Os poetas bebem de fontes ainda não acessíveis à ciência. Freud remete à noção de conhecimento, saber e verdade transmitidos pela poesia. Verdade, conhecimento e liberdade. No romance Gradiva, de Jensen, o jovem arqueólogo associa a imagem da jovem em alto-relevo (nomeada Gradiva) descoberta nas ruínas de Pompeia à Zoé Bertgang, sua namoradinha de infância. Freud, ao analisar a obra (estudo seminal na área da psicanálise) esclarece como a associação Gradiva/Zoé ressuscita a infância e liberta desejos reprimidos do jovem pesquisador.
E o cura de enfermidades que a medicina não conseguira até então curar. O nosso personagem Brás Cubas, do Machado, ao optar por contar a sua história de vida pelo fim- " hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim" - não ressuscita, na verdade, lembranças da infância e desejos recalcados enfim libertos? Descer à cova, o corpo desvelado e exposto à visitação de quem quiser (só vieram 11 pessoas!) não relembra a nostalgia da nudez infantil que ainda não desperta reações de vergonha? Afastar o "início" não é trazê-lo inconscientemente à atualidade para, só então, conseguir contar a sua vida mais objetivamente e libertar-se de um peso? Ou, como analisa Sarah Kofman, a nudez do rei no conto de Andersen ou de Ulisses, da Odisséia, diante de Nausica, não revela, com essa nudez ingênua, o desejo imperioso de alterar os limites traçados pela moral?
Escrevi no " O desenho extraviado de Hieronymus Bosch " a dificuldade do escritor para encontrar as palavras : "Releio o que acabo de escrever no whatsApp, quis escrever a mesma coisa em outro espaço, me apavoro com o que acabo de ler , as palavras não têm nada a ver, a palavra amor desencadeia odor, pavor, ardor, boto a culpa na lógica do celular, escreve de forma automática, ou então as teclas são muito estreitas, errei ao digitar, refaço tudo, reescrevo cuidando com as letras, devagar, mas o sentido dos vocábulos é diferente do que eu queria, pal avra errada, , reflito, apago, a estrutura do meu pensamento não consegue ser transmitida em palavras escritas, como organizar os sentidos, como se faz mesmo? Penso em Ana Júlia, mas Ana Júlia me engana, me trai com o meu amigo mais próximo. Penso nos vampiros do Bosch e no livro que estou escrevendo. Tomo dois comprimidos, me acalmo, as palavras retomam aos poucos o seu caminho semântico, logo volto a não compreender o que acabo de redigir, opto por ditados populares , metáforas puídas, talvez elas encerrem o meu pensamento, me arrependo, são constrangedoras, retomo a escrita, a separação das palavras no final da frase altera o pedaço que vinha depois, vocábulos ilógicos, inexistentes ou transformados em outra coisa, interrompo em soluços, o pranto me consome, me esvazia, vontade de desistir, mandar tudo para o inferno. A Ana Julia aparece no celular, lumi nosa, ofuscante, deslumbrante, os plainos verdes-azulados dos mares da ilha de Santa Catarina ao fundo realçam ainda mais o seu rosto. Ela me propõe entrar numa conversa com a nossa patota via zoom, recuso a lenga-lenga in limine, o curso de Direito me oferece a locução adverbial latina, repito para ela, in limine, Ana Julia, nem vem com essa proposta. Encerro a chamada de vídeo abruptamente, quase mando ela pra aquele lugar. "