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Elmano Cardim

AS PRIMEIRAS REVISTAS LITERÁRIAS

Contudo, a imprensa literária surgiu cedo no Brasil, logo em seguida aos dois primeiros periódicos, que se registram na história do nosso jornalismo.

Depois da Gazeta do Rio de Janeiro e da Idade d’Ouro do Brasil, apareceu na Bahia em janeiro de 1812, com o título AS VARIEDADES ou ENSAIOS DE LITERATURA, o primeiro jornal literário, que foi, ao mesmo tempo, o terceiro publicado no país. Fundou-o, ao que tudo indica, Diogo Soares da Silva de Bivar, português culto, dado às letras, formado em Coimbra e de espírito liberal. Dizia-se descendente do Cid, o Campeador. Mandado em degredo para Moçambique, por haver hospedado Junot na sua casa da vila de Abrantes, desviou-se na viagem para a Bahia, onde se instalou e obteve depois o perdão pelo crime que hoje seria chamado de colaboracionismo com o inimigo. Da Bahia, onde exerceu a advocacia, passou para o Rio e aqui viveu até os 80 anos, ocupando vários cargos em associações cultas, benquisto e considerado. Era sócio do Instituto Histórico e faleceu aos 10 de outubro de 1865, deixando dois filhos ilustres, Rodrigo Soares Cid de Bivar e Luís Garcia Soares de Bivar, e uma filha que foi a primeira jornalista brasileira, Violante Atalipa Ximene de Bivar e Velasco, diretora, em 1852, do Jornal das Senhoras.

O Sr. Hélio Vianna desfez todas as dúvidas e confusões dos bibliógrafos sobre As Variedades, que se publicou em três números, reunidos os dois últimos num só, e assim se apresentava aos leitores:

"O Folheto que oferecemos ao Público, mostra de alguma forma o plano que havemos concebido, e que, quanto em nós é, desejamos desempenhar na redação e publicação do presente Periódico. Discursos sobre os costumes e as virtudes morais e sociais, algumas novelas de escolhido gosto e moral; extratos da história antiga e moderna, nacional ou estrangeira, resumo de viagens; pedaços de autores clássicos portugueses, querem em prosa, quer em verso, cuja leitura tenda a formar gosto e pureza na linguagem; algumas anedotas e boas respostas, etc. - tais são os materiais que tencionamos servir-nos para a coordenação desta obra, que algumas vezes oferecerá artigos que tenham relação com os estudos científicos propriamente ditos, e que possam habilitar os leitores a fazer-lhes sentir a importância das novas descobertas filosóficas".

O sumário dos três números das Variedades é interessante, de nível evidentemente elevado para o meio, o que determinaria, por certo, o seu fracasso, pois logo desapareceu, por falta de assinantes.

O segundo jornal com o tipo de revista literária surgido no Brasil foi O Patriota, fundado em janeiro de 1813 pelo Coronel Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, redator da primeira folha brasileira, a Gazeta do Rio de Janeiro, e fundador do Espelho, que foi, no período da Independência, um periódico muito informativo.

O Patriota teve, para a época e para o seu feitio, uma longa duração, pois se publicou até dezembro de 1814. Foi, na opinião do Sr. Carlos Rizzini, comprovada pelos fatos, a melhor publicação literária, não apenas da Colônia, mas do Reino e da Regência. Foi o primeiro jornal no Brasil a apresentar ilustrações.

O seu fundador, que abreviava o nome para Ferreira de Araújo, igual ao do jornalista que foi no fim do século uma glória da imprensa carioca, era baiano e tinha uma marcada vocação profissional. Fez carreira de engenheiro, alcançou o cargo de professor da Academia da Marinha de Lisboa, onde estudara, lecionou depois nas Academias da Marinha e Militar do Brasil e chegou ao posto de brigadeiro.

