Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras, Acadêmico Merval Pereira,
Senhoras e Senhores Acadêmicos
Autoridades presentes.
Meus familiares, alunos e amigos que aqui estão ou nos assistem pela Internet.
Em nossa concepção espacial do tempo, imaginamo-nos caminhando incessantemente em direção ao futuro a passos, por vezes, largos e seguros, outras vezes hesitantes, não sem haver experimentado os inevitáveis tropeços em pedras drummondianas, mas sempre com este propósito imagístico de alcançar o desconhecido e delinear-lhe os rumos, numa tentativa nem sempre exitosa de planejar e executar um projeto de vida. Na verdade, os passos que traçamos nesta caminhada imaginária conduzem-nos a um fim raramente previsto ou predeterminado, como se estivéssemos irremediavelmente atados aos fios tecidos pelas moiras, talvez aos desígnios do destino, quem sabe à vontade divina, mas jamais às forças da autodeterminação.
Não há dúvida de que, em expressiva frequência ao longo da vida, submetemo-nos a pernas que executam passos sob comando de um cérebro que não nos pertence ou guiadas por uma força indomável que delineia o rumo da caminhada. No capítulo LXVI de suas memórias, Brás Cubas abre um parêntese para prestar um preito de gratidão às pernas, que, cientes da obstinada fixação do cérebro em outras questões, digamos, mais relevantes, resolveram levá-lo ao hotel Pharoux, localizado ali no Paço Imperial, onde costumava jantar. Ao chegar são e salvo ao hotel, Cubas agradece às zelosas e “abençoadas pernas” que cumpriram à risca o propósito não menos relevante de alimentar-lhe o estômago.
Não terão sido igualmente voluntariosas ou, quem sabe, diligentes executoras de passos predestinados, as pernas daquele jovem aluno do Colégio Pedro II, que, em seus treze anos de idade, retornava a casa sob a aflição de mais uma nota baixa na prova de português? Reconheça-se que havia uma certa incompatibilidade entre o jovem e as análises sintáticas e morfológicas, hipérbatos e anacolutos, a ponto de, certa vez, seu pai entrar em casa com um livro que fortuitamente vira em uma vitrine de livraria intitulado Português ao alcance de todos, de Nelson Custódio de Oliveira. Deve ter pensado: Se é ao alcance de todos...
Pois bem, à semelhança das pernas machadianas, as do jovem estudante, cientes de que suas justificáveis preocupações enevoavam-lhe o discernimento, devem ter comentado: “ele está absorto na angústia presente, temos de abrir-lhe as portas do futuro”. Resolveram, então, desviar o caminho e introduzi-lo na pequena Biblioteca Pública do Rio Comprido para posicioná-lo perante a estante dos romances naturalistas, os olhos agora fixos na lombada do romance Casa de pensão, de Aluízio Azevedo. Naquele momento, o jovem estudante, cujos afazeres mais se ocupavam das bolas de gude, das pipas e rabiolas e do futebol de várzea, subitamente entrou no mundo das letras e nele obteve um acolhimento que se perpetua até estes dias em que se encontra às portas da Casa de Machado de Assis e se prepara para dar mais um passo nesta caminhada de vida.
É interessante notar como as sendas deste caminho que se vai abrindo no correr dos passos parecem cruzar-se numa espécie de malha ou entrelaço de relações humanas que, afinal, não se pode atribuir à mera coincidência. Quando de meus preparatórios para ingressar no curso de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tinha à cabeceira, à semelhança de todos os que almejavam igual propósito, dois livros de autores já consagrados e verdadeiramente necessários: Estilos de época na literatura, de Domício Proença Filho, e Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara. Eram dois nomes que participavam de meu cotidiano, com os quais me familiarizei a ponto de a eles referir-me em frases como “essa é a opinião do Domício”, ou “vou consultar o Bechara”. Anos mais tarde, já professor experiente e ansioso por novos passos na carreira docente, logrei ingressar nos quadros da Universidade Federal Fluminense, onde – terá sido coincidência? – encontro Domício, meu primeiro chefe no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. E, mais curiosamente ainda, ao entrar na sala de permanência que me fora designada pela direção do Instituto de Letras lá encontro Evanildo Bechara, que viria a tornar-se um amigo dileto que a vida me presenteou.
Mas as coincidências costumam ser reiteradas ou insistentes - caso não queiramos interpretá-las como designações fatídicas - pois ao ingressar em 1998 na Academia Brasileira de Filologia, lá encontro à minha espera Domício e Bechara, exatamente os dois nomes que me haviam acompanhado na trajetória acadêmica até então. Hoje tenho a honra de mais uma vez irmanar-me a estes dois eminentes nomes das letras brasileiras no corpo da Academia Brasileira de Letras, com a missão de darmos os mesmos passos em fraterno convívio e em prol dos estudos linguísticos em língua portuguesa, uma das missões que dão sentido e cabimento à própria existência desta Casa.
Vivemos uma época em que certos valores ainda presentes no seio da sociedade, nomeadamente os que se manifestam em expressões como “cultivo da língua” ou mesmo “defesa da língua” são objeto de indisfarçável repulsa nos centros de investigação linguística por significarem, ou melhor, supostamente significarem um comportamento normativo incompatível com a pesquisa científica. Pergunta-se com frequência: por que “defesa da língua”? Estará a língua sob ameaça de desaparecimento? Vivemos um estado de coisas que impede, em certa medida, que o investigador se afeiçoe ao objeto da pesquisa, numa relação protocolar que subestima a intimidade inerente do homem com a língua que fala. Afinal, linguistas também são falantes... e humanos.
