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ABL na mídia - O Globo - Antonio Cicero: livro póstumo de ensaios traz à tona ideias que pautaram filósofo nos últimos anos de vida

 

Debilitado por problemas neurológicos decorrentes do Alzheimer, o poeta, crítico e filósofo Antonio Cicero passou a ter dificuldades para escrever ao final da vida. Antes de se submeter ao procedimento de morte assistida na Suíça, em outubro, o autor revisitou alguns de seus textos mais antigos e caiu nos ensaios filosóficos escritos entre 2005 e 2020 para as edições do tradicional ciclo de conferências “Mutações”. Satisfeito com o que leu, acalentou a ideia de publicá-los em livro.

Lançado esta semana, pouco mais de um mês após a sua morte, “O eterno agora” (Companhia das Letras) reúne as ideias que “provocaram e povoaram” o período de maturidade de Cicero, como ele aponta na apresentação. Os ensaios percorrem um vasto território intelectual: vão das origens da palavra escrita ao pós-humano, passando por implicações éticas das novas tecnologias, crise da civilização moderna e relações entre arte, imaginação e preguiça.

O conjunto é tão abrangente como as ocupações de seu autor, um poeta-filósofo que se guiava pela razão, um defensor dos cânones que se inseriu em movimentos contraculturais, e um imortal da Academia Brasileira de Letras que eletrizou as pistas de dança escrevendo sucessos da música popular brasileira.

“O eterno agora” é o primeiro de uma série de três publicações póstumas, que inclui ainda uma poesia completa (com alguns versos inéditos e esparsos) a ser lançada em meados de 2025; e uma reunião das letras que compôs para intérpretes como João Bosco, Lulu Santos e sua irmã Marina Lima.

De alguma forma, os textos de “O eterno agora” tocam nessas diferentes facetas de Cicero, conectando arte, filosofia e ética. O livro é dedicado ao filósofo Adauto Novaes, criador do Ciclo Mutações, que sempre definia os temas a serem debatidos em cada edição do evento. Para Adauto, o Cicero poeta e o Cicero filósofo andavam sempre juntos. Seus versos tinham um sentido de análise, assim como os seus ensaios expressavam um sentido literário.

— A relação entre poesia e filosofia era uma das grandes questões de Cicero — diz Adauto. — Nesse livro de ensaios, em pelo menos dois textos ele recorre a Homero e ao (poeta lírico e filósofo alemão) Friedrich Hölderlin. Estava sempre buscando filósofos para falar da poesia e sempre buscando poetas para falar dos filósofos.

Outra característica essencial de Cicero era o gosto pela discordância, mas “no bom sentido”, lembra Adauto Novaes.

— Antes de cada ciclo do Mutações, os conferencistas se reuniam durante três dias em Tiradentes (Minas Gerais) para expor seus temas — lembra Adauto. —Eram discussões livres, em que cada conferencista criticava o outro. Cicero costumava citar Alain (apelido do filósofo francês Émile-Auguste Chartier, morto em 1951), que dizia que “pensar é dizer não”. Cicero ia nessa linha, de que o pensamento dele também era o pensamento do outro.

Editora de “O eterno agora”, Alice Sant’Anna acredita que a obra traz uma das marcas de Cícero: a dicção aberta e acessível.

— Como filósofo, ele mergulha fundo nas referências e usa todo o seu repertório, ao passo que sua poesia é mais direta — diz Alice. — O livro também mostra o incrível leitor de literatura brasileira que ele foi, trazendo para conversas filosóficas a obra de poetas como Ferreira Gullar e Manuel Bandeira.

De acordo com o filósofo Fernando Muniz, Cicero contrariou a comunidade filosófica da época ao lançar “O mundo desde o fim”, em 1995. O livro, segundo Muniz, foi recebido com frieza por atacar “o irracionalismo e o relativismo” vigentes.

— Cicero apresentou uma tese originalíssima sobre a diferença entre poesia e filosofia — diz Muniz. — A tese causou e causa mal-estar no nosso ambiente cultural acadêmico que sempre buscou a substituição da filosofia pela poesia, ou a justificação filosófica da poesia, ou ainda uma espécie de equiparação de estatuto entre as duas.

Amigo de Cicero desde os anos 1990, o acadêmico Eduardo Giannetti conta que a tensão entre literatura e filosofia era um assunto recorrente entre eles. Os dois, por sinal, divergiam neste tópico. Giannetti tinha 23 anos quando viu Cicero pela primeira vez, nos anos 1980, na chácara de um amigo em comum nos arredores de Ubatuba. De manhã, o economista foi dar um passeio e encontrou o poeta no meio da mata, lendo em voz alta versos de Horácio em latim.

— Não entendi por que ele lia em voz alta se estava só — conta Giannetti. — Cicero respondeu: “Porque esses versos foram escritos para serem ouvidos.” Naquele momento, fiquei impressionado com a seriedade com que encarava os clássicos. Depois, em1995, Caetano Veloso me recomendou a leitura de “O mundo desde o fim”, dizendo que Cicero tinha escrito o melhor livro de filosofia dos últimos anos. Fiquei impactado com a leitura e quis conhecê-lo melhor.