Tinha um grande pendor para as letras e por isso fundou O Patriota, cujas páginas publicaram a melhor produção literária da época, dos escritores Borges de Barros, Garção Stockler, Mariano da Fonseca, José Bernardes de Casto, Camilo Martins Lage, Ildefonso José da Costa e Abreu, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silva Alvarenga, José Bonifácio, Silvestre Pinheiro e José Saturnino.

O Patriota, pelo seu subtítulo, se destinava a ser um jornal literário, político, mercantil etc. Saiu da Imprensa Régia. Publicou - diz Inocêncio - muitos documentos inéditos e notícias importantes para a história de Portugal e do Brasil, muitas poesias e artigos de arte, ciências e literaturas, como se vê do índice geral inserto no terceiro e último volume.

Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, que era poeta, divulgou muitos dos seus versos no Patriota. Da veia lírica do jornalista, Joaquim Norberto, no seu Bosquejo da História da Poesia Brasileira, diz "que Araújo Guimarães cultivava a poesia lírica com pouca felicidade, porque a sua fantasia estragada com círculos e retas não era para poesia; e suas produções, a maior parte delas seladas com o cunho da mediocridade, ali jazem, e foram o assunto de muitas censuras dos seus coevos".

Os Anais Fluminenses de Ciências, Artes e Literatura estavam fadados a morrer de inanição, por falta de assinaturas que correspondessem ao esforço representado pela sua criação. Era uma revista, com 15 páginas, aparecida em princípios de 1822 e publicada uma só vez pela Sociedade Filotécnica, associação literária, que não chegou propriamente a funcionar, presidida pelo Conde da Palma e que fora fundada por José Silvestre Rebelo, que depois serviu à Diplomacia brasileira e foi um dos fundadores do Instituto Histórico.

A introdução, ou plano da revista, teria sido escrita por José Bonifácio, segundo a Vale Cabral declarou Varnhagen.

Os Anais foram o terceiro jornal literário do país. O seu redator era José Vitorino dos Santos e Sousa, que tinha uma oficina tipográfica e era matemático, autor de livros de álgebra e geometria e foi depois redator do Jornal Científico, Econômico e Literário.

O único número dos Anais tem na capa externa esta quadra, seguida de tradução:

Père de la nature, Être puissant et bon
Protège cet Empire, où l’humaine raison,
Dans un ordre nouveau, sous ton Auguste auspice,
De la Societé rebatit l’édifice.

O principal trabalho publicado nos Anais é o estudo do Desembargador Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira sobre "A Igreja no Brasil", com dados e informações que constituem ótimo subsídio para a história eclesiástica do país.

***

Todos os historiadores são acordes em reconhecer o relevante papel que teve a imprensa na proclamação da Independência. A influência desse fator da emancipação nacional foi, no entanto, menos dos jornais propriamente ditos e dos panfletos de então do que dos redatores, cuja ação estudamos rapidamente nesta palestra. Com exceção de Hipólito da Costa, todos eles agiram à margem dos periódicos que redigiam, em ação política desenvolvida nas associações secretas, como a Maçonaria, nas reuniões, na Assembléia Legislativa e no próprio seio do governo.

Os nomes dos redatores das folhas de então não apareciam nos cabeçalhos, nem assinavam os artigos publicados. As "correspondências" valiam pelos "A pedido" de hoje. A luta contra o anonimato era, como já vimos, uma preocupação dos homens públicos, a fim de coibir os excessos da liberdade de imprensa.

Estudando esse aspecto da época, o Sr. Octávio Tarquínio de Souza acentua que "por força da estreiteza e do acanhamento do meio social do Rio desse tempo, de par com a exaltação das paixões políticas, o jornal era a expressão de uma personalidade, refletindo-lhe as idéias, os sentimentos, o feitio moral. O jornal era o seu redator, recebia-lhe a marca, como um livro, como uma obra individual a recebe do seu autor exclusivo".