Esse viés gélido que os novos modelos de investigação implementaram no labor linguístico-epistemológico decerto tem sua gênese na preterição da filologia como método de investigação, de que resulta um já consolidado divórcio entre língua e literatura. Uma consequência, entre tantas, é a ausência de estudo filológico de autores literários contemporâneos, de que resulta desconsiderarmos como a língua vem-se manifestando nos gêneros textuais típicos da atividade literária de nossos dias. Vivemos uma época em que se atesta o uso esporádico de certas construções gramaticais, tais como, por exemplo, o emprego do pronome relativo cujo com a mesma e impávida observação de uma reação química na frieza do laboratório.
Melhor seria, digo-o sem receio de incorrer em sentimentalismo anacrônico, que o rigor científico do linguista se irmanasse ao amor devotado do filólogo, de tal sorte que a observação e descrição escorreita do fato linguístico se aliasse à postura não propriamente de defesa, para aqui evitarmos a palavrinha antipática, mas de contemplação, admiração e preservação da riqueza expressiva da língua. Essa é a perspectiva que me estimula a trabalhar pela língua portuguesa e com a língua portuguesa em minhas jornadas acadêmicas não apenas mediante contribuição em projetos já em franco desenrolar no seio da Academia, tais como o do Dicionário da Língua Portuguesa, mas também em outros que decerto se implementarão.
São passos futuros, no âmbito desta cadeira n.º 8, que nos instigam a curiosidade acerca dos passos idos e vividos, traçados pelos que a ocuparam no passado. Uma das indagações que se fazem quanto à criação da Academia Brasileira de Letras diz respeito aos critérios de que se serviram os fundadores para escolher os patronos das 40 cadeiras instaladas. Amizade? Admiração? Compromisso? Há quem assevere que todos estes motivos e tantos outros inimagináveis são plausíveis. No caso da cadeira n.º 8, segundo nos revela Oliveira Vianna, seu fundador, Alberto de Oliveira, teria escolhido por patrono Cláudio Manuel da Costa por identidade poética, não propriamente admiração, mas harmonia. Já Antônio Olyntho vislumbra em Alberto e Cláudio uma “acentuada afinidade”, fruto do culto à forma e da ojeriza aos modismos. Interessante observar, entretanto, que não poucos intérpretes da obra poética de Cláudio situam-no em um momento de transição pré-romântico, conforme acentua Antônio Cândido em seu precioso Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, fato que, ao menos no plano da estética e do temário literários, o afastaria bastante das convicções de Alberto de Oliveira. Ressalte-se, entretanto, que o início da trajetória poética de Alberto ocorre em 1878 com a publicação de seu Canções românticas, afinal um insuspeito liame estético-literário entre os dois poetas.
Alberto foi um cultor da língua, um artífice da palavra, em irrestrita consonância com os princípios parnasianos que manteve até sua morte em 1937. Tornou-se alvo de crítica contundente e, por que não dizer, da ira iconoclasta que não admitia a leitura de textos que expressavam a arte pela arte. Nesse mister, afinal, encontramos certa identidade entre o príncipe dos poetas parnasianos e o poeta dos inconfidentes, esse duramente perseguido pelo ativismo político, aquele pelo perfil literário. Ademais, cumpre observar que Cláudio integrou a Academia Brasileira dos Renascidos, de efêmera existência, mas suficiente para criar entre o patrono e o fundador da cadeira n.º 8 mais um traço identitário. A rigor, se entendermos a arte como uma expressão alternativa do pensamento político ou de uma ideologia, o que se percebe nessas duas personalidades da cultura brasileira é o compromisso com um ideário do qual jamais se divorciaram até os últimos dias de vida. Fizeram aquilo a que se propuseram fazer e o fizeram bem.
Alberto de Oliveira foi membro de uma família numerosa de dezessete irmãos, todos ligados à literatura; pode-se efetivamente dizer que viveu em ambiente que respirava poesia. Essa convivência com a literatura no âmbito familiar decerto proporcionou-lhe o contraponto da crítica acolhedora com a crítica severa que o movimento de 1922 impôs a seu trabalho. Sua obsessão pela erudição lexical, pelos hipérbatos e rimas preciosas deve ser acolhida como passos decisivos e mesmo obstinados com que o poeta busca atingir o esplendor da forma justa e harmônica, verdadeiro imperativo na construção do texto. Nas palavras de Antônio Olyntho, sua ode à beleza materializada no vaso grego, objeto de contemplação cultuado no soneto homônimo, pode ser interpretada como uma filosofia de vida, em que a beleza eleva-se como divindade do bem-estar e do prazer estético.
No entanto, as sendas percorridas pelo fundador da cadeira n.º 8 viriam a seguir curso distinto sob os passos de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), seu sucessor e amigo devotado. Nascido e criado na terra bruta da fazenda de sua família no distrito de Bacaxá, município de Saquarema, onde se cultivavam cana-de-açúcar, mandioca e café, Oliveira Vianna jamais denegou sua origem rural e sua educação em um núcleo familiar patriarcal e francamente conservador, fato que influiu na formação de sua personalidade. Desde a mais tenra infância, Vianna conviveu com os valores mais caros à sociedade latifundiária do fim do Império que, segundo Austregésilo de Athayde, considerava as causas abolicionistas e republicanas “o fim do mundo”.
