe sobre a trágica mudança
Dos anos, sempre pura,
Do sangue que exalei, ó bela Eulina,
A cor inda conservo peregrina.
Porém o ódio triste
De Apolo mais se acende;
E sobre o mesmo estrago, que me assiste,
Maior ruína empreende:
Que chegando a ser impia uma Deidade,
Excede toda a humana crueldade.
Por mais desgraça minha,
Dos tesouros preciosos
Chegou notícia, que eu roubado tinha
Aos homens ambiciosos;
E crendo em mim riquezas tão estranhas,
Me estão rasgando as míseras entranhas.
Polido o ferro duro
Na abrasadora chama
Sobre os meus ombros bate tão seguro,
Que nem a dor, que clama,
Nem o estéril desvelo da porfia
Desengana a ambiciosa tirania.
Ah, mortais! Até quando
Vos cega o pensamento!
Que máquinas estais edificando
Sobre tão louco intento?
Como nem inda no seu Reino imundo
Vive seguro o Báratro profundo!
Idolatrando a ruína
Lá penetrais o centro,
Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;
E das entranhas dentro
Da profanada terra;
Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.
Que exemplos vos não dita
Do ambicioso empenho
De Polidoro a mísera desdita!
Que perigos o lenho,
Que entregastes primeiro ao mar salgado,
Que desenganos vos não tem custado!
Enfim sem esperança,
Que alívios me permita,
Aqui chorando estou minha mudança;
E a enganadora dita,
Para que eu viva sempre descontente,
Na muda fantasia está presente.
Um murmurar sonoro
Apenas se me escuta;
Que até das mesmas lágrimas que choro,
A Deidade absoluta
Não consente ao clamor, se esforce tanto,
Que mova à compaixão meu terno pranto.
Daqui vou descobrindo
A fábrica eminente
De um grande Cidade; aqui polindo
A desgrenhada frente,
Maior espaço ocupo dilatado,
Por dar mais desafogo a meu cuidado.
Competir não pretendo
Contigo, ó cristalino
Tejo, que mansamente vais correndo:
Meu ingrato destino
Me nega a prateada majestade,
Que os muros banha da maior Cidade.
As Ninfas generosas,
Que em tuas praias giram,
Ó plácido Mondego, rigorosas
De ouvir-me se retiram;
Que de sangue a corrente turva, e feia
Teme Ericina, Aglaura, e Deiopeia.
Não se escuta a harmonia
Da temperada avena
Nas margens minhas; que a fatal porfia
Da humana sede ordena,
Se atenda apenas o ruído horrendo
Do tosco ferro, que me vai rompendo.
Porém se Apolo ingrato
Foi causa deste enleio,
Que muito, que da Musa o belo trato
Se ausente de meu seio,
Se o Deus, que o temperado coro tece,
Me foge, me castiga, e me aborrece!
Enfim sou, qual te digo,
O Ribeirão prezado,
De meus engenhos a fortuna sigo;
Comigo sepultado
Eu choro o meu despenho; eles sem cura
Choram também a sua desventura,