Nas lutas da Independência, como em todos os outros momentos graves da nacionalidade, a imprensa representou, de fato, um grande papel. Mas não é de crer que a sua influência sobre a elite dirigente resultasse do reflexo da opinião pública, expressão que raramente aparecia nos escritos da época, embora neles se usasse e se abusasse mesmo das invocações ao povo.

Mas povo, em verdade, ainda não havia no país, cuja população era na sua grande maioria composta de analfabetos e de escravos.

Na época da Independência, o "povo" brasileiro era um valor muito relativo, uma expressão muito mais social do que demográfica. Basta dizer-se que o apelo entregue ao Príncipe Regente em favor da Independência continha 8.000 assinaturas, quando a população do país andava por três milhões de habitantes.

Como mostraram Armitage, Oliveira Lima, Oliveira Viana, Barbosa Lima Sobrinho e outros publicistas, o "povo" eram então os fazendeiros, os letrados, o clero, a burguesia comerciante.

Havia, naturalmente, as manifestações da rua, nas quais aparecia, não o povo, mas a plebe, facilmente manejada pelos agitadores que a usavam como instrumento para os seus desígnios políticos.

Foi essa plebe que acompanhou, com vaias e assobios, os deputados presos por ocasião da dissolução da Constituinte, o que levou José Bonifácio, ao entrar no Arsenal da Marinha, caminho da Fortaleza da Lage, onde ficaria preso, a dizer ao General Morais, que o recebeu: " hoje é o dia dos moleques".

Os fatos marcantes da época tinham pouca repercussão no noticiário, e entre eles a própria proclamação da Independência, sobre a qual os periódicos foram omissos ou parcimoniosos. Nem se usava, para a divulgação dos acontecimentos, das colunas dos jornais, embora em 1822 constasse o Rio de Janeiro com quatro tipografias e 14 jornais, entre os quais dois quotidianos, o Volantim, de existência muito passageira, e o Diário do Rio de Janeiro, aparecido em 10 de junho de 1821 e cuja publicação foi até 1878. Esse jornal, que teve uma grande importância na imprensa brasileira, timbrando no começo em não cuidar de política, deixou de noticiar a proclamação da Independência.

Os acontecimentos da história pátria eram conhecidos, seja por editais afixados nas esquinas, seja por meio dos bandos, que vinham à praça pública, numa pitoresca encenação, descrita por Max Fleiuss como uma "espécie de proclamação de caráter todo municipal, consistente em uma ruidosa cavalgada, em que tomava parte todo o Senado incorporado: presidente, procurador, porta-estandarte, oficiais, almotáceis e meirinhos, precedidos de um pelotão de cavalaria de polícia, seguido de uma banda de música da milícia burguesa.

"À frente iam pretos, soltando foguetes, e fechava o préstito outro pelotão de cavalaria e o povo dando vivas.

"Nas encruzilhadas das ruas, parava o cortejo e um dos oficiais da Câmara, a cavalo e de cabeça descoberta, procedia à leitura do bando ou proclamação como assim sempre se fazia, nos três dias antes das principais solenidades da Corte, tais como o nascimento, casamento ou falecimento de alguma pessoa real.

"Nos bandos que anunciariam a aclamação e coroação de D. João VI, que se realizou em 6 de fevereiro de 1818, e as cerimônias da coroação e sagração de D. Pedro I, a 10 de dezembro de 1822, os mais notáveis personagens disputavam a honra de neles figurar".

A imprensa, com a restrita circulação dos periódicos, era então essencialmente política, doutrinária e personalista. Mas nem por isso deixava de existir e de pesar sobre o ânimo dos que detinham o poder e orientavam os acontecimentos formadores da nação que se criava.

É que já se forjara, nítida e robusta, como alavanca de comando dos episódios históricos, uma consciência nacional, que naqueles dias confusos e tormentosos orientava o patriotismo dos brasileiros.

(Jornalistas da Independência, 1958)

 

JOSÉ LINS DO REGO

Discurso pela Academia Brasileira de Letras, em 12 de setembro de 1957.