Era, à semelhança de Alberto de Oliveira, um digno representante do homo saquaremensis, conforme feliz designação do mesmo Austregésilo de Athayde. Já adulto e formado em ciências jurídicas e sociais, Oliveira Vianna viria a dedicar-se com excepcional empenho ao estudo da sociologia, sob o manto de um nacionalismo ufanista, defensor da cultura brasileira mediante insuspeita aversão à influência estrangeira. Esse terá sido o viés de sua formação intelectual que deu vezo a seu notável Populações meridionais no Brasil, publicado em 1933, uma obra que se renova nos dias que vivemos como referência de pesquisa qualificada e intensa sobre nossa história antropológica.
O espírito crítico acentuado acerca dos caminhos trilhados pela sociedade brasileira levaram-no a asseverar no prefácio de Populações meridionais que o eventual estranhamento que suas linhas pudessem provocar ao leitor resultavam do fato de que “vivemos numa perfeita ilusão sobre nós mesmos”. Com efeito sua visão do papel do Estado e dos valores civilizatórios mais caros, tais como a democracia e a liberdade, seu espírito centralizador na concepção do Estado como caminho mais eficaz na busca do progresso provocaram reações indignadas dos que defendiam democracia e a liberdade como valores sagrados da convivência humana em sociedade. Nas palavras de Antônio Paim (1927-2021), Oliveira Vianna desenvolveu um projeto civilizatório que visava ao progresso pela modernização institucional, uma transformação da sociedade que só se poderia obter pela ação do Estado, mediante um conjunto de medidas a que o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) denominaria “autoritarismo instrumental”. A ideia, em síntese, residia na constatação de que o Brasil precisa de um sistema político autoritário cujo programa econômico e político seja capaz de demolir as condições que impedem o sistema social de se transformar em liberal. Em outras palavras, ainda que se assemelhe contraditório, seria necessário um sistema político autoritário para que se pudesse construir uma sociedade liberal.
Não obstante a controversa construção do ideário sociopolítico em Oliveira Vianna, suas palavras ecoaram com expressiva veemência entre os pensadores de seu tempo, sobretudo em face de sua atividade em órgãos relevantes da vida política. Foi Diretor do Instituto de Fomento Agrícola (1926), consultor jurídico do Ministério do Trabalho Indústria e Comércio (1932-1940), membro da Comissão Especial de revisão da Constituição em 1933 e ministro do Tribunal de Contas da República (1940-1951). Para além dessas funções públicas, integrou a Sociedade dos Americanistas de Paris, a Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e a Academia Portuguesa de História, a que se irmana sua presença no seio da Academia Brasileira de Letras durante o mesmo período em que integrou o Tribunal de Contas.
Havemos, pois, de interpretar as ideias de Vianna com a firmeza da crítica fundamentada, mas numa “visita desarmada”, conforme orienta José Murilo de Carvalho em seu ensaio A utopia de Oliveira Vianna (1993). Saliente-se que a bibliografia brasileira na área da sociologia política revela a influência de seu Populações meridionais mesmo entre os autores que se opõem vivamente aos princípios do autoritarismo instrumental e sua conveniência na construção de uma sociedade justa e igualitária. Havia, decerto, em sua concepção sobre a arquitetura da sociedade um pendor para o cientificismo, herança nítida do clima positivista que vigeu com força expressiva na segunda metade do século XIX e viria igualmente a influenciar a concepção de língua como organismo vivo no campo dos estudos glotológicos.
A leitura da obra de Oliveira Vianna deve ser atualizada como uma vertente importante sobre do projeto civilizatório brasileiro. Sobretudo, deve-se ler sua obra no contexto sociocultural em que foi produzida, em que se levem em conta as características de sua episteme, de tal sorte que não seja enevoada pela ojeriza preconcebida. Não se cuide aqui de necessariamente com ele concordar ou dele discordar no tocante à concepção de Estado nacional e desenvolvimento social, mas de acatar seus princípios como um passo contributivo, probo e idôneo em prol do bem-comum.
Por sinal, seria esse passo que impulsionaria os rumos da cadeira n.º 8 com a sucessão de Oliveira Vianna por outro brasileiro de exponencial dedicação à causa do nacionalismo e do progresso social. O Brasil, decerto, não poderia esperar pouco de um certo cidadão chamado Belarmino Maria Austregésilo Augusto de Athayde (1898-1993). Dir-se-ia, ao menos, que a grandeza e austeridade do nome já seria um prenúncio de sua presença augusta no seio da sociedade, sobretudo entre os amigos diletos, tais como Múcio Leão (1898-1969), que nele via o esplendor do Nordeste: Athayde sofria e cantava o Nordeste. Nascido pernambucano, na cidade de Caruaru, Athayde transferiu-se para Fortaleza, onde se iniciou nos estudos seminaristas que viria a abandonar por identificar-se como agnóstico. Seu agnosticismo, entretanto, não era iconoclasta ou sequer infenso ao sentimento de fé religiosa, que se confirma com sua iniciativa de incluir o nome de Deus no artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de cuja comissão de redação participou ativamente.
Dono de uma personalidade inventiva e producente, Athayde legou-nos uma bibliografia que está por merecer olhos mais atentos, composta por um livro de contos intitulado Histórias amargas, publicado em 1921, gênero que abandonou ainda jovem para dedicar-se à crônica e ao ensaio jornalístico. Dos milhares de artigos publicados na imprensa, mormente na United Press, no Jornal do Comércio e em O Jornal, resolveu reunir alguns em dois volumes, intitulados Conversas na barbearia Sol, de 1962, e Alfa do Centauro, de 1971, ambos originalmente publicados em sua coluna Vana Verba. Quem admira a pujança e o reconhecimento da Academia Brasileira de Letras no seio da sociedade brasileira não poderá olvidar o trabalho denodado de Austregésilo de Athayde em prol de seu engrandecimento e de sua consolidação perante a opinião pública como uma das instituições de maior credibilidade no cenário nacional.
