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Celeste dos cravos

 

Foi no dia 25 de abril de 1974, em Lisboa, e eu estava lá. Em meio da manhã, todo mundo na rua já sabia que o golpe militar desfechado naquela madrugada viera derrubar a ditadura de 48 anos em Portugal. Lá por meio-dia, na praça do Marquês de Pombal, alguém me espetou um cravo vermelho na lapela do casaco. Em minutos, jovens, velhos, muita gente ao meu redor, tinha um cravo como aquele na mão, na boca, atrás da orelha. Ao fim do dia, já se a chamava de a Revolução dos Cravos. E, assim como eu, ninguém se perguntou de onde eles vinham ou como aquilo começara.

Um mês depois, deixou de ser segredo. Uma reportagem numa revista revelou que começara com uma senhora, Celeste Caeiro, 40 anos, empregada num restaurante chamado Sir, na rua Braamcamp. O estabelecimento comemoraria um ano naquele dia. O proprietário planejara oferecer cravos às clientes e os estocara de véspera. Ao notar a movimentação nas ruas, decidiu não abrir. Dispensou Celeste e lhe deu os cravos para que os levasse. De volta para casa, Celeste deparou-se com uma coluna de tanques na rua. Um soldado pediu-lhe um cigarro. Celeste não fumava, mas ofereceu-lhe um cravo, que o soldado aceitou e espetou no fuzil. Seus colegas gostaram da ideia, ela os distribuiu e cravos foram parar até na boca dos canhões. Magicamente, mais cravos surgiram pela cidade, talvez dos floristas. O fato é que, em poucas horas, todo o povo nas ruas portava cravos.

Ali, Portugal se tornou uma democracia, mas Celeste, famosa como a "Celeste dos cravos", nunca se sentiu reconhecida pelos muitos governos que se sucederam. Continuou a viver com seus precários recursos, até morrer, no dia 15 último, aos 91 anos, poucos meses depois das comemorações dos 50 anos do 25 de abril —de que ela participou como sempre, agora em cadeira de rodas, sobraçando cravos, como no grande dia.

A rua Braamcamp ficava a dois ou três quarteirões do Pombal, onde eu estava. Sem saber, posso ter sido agraciado com um cravo das primeiras levas. Mais tarde, em casa, botei-o dentro de um livro que, insensivelmente, nunca abri nem soube qual era.

Folha de São Paulo, 01/12/2024