Na ausência do nosso presidente, Sr. Peregrino Júnior, cabe-me como secretário-geral o doloroso dever de trazer a José Lins do Rêgo o adeus da Academia Brasileira de Letras, ocasional representante dos confrades que aqui se reúnem em torno de seu féretro e dos que, de longe, têm o pensamento voltado para o que tão prematuramente a morte arrebatou do nosso seio.

Temos a desdita de ver encerrar-se um convívio encantador que mal começara. Apenas aqui chegado, no deslumbramento de uma conquista natural, parte o grande escritor, deixando-nos a amargura de uma perda cuja imensidade avaliamos pelo sulco profundo aberto na nossa saudade. E que a nós outros muito mais seduzira ele pela doçura do seu coração do que pela grandeza da sua obra. E se a esta consagramos, no reconhecimento de um mérito que o consenso da inteligência brasileira tornara indiscutível, muito mais nos alegramos ao encontrar na bonomia e na dádiva de sua amizade a revelação de inigualável tesouro humano de ternura e generosidade.

Choramos, por isso, nesta hora triste muito mais o amigo do que o confrade, sentimos muito mais forte o vácuo do seu desaparecimento, sabendo cruelmente terminada uma convivência de que tão pouco desfrutamos. Essa a parte mais crucificante do nosso sentimento de pesar, ao ver inerte, a caminho da eternidade, aquele que hoje desapareceu tornando mais viva a perenidade da sua lembrança nas letras brasileiras. Porque aí, no panteão dos grandes escritores pátrios, o seu lugar de há muito estava marcado pela auréola que nimbava o seu nome glorioso.

A imortalidade que aqui se convencionou já a houvera José Lins do Rêgo conquistado sem esforço, pela repercussão de sua obra, pelo julgamento nacional que elegeu sem discrepância como um dos valores definitivos da literatura brasileira.

Esse veredicto de consagração não resultou somente de haver sido esse escritor dotado de brilhante inteligência e forte poder imaginativo. Sua obra se assinala, na história das nossas letras, porque ao lado de sua expressão de arte criadora logrou plantar um marco de luz num ciclo de evolução nacional. Foi José Lins do Rêgo o romancista original e inigualável desse momento que ficou para trás, mas que se perpetuará na compreensão dos pósteros pela pujança de sua pena e pela interpretação do seu espírito, e se isso realizou, com maior relevo do que outros que o antecederam ou seguiram, é que sua inspiração brotou pura dos arcanos do seu coração generoso e soube ele dar aos seus enredos e emprestar aos seus personagens a substância humana da sua formação e as reservas inesgotáveis da grandeza de sua alma.

Na reprodução de uma paisagem peculiar da vida brasileira, tão cheia de rudeza e sofrimento, foi José Lins do Rêgo um pintor excelso do realismo, com as cores fortes dos contrastes chocantes, mas com o poder supremo de amenizar o brutal pelas tonalidades suaves da arte com que soube diluir o traço amargo das injustiças sociais e das maldades humanas.

É que a sua pena não a usou como um látego, mas como um sudário de edificação para despertar os bons e corrigir os maus.

Não é de estranhar, pois, que sua obra, de limite regional, de acre sabor nordestino, se tenha ampliado na universalidade da sua projeção e o seu nome corra hoje impresso em várias línguas, ao lado dos grandes escritores que transcendem das fronteiras nacionais para o cenário da admiração e do respeito mundiais, no culto eterno às criações privilegiadas do espírito.

Das esferas originais da ficção, onde se alçou a uma altura sem par, sua alma se evadiu para a comunhão diária com os leitores, na constância de um colóquio cotidiano, que trazia o escritor presente aos acontecimentos corriqueiros da vida ou aos instantes de emoção que surpreendia no tumulto da cidade. Foi pelo prazer de despersonalizar-se para melhor se identificar com a multidão, que o escritor se fez um entusiasta do esporte, para vibrar na emoção das pelejas que acompanhava com alma de menino.

