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O menino da floresta

 

Não consigo saber se estou dormindo, se sonho, se é verdade, se imagino a vela bruxuleando, se apagando, tremendo, morrendo. O menino do mato está na minha frente, assim do nada, fala de Oxóssi, Jesus, Buda, Maomé, numa das mão o Corão, na outra a Torá, uma Bíblia ao lado, fala de indígenas, Nossa Senhora, choro, não acredito. São 2 da manhã, o que ele quer? Não encontrou a paz necessária? Está vivo? está morto? fala em liberdade de culto, orientação de gênero, de amor, de respeito, de tolerância, de justiça, aponta-me o dedo, ameaçador, eu petrificado, enxergo-o pela luz da rua coada pelas persianas, acendo as luzes da sala, ele está, sim, no sofá, me olha, não é um sonho, tem nas mãos uma folha, penso nos mortos que me deixaram , quero perguntar se ele sabe como eles estão, meu choro aumenta, ele levanta, com as voz empostada põe-se a ler um texto que escrevi há algum tempo, peço perdão, não sei bem porquê, mas é o que vem ao espírito, o perfume e as cores do Vale me invadem, chove, troveja, canto de pássaros, mugidos, latidos, venta, as árvores balançam, copas endoidecidas, pai e mãe acenam, sobrinho, pessoas queridas, amigos mortos, não, deve ser o excesso de trabalho, falta de tempo, de grana, leitura em demasia, os olhos embaralham, me sinto enjoado, vomito? Respiro fundo? Ele me olha e lê, compenetrado um dos meus A caminho do Fundão. Em passeio pela Mata Atlântica do Vale do Itajaí, terra dos Xoklengs, área extremamente montanhosa já confeitada por majestosas araucárias entre canelas , cedros e caviúnas, me vi, de súbito, invadido por um medo terrível, um pânico inexplicável e constrangedor, um choro contido, um pavor. Já caminhara cerca de uma hora mata adentro por uma picada conhecida.

Observava pássaros com binóculos, uma das minhas obsessões que me procuram uma sensação de completude, perfumes, sons, cores, movimentos, uma sinestesia arrepiando pele e alma. Buscava uma mancha de árvores - bagueiras, assim chamadas - onde conviviam dezenas e dezenas de bicos-de-pimenta, pássaro maravilhoso de penas inteiramente negras , cromatismo rompido por um bico vermelho do tom da malagueta, daí o seu nome. Seu canto é penetrante e enfeitiçador. Logo o ruído. De passos? Do voo de uma coruja acordada de repente? De bugios no alto da caneleira? Tirivas inquietas na copada das sucupiras e das perobas? De patas do puma que diziam ter sido visto nas tifas, braços de riachos e picadões? De um Xokleng perdido? Logo a surpresa. Um menino, cerca de dez anos, acho, encostado no tronco de uma araucária. Vestia um tipo de bermuda, sem camisa, descalço, queimado de sol. O cabelo escorrido e molhado. Vai embora, Oxóssi não te quer aqui. Gelei. A frase do menino vinha acompanhada de um gesto de mão como me enxotando. Pensei na prova oral de Latim na segunda às 7:30 no Santo Antônio, no Frei Odorico Durieux, o professor- não é genitivo, seu imbecil, como podia ser essa a tradução? logo corrigi, agora sim, meu filho, vais vencer, Deus está contigo; pensei nos Beatles, minha adoração, era baterista numa banda na época; pensei nos poetas Cruz e Sousa, Baudelaire e Drummond, ensinados com esmero pela professora Dona Frida - a arte vence tudo, meu menino, ela dizia, e ia me salvar ali na frente do outro menino?, pensei no meu pai lendo Juca Mulato do Menotti del Picchia em voz alta, que eu ia depois, ideologicamente, detestar, minha mãe lendo Luiz Delfino; pensei na família.

E o menino ali. Olhos esbugalhados. Vai embora, Oxóssi não te quer. Chorei nessa última hora desbragadamente. Porque não sei. Fui me afastando devagar, a mãozinha me enxotando , fria e convicta . Vai embora, vai. De início devagar, passei a correr como um louco. No dia seguinte um amigo espírita me disse que era eu em outra encarnação, um outro amigo judeu me prometeu uma ida à Sinagoga, um muçulmano paranaense me levaria à casa dos seus pais para um tipo de oração, como ele disse, o parceiro negro ao terreiro para descarrego, uma amiga ao culto evangélico, li sobre religiões da índia e tudo que pude. E me debrucei apaixonadamente nos estudos sobre a religiosidade dos Xoklengs e dos indígenas do Brasil. Desde então - tinha 13 anos- defendo a liberdade de culto e o respeito por todas as religiões. O medo inexplicável pelo menino da floresta me fez crescer. Às vezes tenho a impressão que ele está me olhando de dentro do espelho no banheiro ainda hoje. Se pudesse voltava lá a sua procura, mas sem medo, ia lhe dar um abraço. Ele não precisava me enxotar. Adoro a floresta. O menino me olhou na sala iluminada, vi lágrimas, ele chorava? mas parecia também sorrir, caminhou em direção à porta do apartamento, abriu-a, saiu, não ouvi o elevador. Não consegui me mexer. A folha com o A Caminho do Fundão ficou no sofá. Uma folha de papel desconhecida para mim, manuscrita, não era a minha letra. Não vou conseguir dormir. Amanhã dou aula na Graduação e na Pós.

Facebook/ Redes Sociais, 17/03/2024