Eleito presidente da Casa de Machado de Assis em 1959, oito anos após sua posse, Athayde marcou seus renovados mandatos ao longo de 34 anos com o empreendedorismo que aumentou o patrimônio da Academia, mormente com a criação do prédio anexo a que denominou Centro Cultural do Brasil, e ao qual Josué Montello (1917-2006) viria a rebatizar como Centro Cultural Austregésilo de Athayde. Em sua memória, criou-se em 2006 o Instituto Cultural Austregésilo de Athayde nas dependências do casarão onde residiu no bairro do Cosme Velho, ali vizinho à casa onde Machado de Assis vivera durante os quinze últimos anos de vida. Por sinal, como bem observou Antonio Callado, de bruxaria está bem servida a Academia, já que tem um bruxo fundador e um bruxo construtor. Na esteira de seu empreendedorismo, Athayde também construiu na cidade de Campos, Rio de Janeiro, o Instituto Internacional de Cultura, conhecido como Solar da Baronesa.
Dedicado ao jornalismo, Austregésilo foi uma testemunha atenta das transformações por que passou o Brasil no devir do século XX. Dona de estilo objetivo, pouco afeito à adjetivação supérflua, sua pena retratou a face da sociedade brasileira, seus valores morais e as questões mais relevantes de seu cotidiano como nação emergente. O temário da educação, recorrente em suas crônicas, revela um espírito inquieto perante a constatação de que o futuro se perdia na incapacidade política de garantirmos formação básica para os jovens. A atividade jornalística aliava-se à formação em ciências jurídicas e sociais para dar voz constante ao cidadão atento aos grandes temas de seu tempo. Comprova-o o prêmio Maria Moors Cabot que recebeu, na Universidade de Columbia, EUA, em 1952, por sua destacada atuação jornalística. A Austregésilo de Athayde deve a Academia Brasileira de Letras eterno preito de gratidão por sua dedicada passagem por esta casa a que serviu com o amor dos devotados e a devoção dos amantes.
Os passos que venho repisando nesta viagem pela cadeira n.º 8 conduzem-me agora à figura expoente de Antonio Callado (2017-1997). Nascido em Niterói no significativo ano de 1917, em que os estertores da Grande Guerra em vez de alívio prenunciavam tempos de angustiante sofrimento, Callado cresceu sob o estigma de uma geração em conflito, em que a tecnologia mais servia ao propósito do embate e da violência do que ao bem-estar do homem. Dedicou-se cedo ao estudo das raízes culturais brasileiras num esforço permanente pela compreensão de nossa alma, de nossa maneira de enxergar o mundo e dele formar juízo com a franqueza dos que não hesitam diante da necessidade de posicionar-se sobre os temas cruciais de seu tempo.
Callado encontrou no jornalismo a via adequada para expressar suas ideias políticas e interpretar os fatos que pontilharam sua geração. Como correspondente brasileiro na BBC de Londres, em 1941, cobriu largo período da Segunda Guerra; nessa época, conheceu a inglesa Jean Maxine Watson, jornalista assessora do serviço latino-americano da BBC, com quem se casou e teve três filhos. Já em 1944, filiou-se à Rádio Difusão Francesa com atuação marcada pela clarividência na avaliação das motivações morais e políticas que deram vezo ao sangrento combate. Anos mais tarde, viria a ser um dos poucos jornalistas latino-americanos que cobriram a Guerra do Vietnam pela ótica vietcongue, sempre manifestando-se com a isenção de quem faz do fato um imperativo e da opinião um compromisso. Certa vez, disse que tinha ido ao Vietnam não para descobrir quem tinha razão, mas para compreender como os vietnamitas, tão debilitados, haviam conseguido derrotar a França em 1954 e levar os americanos à mesa de conferências em 1968.
Seu perfil no campo da imprensa pode ser caracterizado pela expressão “jornalismo investigativo”, pouco usada em seu tempo, dado o compromisso inarredável de levantar o manto da obscuridade sobre fatos que enodoavam a vida brasileira. Esse perfil combativo, que se acentuou vivamente nos cargos de chefia que exerceu em importantes veículos como o Correio da Manhã, onde foi redator-chefe, o Jornal do Brasil e a Folha de São Paulo, valeu-lhe inúmeras prisões à época do regime militar, sob a acusação de fazer da imprensa um subterfúgio para a atividade subversiva. Entre os frutos dessa produção jornalística que mergulha nos porões da ignomínia para resgatar a memória dos injustiçados cite-se seu fascinante O esqueleto da lagoa verde, de 1953, em que se dedica a desvendar o desaparecimento do Coronel Percy Harrison Fawcett na Amazônia. Por sinal, sob financiamento do amigo Assis Chateaubriand (1892-1968), viajaria à região do Xingu para aprofundar a pesquisa a respeito do paradeiro de Fawcett.
No campo da ficção, Callado revela-se um narrador preciso em estilo conciso e infenso ao rebuscamento ornamental, conforme se verifica em seu A madona de cedro, de 1957, obra em que explora a simbologia religiosa da via crucis como expressão do sofrimento e da necessária vinculação dos valores humanos com a cultura religiosa católica. A crítica de sua obra literária costuma eleger a peça Pedro Mico (1957) seu texto mais relevante do ponto de vista temático, por tocar a patologia social da exclusão e da má distribuição de renda como fatores de fomento à marginalidade. A identidade que Callado tece entre a personagem central da peça e a figura de Zumbi dos Palmares erige-se como pilar da luta de classes como busca de igualdade e justiça social.
