Senhor Presidente, Autoridades que compõem a Mesa. Prezadas Acadêmicas e Acadêmicos. Familiares e amigos presentes, amigos que nos assistem pela Internet.
As palavras que trago a esta solenidade de posse de Ricardo Cavaliere como novo ocupante da cadeira n.º 8 da Academia Brasileira de Letras expressam a admiração do companheiro, que com ele convive em mais de três décadas de trabalho irmanado, e da afeição de um velho professor que com ele construiu um vínculo de amizade fraterna.
Ricardo Stavola Cavaliere é natural da cidade de Niterói, Rio de Janeiro, onde viveu até os 5 anos de idade. Em 1968, transferiu-se com os pais para a cidade do Rio de Janeiro, onde vive até a presente data. Filho de família de classe média, percorreu toda sua trajetória educacional na rede de ensino público, que já teve seus dias de excelência em nossa história educacional. Frequentou o antigo curso primário na Escola Pública Pereira Passos, situada no bairro do Rio Comprido, entre 1959 e 1962. No ano de 1964, ingressou no antigo Curso Ginasial do Colégio Pedro II, mediante concurso de admissão, educandário onde permaneceu até o ano de 1970, quando concluiu o então denominado Curso Clássico.
Em 1971, Cavaliere prestou vestibular para o curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na habilitação Português-Inglês, havendo concluído com êxito tanto a graduação quanto a licenciatura no ano de 1975. A opção pelo curso de Letras decorreu do pendor cedo demonstrado por Cavaliere para os estudos linguísticos, em especial a língua portuguesa. Nos tempos de aluno do Colégio Pedro II, frequentava com assiduidade tanto a pequena biblioteca regional do Rio Comprido, bairro onde morava, quanto as mais conceituadas, entre elas a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Euclides da Cunha e a biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura. Foi com esse hábito que se iniciou na leitura dos clássicos da literatura brasileira e aprofundou os estudos sobre língua vernácula.
Ricardo Cavaliere ingressou no mercado de trabalho do magistério bem cedo, razão por que se iniciou na regência de turmas em cursos supletivos quando ainda cursava o segundo ano de Letras na UFRJ. Entre 1975 e 1987, atuou como professor de Língua Portuguesa em várias escolas particulares de ensino fundamental e médio do Rio de Janeiro, com alta carga horária semanal, indispensável para provimento mínimo de seu autossustento e o de sua família. Entre os anos de 1976 e 1979, exerceu o cargo de técnico de editoração na Editora da Fundação Getúlio Vargas, onde ingressou mediante seleção pública de provas e títulos.
Inúmeros foram os concursos públicos para professor municipal e estadual que prestou a partir de 1975, sempre com aprovação, cuja investidura inicialmente dispensou sob aconselhamento de amigos mais próximos, que consideravam a carreira do magistério público pouco rentável. Finalmente, em 1982 resolveu assumir matrícula estadual, havendo sido lotado para lecionar primeiramente no bairro da Cidade de Deus e, posteriormente, no bairro de Santa Cruz. Já em 1985, prestou dois concursos na área federal: Colégio Militar do Rio de Janeiro e Colégio Brigadeiro Newton Braga, educandários onde permaneceu em regência de turma até o ano de 1992.
Em 1987, teve sua primeira experiência no ensino superior como professor de Língua Portuguesa da Universidade Veiga de Almeida. Neste mesmo ano, ingressou no Mestrado em Letras Vernáculas da UFRJ, onde, após três anos, defendeu a dissertação Os marginais do discurso, sob orientação do Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo. Compuseram a banca examinadora, com o orientador, a Prof.ª Maria Emília Barcellos e o Prof. Humberto Menezes. Em 1992, ingressou, mediante concurso de provas e títulos, no quadro permanente da Universidade Federal Fluminense (UFF).
A carreira universitária na UFF conferiu a Ricardo Cavaliere a possibilidade de dedicar-se ao ensino do português em nível mais avançado e, sobretudo, a mergulhar com entusiasmo na prazerosa atividade da pesquisa acadêmica. Ingressou no curso de doutorado da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ no segundo semestre do ano de 1993 com o projeto de tese Fonologia e morfologia na gramática científica brasileira, sob renovada orientação do Prof. Dr. José Carlos Santos de Azeredo. Em maio de 1997, três anos e meio após o ingresso no doutorado, Cavaliere obteve o título de doutor em Língua Portuguesa, havendo obtido o conceito “excelente” conferido pela banca composta, além do orientador, pelos professores doutores Edwaldo Cafezeiro, Maria Emília Barcellos, Carlos Eduardo Falcão Uchôa e Horácio Rolim de Freitas.
