Antonio Cicero decidiu morrer, mas, num daqueles paradoxos tão presentes na poesia, teve a vida renovada, quinta passada, na Academia Brasileira de Letras — instituição que entre nós consagrou o princípio da imortalidade, a ideia de que os sempre lembrados permanecem vivos.
A homenagem, um pequeno show da irmã Marina Lima, já estava prevista antes de o poeta, vítima de Alzheimer, optar por um suicídio assistido na Suíça.
Realizado depois de sua morte, o evento, que contou também com a leitura de textos de e sobre Cicero por quatro acadêmicos, ganhou um significado ainda maior.
Foi uma celebração radical do poeta, letrista e filósofo, e, principalmente, de sua obra — a criação que dá a qualquer autor, pelo menos, a doce ilusão de ser capaz de driblar o fim.
Marina deixou isso evidente ao revelar que o show tinha sido o último pedido do irmão, para que fossem lembradas as músicas que haviam composto mundo afora.
Afetada por um erro médico, a voz de Marina não é a mesma que embalou tanta gente a partir do fim dos anos 1970. Mas nenhum dos presentes ao Teatro R. Magalhães Jr, na ABL, era o mesmo daquela época, uns poucos sequer haviam nascido.
O reencontro com a artista que compôs e lançou tantos clássicos — a maioria, em parceria com Cicero — carregava, portanto, marcas do tempo em praticamente todos que estavam por lá.
Algo que reforçava a ausência e — outro aparente paradoxo — a presença do poeta: "Quem sabe o fim não seja nada/ E a estrada seja tudo", como na letra de "O meu sim", composta pela dupla e apresentada no show.
As canções, os poemas e os textos deram ao espetáculo um ar de sarau, de festa que se sobrepunha à ausência do inspirador daquela tarde.
Pegando carona com os versos de Vladimir Maiakóvski, não estávamos alegres — afinal, Cicero morreu —, mas a permanência de sua obra nos tirava um pouco da razão de ficarmos tristes: o mar da história é agitado.
Na véspera, a ABL elegera seu novo integrante, o romancista Edgar Telles Ribeiro, que herdará a cadeira 27, que fora ocupada pelo poeta. A homenagem a Cicero e a eleição marcaram o fim e o início de ciclos só aparentemente contraditórios.
É como ressalta, numa de suas mais belas canções, o também acadêmico Gilberto Gil (um dos que estavam no teatro): "Se a morte faz parte da vida/ E se vale a pena viver/ Então morrer vale a pena/ Se a gente teve o tempo para crescer/ Crescer para viver de fato/ O ato de amar e sofrer".
Aos 79 anos, Antonio Cicero decidiu morrer ao perceber que não teria mais uma vida plena como a louvada pelo confrade. Devido às circunstâncias, seria um exagero dizer que, como na letra de Gil, ele tenha abraçado sua morte — mas abriu seus braços e nos ajuda a fazer um país.
Matéria na íntegra: https://www.correiodamanha.com.br/colunistas/fernando-molica/2024/12/172992-recital-renova-imortalidade-de-cicero.html
16/12/2024