No entanto, seu texto mais prestigiado, decerto, é o romance Quarup, primeira edição em 1967, que lhe conferiu reconhecimento internacional. Aqui, Callado retoma a figura do indígena como expressão de brasilidade, agora sem as tintas europeizadas do romantismo, numa estética mais consoante com as tradições culturais dos primeiros habitantes da terra em confronto com os princípios axiológicos da civilização construída pela prevalência do branco europeu. Para além de sua relevância como obra engajada, e atenta à realidade brasileira, Quarup desenvolve-se em uma narrativa histórica que parte do fim do getulismo para chegar aos anos de chumbo, um dos períodos mais conturbados de nossa construção social. Nessa obra magistral, ratifica Antonio Callado seu compromisso com o temário político e com a preservação de um valor que bem se pode denominar “nacionalismo autêntico”, já que despido da estética europeia, muito à feição da terra imaginária e utópica que o protagonista, Fernando, sonhava fundar no seio da Amazônia.
O legado de Antonio Callado, que se espraia em sua qualificada e prolífera obra literária, bem se mede não apenas pelo engajamento de seu temário, sempre atento aos reclamos de um Brasil brasileiro, personificado na figura do índio, do mestiço, do trabalhador, do crente, da diversidade étnica e cultural do povo que lhe serviu de parâmetro para dizer sobre as coisas de sua terra. Em Callado, identifica-se um passo decisivo para que nós, brasileiros, entendamos, enfim, o perfil cultural do Brasil.
Esses passos largos e decisivos de Antonio Callado interromperam-se em 1997, quando um outro Antonio, nomeadamente Antonio Olyntho Marques da Rocha (1919-2009) viria a continuar o trajeto inaugurado por Alberto de Oliveira com a fundação da cadeira n.º 8. Homem de perfil polígrafo, crítico, poeta, contista, romancista, ensaísta, conferencista, biógrafo e jornalista, este mineiro de Ubá iniciou-se nos estudos humanísticos no Seminário de Campos, vindo a transferir-se para o Seminário de São Paulo com uma breve passagem pelo Seminário de Belo Horizonte. Optou por seguir caminho diverso da carreira eclesiástica para dedicar-se ao magistério de história, literatura, língua latina e língua portuguesa no Rio de Janeiro, cidade em que fixou residência. Para além da atividade docente, Olyntho cedo revelou-se um crítico literário de aguçada sensibilidade, cuja opinião recebeu expressivo acolhimento do público interessado e leitor de sua coluna Porta de Livraria, publicada periodicamente no jornal O Globo.
Nesse mister, a palavra de Antonio Olyntho sempre era esperada e ordinariamente acatada como um juízo equilibrado e imparcial da produção literária que surgia no mercado editorial, uma época em que, ainda que soe surpreendente nestes tempos hodiernos, os temas literários desfrutavam na imprensa interesse senão igual, decerto semelhante ao dedicado às questões políticas e aos temas esportivos. Basta lembrarmo-nos aqui dos encartes e suplementos literários que ordinariamente se publicavam nos principais veículos de comunicação e faziam parte do cotidiano de leitura do cidadão comum.
A repercussão do trabalho desenvolvido por Olyntho na seara da crítica proporcionou-lhe reconhecimento internacional, dada a seriedade e a justeza de suas palavras, conforme o comprovam os inúmeros convites para participar de congressos e proferir conferências em vários encontros, entre eles as comemorações do cinquentenário do Prêmio Nobel em 1950, ocasião em que proferiu conferências na Universidade de Estocolmo e na Universidade de Uppsala. Dois anos mais tarde, foi convidado pelo Governo dos Estados Unidos da América para proferir mais de três dezenas de conferências, ao longo de quase todos os estados federados, com o temário necessário da cultura brasileira. Não terá sido outro o motivo por que, já em 1961, o então primeiro-ministro Tancredo Neves (1910-1985) viria a nomeá-lo adido cultural em Lagos, função que lhe abriu os olhos para a cultura africana.
Saliente-se, necessariamente, que a contribuição de Antonio Olyntho para o desenvolvimento cultural brasileiro também estendeu-se à atividade intensa no setor público. Foi diretor do Serviço de Documentação do Ministério da Viação, onde fundou a revista Brasil Constrói, editada em português, francês e inglês, e criou a Coleção Mauá, dedicada aos estudos sobre desenvolvimento institucional e progresso nacional. De Olyntho também surge a iniciativa de propor em 1964, juntamente com José Luís de Magalhães Lins, o Prêmio Walmap de Literatura como estímulo à publicação de trabalhos de novos e talentosos autores.
Para além da atividade como crítico literário, Olyntho destacou-se como contista, dono de uma técnica narrativa fluida e equilibrada, bem adequada a esse gênero literário que Geraldo França de Lima (1914-2003), em feliz referência metafórica, equipara a um “relógio de peças mínimas em que cada uma destas tem de ser rigorosamente encaixada”. Por sinal, sua versatilidade permitiu-lhe navegar pelas águas da ficção científica, gênero de não muitos adeptos em sua geração, com os contos O menino e a máquina, publicado na Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961) e O desafio, trazido a lume em Histórias do acontecerá (1961). Diga-se ainda que a Antonio Olyntho se atribui o mérito precursor de haver publicado ensaios críticos sobre ficção científica em seu livro Cadernos de crítica, além de haver escrito o prefácio da coletânea Contos do amanhã, publicada pela esposa Zora Seljan (1978).