Em 1998, Ricardo Cavaliere foi eleito para a Academia Brasileira de Filologia (Abrafil), onde ocupa a cadeira n.º 29, cujo patrono é João Ribeiro. O ingresso na Abrafil se deu por meu incentivo, dada a percepção de seu valor acadêmico como pesquisador de escol. Logo nos primeiros dias de nossa convivência na Universidade Federal Fluminense, no ano de 1992, percebi naquele jovem pesquisador, ainda na casa de seu trinta e tantos anos, um perfil distinto da maioria, que então se dedicava às novéis vertentes da Linguística, mormente a Análise do Discurso e a Linguística Funcionalista. Cavaliere, no entanto, trazia-me questões referentes aos antigos filólogos, tais como Maximino Maciel, João Ribeiro e Manuel Said Ali, demonstrando segurança e saber historiográfico incomuns para os filólogos de sua geração. Pensei, então: este é diferente, merece atenção.
A filiação de Cavaliere a outras associações científicas renovou-se naturalmente no decurso do tempo, tais como a Associação Brasileira de Linguística (Abralin), a Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), a Associação Internacional de Linguística do Português (AILP), a Henry Sweet Society, a Société de Linguistique Romane, a Société d'Histoire et d'Épistémologie des Sciences du Langage e a Societas Linguistica Europaea. Em 2008, o Real Gabinete Português de Leitura, por decisão unânime de seu Conselho Deliberativo, conferiu a Ricardo Cavaliere o título de Grande Benemérito.
No plano da pesquisa linguística, ainda antes de haver ingressado no corpo docente da UFF, Ricardo Cavaliere já se dedicara à investigação da língua portuguesa mediante desenvolvimento de seu projeto de dissertação dedicado à análise das palavras que a tradição gramatical arrola como de "difícil classificação", por não se ajustarem ao modelo taxionômico herdado à gramática latina. Observe-se, entretanto, que mesmo nessa fase inicial de pesquisa acadêmica, Cavaliere já demonstrava interesse especial pelos estudos historiográficos. Basta, para tanto, observar que um amplo capítulo da pesquisa aqui referida se dedica à análise da contribuição de dois grandes filólogos brasileiros aos estudos dos denominados "termos de exceção": Manuel Said Ali (1861-1953) e José Oiticica (1882-1957). Esse pendor pela linha dos estudos historiográficos conduziu Cavaliere à elaboração de seu segundo grande projeto de pesquisa, que propôs ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ para ingresso no curso de doutorado: o estudo da fonologia e da morfologia nas gramáticas brasileiras do século XX.
Cavaliere optou, pois, por entregar-se definitivamente à seara da historiografia linguística, agora mediante proposta de pesquisa institucional à UFF, em que investigou os fundamentos da sintaxe no período em foco. Nesse momento, já se enriquecia na fundamentação teórica com as teses historiográficas de nomes como Konrad Koerner (1939-2022), Sylvain Auroux, Pierre Swiggers, entre outros teóricos, tarefa que muito lhe foi facilitada pelo contato acadêmico encetado com pesquisadores de outros Estados da Federação vinculados ao Grupo de Trabalho de Historiografia da Linguística Brasileira da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). Ultrapassado o momento desta primeira pesquisa institucional específica da UFF em 2002, Ricardo Cavaliere julgou que poderia alçar a voos mais elevados, em que procurasse traçar um juízo abrangente sobre o processo de continuidades e descontinuidades que caracteriza o percurso dos estudos linguísticos no Brasil. Nesse sentido, mercê dos estreitos laços de amizade e labor que nos unia, tive o prazer de supervisionar seu estágio de pós-doutoramento em História da Gramática no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, (UERJ).
Ricardo Cavaliere, por livre arbítrio, sempre procurou exercer vários cargos administrativos no seio da universidade, pois assim julgava melhor entender seu funcionamento para além das sendas acadêmicas e colaborar para seu engrandecimento. Assim, coube a Cavaliere inicialmente investir-se na função de chefe do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFF, por dois mandatos seguidos. Em seguida, Cavaliere exerceu o cargo de membro do Conselho Fiscal da Fundação Euclides da Cunha de Amparo à UFF, por dois mandatos, entre 1999 e 2003. Nesse ano, alçou a sua primeira legislatura como membro do Conselho Universitário da UFF, mediante eleição direta de seus pares, onde ficou até novembro de 2004.