A partir daí, Caetano, Giannetti e Cicero estreitaram laços, encontrando-se com frequência para discutir filosofia em conversas livres e bem-humoradas. Giannetti e Cicero sempre bebendo; Caetano, sóbrio. Nos últimos tempos, o economista ficou intrigado com a insistência do amigo em discutir as implicações éticas da eutanásia. Sempre que via oportunidade, o poeta enveredava por este tema.

Tudo fez sentido quando Giannetti recebeu a carta de despedida de Cicero enviada a seus amigos logo após a sua morte. O poeta revelou que o Alzheimer o impedia até mesmo de se concentrar na leitura, “a coisa que eu mais gostava no mundo”. “Pois bem”, escreveu ele, “como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”.

— Cicero foi uma das pessoas mais racionais que já conheci — diz Giannetti. —Ele tinha um compromisso inabalável com a racionalidade. A carta que ele deixou não poderia ser mais epicurista. Epicuro dizia que a morte não é nada para nós, pois, quando existimos, ela não existe. E, quando a morte existe, não existimos mais. Portanto, não há nada a temer.

“A morte também tem arte”, diz o verso final de “La Capricciosa”, poema de Cicero publicado em seu livro “Porventura”, de 2012, e resgatado na mais nova edição da Revista Brasileira. A publicação trimestral da ABL traz uma homenagem ao ocupante da cadeira 27, com uma seleta de suas poesias e textos de algumas de suas conferências na ABL (incluindo a sua última palestra na instituição, ministrada apenas duas semanas antes da sua morte, na qual fazia um balanço de sua obra).

Outro poema de “Porventura” relembrado pela revista, “O fim da vida”, é fiel ao espírito epicurista mencionado pelos amigos: “Conhece da humana lida/ a sorte: o único fim da vida/ é a morte/ e não há, depois da morte/ mais nada./ Eis o que torna esta vida/ sagrada: ela é tudo e o resto, nada”.

— Cicero foi um dos intelectuais mais completos da minha geração — diz a acadêmica Rosiska Darcy, diretora editorial da Revista Brasileira. — Além de todas as qualidades, tinha uma índole bonita. Era um príncipe. Quando recebi sua carta, fiquei dilacerada, mas depois entendi seu ato de coragem. Ele foi um homem muito livre, que viveu como quis e escolheu morrer da mesma forma. Não vejo sua morte como uma manifestação depressiva, mas como um último grito de liberdade.

Marina lembra que teve a oportunidade de homenagear o irmão ainda em vida, nos seus últimos três shows. O primeira na Praia de Ipanema, cenário de diversas composições dos dois; o segundo no Teatro Prio; e o último em setembro, na abertura da exposição “Fullgás”, ainda em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil.

— Cicero partiu repentinamente, mas a presença dele está por toda parte — diz Marina. — Nós fomos dois irmãos na vida e na arte, nada de nós era estranho um para o outro. Eu compreendi você, Cicero. E agora ele colocou novamente o sarrafo em outro nível. Entendo meu irmão. Ele foi coerente com tudo que pensava, até o fim. Eu fico por aqui. Ainda me sinto potente pra próxima parada.

Nesta quinta-feira (12), às 17h30, a ABL realizará o último desejo de Cicero: um show-recital de Marina Lima na instituição. A cantora, que compôs com o irmão músicas como “Fullgás” e “Acontecimentos”, pediu a Rosiska Darcy, Eduardo Giannetti e outros membros da ABL para lerem poemas e textos de Cicero no palco. A apresentação já estava programada desde o início do ano, mas ganhou um peso emocional ainda maior após a morte do acadêmico. A entrada é franca, com inscrições pela internet. Serão abertas mais 10 vagas a partir das 10h desta quinta-feira.

Marina lembra que teve a oportunidade de homenagear o irmão ainda em vida, nos seus últimos três shows. O primeira na Praia de Ipanema, cenário de diversas composições dos dois; o segundo no Teatro Prio; e o último em setembro, na abertura da exposição “Fullgás”, ainda em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil.

— Cicero partiu repentinamente, mas a presença dele está por toda parte — diz Marina. — Nós fomos dois irmãos na vida e na arte, nada de nós era estranho um para o outro. Eu compreendi você, Cicero. E agora ele colocou novamente o sarrafo em outro nível. Entendo meu irmão. Ele foi coerente com tudo que pensava, até o fim. Eu fico por aqui. Ainda me sinto potente pra próxima parada.

Matéria na íntegra: https://oglobo.globo.com/cultura/2024/12/antonio-cicero-livro-postumo-de-ensaios-traz-a-tona-ideias-que-pautaram-filosofo-nos-ultimos-anos-de-vida.ghtml

09/12/2024