Olyntho também circulou – e muito bem, segundo a crítica especializada – pelas vielas da poesia com expressiva diversidade temática: o compasso da vida mutável presente em Soneto de Natal, a condição humana, cruamente revelada em seu poema Teoria do homem, ou o progresso tecnológico, referido em seu conflituoso Abertura, ou no pungente O crime da máquina. Por sinal, sua opinião era de que a literatura brasileira atinge seu ponto mais alto na poesia; em suas próprias palavras (e aqui o cito), “poesia é, neste País, das coisas mais vivas e mais avançadas que existem. Volta e meia, poeta novo começa a fazer versos e a sacudir a mesmice dos estilos. Ou poetas já conhecidos alcançam pontos mais altos no exprimir o talvez inexprimível” (O sereno domínio do verbo. Tribuna da Imprensa on line, 2 mai. 2006. Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/aOlyntho6.html).
O período em que viveu na Nigéria proporcionou-lhe a oportunidade de melhor conhecer a cultura africana, de que resulta a publicação da trilogia ficcional Alma da África em que figuram os romances A Casa da Água, de 1969, que a autoridade de Alberto da Costa e Silva qualificou como “um dos melhores romances escritos, no século XX, em língua portuguesa”, O Rei de Keto, vindo a lume em 1980, e Trono de Vidro, de 1987, textos em que se desenrola a saga de famílias brasileiras afrodescendentes que se aventuram no caminho de volta à Nigéria, terra de seus antepassados, conduzidas pela personalidade forte e carismática das personagens femininas: as Marianas, avó e neta, Ainá e Abionan. Essa trilogia, em especial, conferiu a Antonio Olyntho o privilégio de ver seus textos traduzidos para dezenove idiomas.
Saliente-se que o vínculo afetivo que se criou entre Olyntho e a cultura africana estendeu-se para além das linhas literárias, vindo a situar-se no plano da ensaística histórico-antropológica. Fruto dessa vertente é seu volume Brasileiros na África, publicado em 1964, um estudo crítico sobre o mesmo tema do regresso de ex-escravos brasileiros ao continente africano.
Senhor Presidente, no curso da vida somos chamados a cumprir tarefas de vária natureza, algumas desafiadoras, outras de facílima execução, como, digamos, a de traçar juízo sobre uma obra artística cuja riqueza se expressa ao simples contemplar, sem necessidade de olhos peritos que lhe revelem o traço de genialidade. Como é fácil e prazeroso falar de Cleonice Serôa da Motta Berardinelli (1916-2023), minha predecessora imediata nesta trajetória da cadeira n.º 8 da Academia Brasileira de Letras. As necessárias e usuais referências à sua obra singular como docente, crítica literária, ensaísta e pesquisadora são efetivamente imperativas, mas, temos de confessar, e humildemente o fazemos, o que mais nos toca a alma de insuspeita brasilidade é o sentimento de orgulho pelo simples e singelo fato de sermos seu irmão de nacionalidade.
Com efeito, não requer muito esforço traçar juízo sobre esta brasileira, nascida no Rio de Janeiro, cujo esplendor intelectual cativa pela incomum convergência da erudição com a simplicidade, afinal estamos diante de uma personalidade do mundo lusófono que obteve cerca de 95 comendas e prêmios em louvor à excelência de seu trabalho, entre eles a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique, outorgada pelo Governo de Portugal em 1967, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra em 2013 e da Universidade de Lisboa em 1996, de professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1987 e da PUC-RJ em 2006, além da Medalha da Ordem do Desassossego, conferido pela Casa Fernando Pessoa em 2010, do Diploma de Mérito Cultural, da Academia Brasileira de Filologia em 2007, isto tudo sem contar a eleição para a Academia Brasileira de Letras em 2009. Foi, ademais, professora visitante na Universidade da Califórnia, em 1985 e na Universidade de Lisboa entre 1986 e 1988/89. Como preito de agradecimento por sua dedicada atividade docente, professora e orientadora de teses, seus alunos e admiradores organizaram vários encontros científicos e promoveram a publicação de periódicos e livros em seu louvor, como se atesta no livro Homenagem editado pelo Instituto Camões em 2002 e a volumosa coletânea Genuína fazendeira: os frutíferos 100 anos de Cleonice Berardinelli, trazido a lume pela Bazar do Tempo em 2016.
Curiosamente, os primeiros passos desta notável cultora da língua e da literatura portuguesa conduziam-na para as matemáticas, firmemente decidida a seguir o curso de engenharia. Não sabemos hoje quem a convenceu a ingressar no curso de letras neolatinas da Universidade de São Paulo – dizem ter sido alguns professores e familiares – mas, decerto, alguém especificamente logrou convencer a jovem talentosa a seguir esse caminho. Hoje, sentimo-nos na obrigação moral de firmar um preito de gratidão a esse anônimo que talvez jamais tenha percebido a dimensão do bem prestado à cultura luso-brasileira. Foi na Universidade de São Paulo que a jovem conheceu o Professor Fidelino de Figueiredo (1888-1967), cujas aulas endereçaram-na resolutamente para os campos da filologia e da literatura portuguesa. Com a transferência do pai para o Rio de Janeiro, a jovem estudante deu impulso aos estudos na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde atuou como assistente do Professor Thiers Martins Moreira (1904-1970), de cuja relação acadêmica surgiu o interesse pela obra de Fernando Pessoa (1888-1935), poeta a que se dedicaria em sua tese de livre-docência Poesia e poética de Fernando Pessoa.
