Um perfume de Ana Cristina Cesar no ar, mas com tempero mais recente e tão arrebatador quanto. É assim o livro de poesia “Cobaia”, de Maria Helena Nascimento. “E se descobrem que eu chuto a porta pelo lado de dentro (...)?” é o primeiro tapa na cara, que acorda o leitor já na primeira página. Maria Helena vai explorar muito neste notável livro todos os recursos da linguagem. Visão e audição serão pilares de sustentação do texto — ouve-se o ruído dos sapatos na porta (no interior) e o som imaginado do piano na sala (no exterior) . Esse dentro e fora vai acompanhar a arquitetura poética da obra. A visão está no esconder-se atrás do piano, com os mesmo sapatos — “Me deito de sapatos atrás do piano”.
A autora joga com os significantes, reativa sentidos esquecidos e aquece a memória de quem a lê. Penso nos linguistas quando dizem que a poesia não é uma coletânea de ornamentos retóricos, antes uma reavaliação do discurso e de seus componentes. O eu-poético neste livro recorre à noção de língua portuguesa — uma referência não esperada pelo leitor/a — para, através dela, meio ironicamente, manifestar um sentimento vigoroso, uma paixão metonímica pela voz harmoniosa do seu objeto de admiração e de desejo, num erotismo velado e embuçado. E, num mergulho psicanalítico, buscando uma explicação para esse querer, apela para a infância num dos versos —“Lá na infância, talvez?”.
Tal afeto por esse “alguém”, ardoroso e contido, não podia não provocar o inevitável ciúme — “Uma vez emudeci de ciúme”. Ciúme de alguém? Da arte? “Tento me provocar/me dar choques/ Conheço os lugares precisos/”. A literatura liberta, exorciza? Amor pode sobreviver sem desejo? “Se o desejo acabar elas devem se separar/ Eu sou fácil de deixar”.
Dualidade
Um sentimento amoroso anárquico e destruidor convive com uma forma organizada. Quem organiza isso é a forma poética, é a literatura, é a arte. A tensão que envolve o/a leitor/a em “Cobaia” vem dessa dualidade, uma dissonância a ser desfeita a qualquer preço em busca da harmonia. Aliás, o adjetivo harmonioso aparece já nas primeiras páginas. Só resta mesmo a literatura. “Reli o caderninho desde o começo para me lembrar de como sofri por nossa causa neste ano”, lê-se num dos poemas que tem como título apenas a data “9/11/91 “.
A recorrente volta à infância, metaforizada em juventude, na busca de desafogo e de explicação não sai do palco iluminado. “Impressionante a quantidade de flashbacks necessários/ para consumar o crescimento.”
O tato vai superar os outros sentidos, como um prazer solitário, como uma alforria da jaula com o tigre cego, numa bela representação simbólica no texto.
A tonalidade lúdica do livro da carioca Maria Helena Nascimento, escrito com fluidez coloquial contemporânea, agarram o/a leitor/a . Esse contemporâneo que a gente reconhece muito bem nas sensações tênues que a autora tão habilmente expôs. — “Antônio disse que a minha língua tem gosto de nada”. O azedo e o açucarado se neutralizam um ao outro e não sobra nada. Mas sobra, sim, o essencial: a arte poética.