Nessa época foi eleito por esse Conselho para compor o Conselho de Administração da Fundação Euclides da Cunha de Amparo à UFF. Em igual período, ocupou cadeira no Colegiado do Curso de Letras da UFF. Entre fevereiro de 2007 e março de 2009, Cavaliere atuou como Coordenador de Pós-Graduação Lato Sensu na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFF.
No plano de sua produção acadêmica, a contribuição do acadêmico que esta Casa ora acolhe entre seus pares é expressivamente relevante para o desenvolvimento do saber linguístico-historiográfico da gramaticologia brasileira. Seus livros mais recentes, A gramática no Brasil: ideias, percursos e parâmetros, lançado pela Editora Lexikon em 2014, e História da gramática no Brasil: séculos XVI a XIX, publicado pela Editora Vozes em 2022, afiguram-se hoje como leitura indispensável na seara dos estudos linguísticos, sociológicos e historiográficos.
O estudo A gramática no Brasil: ideias percursos e parâmetros dá conta dos fundamentos epistemológicos que alinhavam a formação de uma linguística brasileira pautada na denominada linguística de recepção, ou seja, acolhedora de teorias importadas dos principais centros de pesquisa, nomeadamente o alemão, o inglês, o francês e o norte-americano. Entre os ensaios que integram esta obra, consta uma referência acurada das fontes teoréticas que caracterizam a produção linguística brasileira a partir da primeira metade do século XIX. Em outro ensaio, Cavaliere traça um painel seguro e minucioso do percurso da gramaticologia brasileira ao longo do século XX, com especial destaque para as correntes de investigação linguística que nortearam a produção de gramáticas e textos afins.
Em sua História da gramática, recentemente trazida a lume, Cavaliere dá conta da gênese e desenvolvimento do saber sobre a língua a partir dos primeiros textos sobre línguas indígenas produzidos pelos jesuítas nas décadas iniciais da colonização do Brasil, até chegar aos textos seminais sobre língua portuguesa vindos a lume pela pena dos gramáticos das escolas racionalista e cientificista do século XIX. Obra de referência no campo da historiografia da linguística festejada por todos que se dedicam a esta área de pesquisa, a História da gramática no Brasil é fruto de vários anos de denodada pesquisa em que não faltam dados biobibliográficos de gramáticos brasileiros, não apenas os mais consagrados, senão os de menor expressão em sua época, fato que bem revela o caráter inovador deste estudo magnífico que impõe presença obrigatória nas estantes dedicadas aos estudos sobre a língua, bem como os da seara da história do Brasil e da sociologia.
Conforme asseverado, os textos referidos acolhem a palavra clarividente de Ricardo Cavaliere sobre os fatores de caráter epistemológico que deram cabimento ao surgimento de uma literatura linguística genuinamente nacional, que se inscreve na própria construção da sociedade brasileira em seus diversificados matizes culturais, sob a noção de que os textos sobre a língua, em especial as gramáticas das línguas, são produtos de seu tempo. Nas judiciosas palavras do eminente linguista francês Antoine Meillet (1866-1936), “cada século tem a gramática de sua filosofia”, ou, em outras palavras, para termos uma exata dimensão do valor epistemológico de um texto gramatical é mister contextualizá-lo em sua episteme.
Justificam-se, assim, à luz dessas considerações, os prêmios e honrarias conferidos ao acadêmico que ora ingressa no quadro desta Casa, entre eles a Honra ao Mérito Filológico, da Academia Brasileira de Filologia, em 2016, o Grande Mérito Cultural outorgado pela União Brasileira de Escritores, em 2015, o Prêmio Celso Cunha, também conferido pela União Brasileira de Escritores em 2017, o título de Grande Benemérito do Real Gabinete Português de Leitura, conferido em 2007, entre outros.
Senhor Presidente, prezadas Acadêmicas e Acadêmicas, familiares e amigos que comigo celebram a chegada de Ricardo Cavaliere ao seio da Academia Brasileira de Letras. Este é um momento de júbilo não apenas para o novo confrade e para os que o admiram, mas também para a própria Academia Brasileira de Letras, que agora dispõe, em seu quadro, de mais um intelectual altamente qualificado e disposto a trabalhar para o engrandecimento da Casa de Machado de Assis, não apenas no setor de Lexicologia e Lexicografia, mas também em projetos que certamente virão no campo da Linguística e da Filologia.
Bem-vindo, Ricardo Cavaliere!