A profícua carreira docente ampliar-se-ia por outras instituições de ensino igualmente conceituadas, tais como a Universidade Federal Fluminense, onde atuou no Programa de Pós-Graduação, na Universidade Católica de Petrópolis, na PUC-RJ e na Universidade Santa Úrsula. Saliente-se que seu espírito cooperativo e contributivo em todas as áreas do fazer acadêmico levou-a a também exercer cargos administrativos relevantes na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em cuja Faculdade de Letras assumiu a função de diretora-adjunta de pós-graduação.
Entre as obras publicadas por Cleonice destacam-se seus Estudos de Literatura Portuguesa, publicados pela Imprensa Nacional / Casa da Moeda em 1985, Estudos Camonianos, que recebeu uma edição revista e ampliada pela Nova Fronteira em 2000, obras de cunho filológico como Poemas de Álvaro de Campos, um trabalho de crítica textual com introdução e notas, fruto de sua pesquisa no Espólio III da Biblioteca Nacional de Lisboa a partir de 1987, e Gil Vicente: autos, trazido a lume pela Casa da Palavra, 2012. No plano de sua mais destacada especialidade, publicou uma antologia poética de Fernando Pessoa também pela Casa da Palavra em 2012, isto para aqui não nos alongarmos em uma série infindável de estudos magistrais.
Cleonice afirmava haver chegado à Academia Brasileira de Letras “empurrada por seus meninos”, conforme nos relata Affonso Arinos Filho (1930-2020) no discurso de recepção à novel acadêmica. Referia-se ela ao insistente clamor com que discípulos diletos praticamente intimavam-na a compor os quadros da ABL, entre eles, para além do próprio Affonso Arinos, Antonio Carlos Secchin e Domício Proença Filho, todos liderados por Ana Maria Machado. Os apelos que se renovavam a cada cadeira vacante encontravam uma Cleonice cética quanto à oportunidade de candidatar-se, já em idade já avançada. Em seu discurso de posse nesta Casa, referindo-se ao fato, atribuiu sua relutância à timidez. Jocosamente, lembrou o poeta Sá de Miranda (1481-1558), que também por timidez teria postergado o pedido de casamento à amada durante tanto tempo que, quando finalmente o fez, já bem idoso, dela recebeu resposta: “Senhor, por que vindes tão tarde?” Na verdade, a chegada de Cleonice ao convívio acadêmico não foi tardia, pois, se cronologicamente ocupou a cadeira n.º 8 somente aos 93 anos, intelectual e afetivamente sempre desfrutou de acolhimento no seio da Academia em face da excelência e probidade de seu trabalho.
Ao tomar ciência de que os alunos, colegas e admiradores organizavam um colóquio em sua homenagem no ano de 1999, concebido pelo Instituto Camões e realizado na Universidade de Lisboa, Cleonice indagou: “Homenagem para quê?” Afinal, segundo nossa Dama da Lusofonia ou Genuína Fazendeira, como carinhosamente a ela referiu-se Carlos Drummond de Andrade, as homenagens já teriam sido suficientes em face da que lhe fora prestada por ocasião de seus 50 anos de magistério em literatura portuguesa no ano de 1996, a par da outorga do título de doutor honoris causa que lhe fora outorgado pela Universidade de Lisboa em 1994. Em resposta à indagação, disse-lhe o Jorge Couto, então presidente do Instituto Camões: “Pelo que tem feito pela cultura portuguesa no Brasil”. E, afinal, sem esconder a pontinha de vaidade que necessariamente atinge os que têm ciência do próprio valor, que “se insinuou no meu espírito”, conforme as próprias palavras da homenageada, sua reação foi de lembrar o mérito equivalente de tantos pares igualmente devotados à causa da lusofonia.
O testemunho de Cleonice sobre sua vida familiar dá conta de uma existência feliz ao lado dos pais, dos irmãos, a harmonia de um casamento bem-sucedido, o convívio afetuoso com filhos, sobrinhos, netos e bisnetos. No plano acadêmico, sua palavra, ao completar o centenário de vida, buscou ressaltar os mestres que lhe deram formação intelectual e o labor docente que transformou alunos em colegas e amigos queridos, não sem ressalvar as rudezas de um caminho que, para além das alegrias proporcionadas, também ofereceu óbices de muita tristeza, em suas palavras “com feridas ainda não cicatrizadas”.
Decerto que Cleonice, à semelhança dos que se elevam ao plano dos notáveis, tinha ciência de sua dimensão acadêmica e intelectual, mas não fazia ideia de sua penetração no imaginário de uma verdadeira legião de admiradores em todos os recantos do globo em que se expressa a lusofonia, pessoas que buscavam e buscam espelhar-se em sua conduta como investigadora e formadora de opinião, fruto de seu trabalho na área da crítica literária. Dela pode-se afirmar, em consonância com as palavras do emérito camonista Aníbal Pinto de Castro (1938-2010), haver-se constituído em personalidade das que mais avultaram na Universidade do Mundo Lusíada, uma instituição simbólica e imaginária destinada ao cultivo e difusão da cultura em língua portuguesa, um traço de união que irmana os povos falantes da língua de Camões e de Machado de Assis como língua materna. Cleonice fora discípula e, posteriormente, mestre dessa instituição imaginária, criada por obra e graça de professores que cruzavam constantemente o mare nostrum atlanticum, entre eles os portugueses Fidelino de Figueiredo (1888-1967), Jaime Cortesão (1884-1960), Herculano de Carvalho (1924-2001), Jorge de Sena (1919-1978), Hélder Macedo e, entre os brasileiros, Afrânio Peixoto (1876-1947) Mattoso Câmara Júnior , Gilberto Freire, Celso Cunha, Massaud Moisés (1928-2018) Segismundo Spina (1921-2012), Gladstone Chaves de Melo (1917-2001), Leodegário Amarante de Azevedo Filho (1927-2011) e Evanildo Bechara.
A pena de Cleonice produziu ensaios de crítica literária e conferências em congressos e seminários que a um tempo geram encanto no público leigo, amante das coisas literárias, e respeitosa reverência entre os especialistas, uma capacidade singular de dizer com erudição e encanto, com clareza e expressividade, atributos de quem domina a matéria estudada sem o ranço do intelectualismo supérfluo. Lembremo-nos necessariamente, mais uma vez, que Cleonice era dotada de sólida formação filológica, por sinal pertencia ao quadro especial da Academia Brasileira de Filologia, atributo que conferia uma singular capacidade de enxergar a fenomenologia da língua no âmago dos textos literários e usufruir do saber filológico para melhor exercício hermenêutico. Conforme salienta o aqui já citado Aníbal Pinto de Castro, a formação filológica de Cleonice conferiu-lhe especial capacidade para mergulhar nos meandros da semântica textual e buscar os sentidos e vieses estilísticos invisíveis em águas rasas, seguindo o velho preceito horaciano de servir-se do dulce para alcançar o utile. Seu envolvimento com o labor filológico da crítica textual bem pode aferir-se nas palavras finais da Introdução de primoroso Cantigas de trovadores medievais em português moderno (1953): “Se um dia soubermos que alguém, pela nossa mão, acercou-se da velha poesia galego-portuguesa, e nela encontrou beleza insuspeitada, estaremos certos de que o nosso esforço não foi vão e seremos felizes”.
A força da letra ensaística de Cleonice, entretanto, revela-se mais expressiva ao cuidar da obra de três nomes ditos necessários da literatura portuguesa: Gil Vicente, Luís de Camões e de Fernando Pessoa. A sua amplitude temática, entretanto, permitiu-lhe também circular pela lírica medieval com indisfarçável destreza, conforme se atesta em sua conferência A permanência do medieval no teatro de Gil Vicente, de 1985. Essa é a singularidade de uma obra de crítica literária que consegue estabelecer diálogos e vínculos entre personagens díspares no percurso da literatura portuguesa, cujo efeito é o de preservar a identidade da expressão poética em português no devir do tempo. O amor dedicado a Camões e Fernando Pessoa, reconheça-se, fomentou em Cleonice o melhor de sua produção ensaística. Afirmava que seu texto Uma leitura do Adamastor, apresentado em uma conferência de 2013, fora o estudo que mais prazer lhe conferira, dada a peculiar exegese da personagem épica em dois momentos: o anterior a Vasco da Gama, que causava pavor, e o posterior, que inspirava compaixão. A Dona Cleo, como carinhosamente a denominam seus discípulos e admiradores, nosso reverencial agradecimento.
Senhor Presidente, as palavras finais que passo a proferir serão de sinceros e necessários agradecimentos a pessoas e instituições que empunharam o tear das coisas idas e vividas e, na justa medida de sua participação, ingressam comigo na Casa de Machado de Assis. Entre as instituições, uma menção necessária ao Colégio Pedro II, base de minha formação juvenil, à Universidade Federal do Rio de Janeiro, minha alma mater, à Universidade Federal Fluminense, que me acolheu como docente e pesquisador e ao Liceu Literário Português, casa de cultura centenária pela qual nutro afetuoso respeito e onde atualmente dou seguimento a minha atividade docente. Uma palavra agradecida a todos que comigo compartilham a intimidade familiar, a quem me dirijo simbolicamente na pessoa de minha netinha Letícia, aqui presente, já respirando ares acadêmicos antes mesmo de completar seu primeiro ano de vida.
Uma palavra saudosa ao querido amigo Marcus Vinícius Quiroga, interlocutor de tantas décadas e com quem partilhei inúmeras horas de aflição e júbilo. Certamente, se hoje aqui estivesse, com a verve de sua ironia sutil, me aconselharia, parodiando o poeta: “que seja imortal enquanto dure”. Outra palavra agradecida, igualmente saudosa, a meus pais, que não pouparam esforços para superar tantos obstáculos e garantir minha educação.
Se as vitórias são metaforicamente referidas como grandes construções, à semelhança de imponentes palácios de orgulho e insuspeita vaidade, posso dizer sem hesitação que este palácio que hoje se erige no seio da Academia Brasileira de Letras é obra de dois grandes arquitetos: Evanildo Bechara, que o projetou numa caminhada de amizade fraterna, no devir de mais de três décadas, e Antonio Carlos Secchin, responsável por sua edificação, a quem ora expresso afetuoso preito de gratidão.
Por fim, um agradecimento à própria língua portuguesa. Admitindo com os linguistas Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin Whorf (1897-1941), ideólogos do relativismo linguístico, que a língua materna determina nossa visão das coisas e nos apresenta à realidade do mundo, resta-me rejubilar-me por ter conhecido o mundo com o privilégio de falar a língua portuguesa, este “rude e doloroso” idioma a que se refere Olavo Bilac. Conforme afirmou nosso primeiro gramático, Fernão de Oliveira, que atribuiu a sua obra o título de Gramática da linguagem portuguesa, “linguagem é figura do entendimento, assim é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração e não outra coisa”. Como faz bem podermos dizer o coração em português.
Obrigado.