Assim não o choram hoje apenas a cultura e as letras brasileiras que ele tanto enobreceu, mas também o número infinito e anônimo dos que o sabiam sem igual na fidelidade às cores do clube que tinha no coração. Por isso vimos esta cidade imensa, dias e dias angustiada a acompanhar desolada o curso da moléstia cruel que acabou por vencer tão moço ainda esse grande apaixonado da vida, que foi José Lins do Rêgo.

A Academia Brasileira de Letras, que o acolheu prazeirosa na primeira vez que veio ele bater-lhe às portas, sofre hoje, como tanta gente, a dor da sua perda sem remédio. José Lins do Rêgo definiu-se ele próprio, certa vez, um homem igual aos outros. Mas não o era tal. Na floresta imensa em que procurou nivelar-se com a simplicidade e a modéstia do seu feitio, ele foi um ipê frondoso e florido que ruiu abrindo um vazio em derredor.

Nossas lágrimas caem sobre o seu féretro com a dor que ora nos acabrunha e nosso pensamento o acompanha no crepúsculo desta hora derradeira com a ufania de havê-lo tido na nossa companhia, grande, venturoso e bom.

 

HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA

Discurso no batismo do avião que recebeu o nome do patriarca da imprensa brasileira, na cerimônia realizada em S. Paulo, aos 30 de abril de 1942.

Estamos assistindo ao milagre da multiplicação dos aviões. Cansado de multiplicar jornais e revistas, Assis Chateaubriand tornou-se o arauto da Campanha Nacional da Aviação Civil e do civismo dos brasileiros e do amor dos estrangeiros que conosco vivem fez a rotativa milagrosa, de cujas engrenagens místicas colhemos hoje mais este avião para batizar.

Porque passou a viver no clima do milagre, o semeador raro de tantas formas de expressão criou um ritual de simbolismo religioso, para a consagração das asas distribuídas pelos céus da pátria, com a missão bendita de formar pilotos, força de mocidade, de coragem e de renúncia, sem a qual hoje é impossível construir ou conservar uma grande nação.

Há toda uma poesia nestas cerimônias que se vêm repetindo com consoladora surpresa para os que a imaginaram apenas começada e logo acabada. E essa poesia, lírica pelo sonho da sua inspiração, se transmuta em ritmo épico pelo que evoca do passado e prenuncia para o porvir.

Com os aviões que se vão reproduzindo como células do organismo futuro da pujança aérea brasileira, forma-se no céu o grande panteão nacional. É a primeira vez que se realiza essa concepção. Os nomes e a glória dos varões da pátria não estão aqui inscritos em bronze ou mármore, na estática dos monumentos, nem sob abóbadas ou colunatas de arquitetura clássica. Para vê-los, é preciso erguer os olhos ao infinito, em que cruzam os sóis e as estrelas. Para reverenciá-los o pensamento acene às regiões em que, graças ainda a um brasileiro, os homens substituem hoje as águias e os condores.

Eu não sei quando foi mais sublime a idéia de Assis Chateaubriand: se quando resolveu semear aviões pelo Brasil, se quando pensou em batizá-los com os nomes excelsos da nossa história e com os valores positivos das gerações contemporâneas. O dinâmico se fez contemplativo e dessa híbrida fusão resultaram dois reais proveitos que irmanam a ação e a poesia.

E no desperdício generoso da sua glória, eterna como obra de patriotismo e efêmera como realização profissional, o jornalista que ideou a campanha original a ela associa o maior e mais variado número de acólitos, não excluindo sequer os homens de ofício igual ao seu, os que malham o mesmo ferro e buscam efeitos de idêntica finalidade. Essa generosidade do grande campeador trouxe aqui o diretor do "Jornal do Commercio" para padrinho do avião que recebe o nome de Hypolito José da Costa - o patriarca da imprensa brasileira.

Entra, assim, no panteão simbólico que se erige nos céus brasileiros a figura primacial do grande jornalista, fundador do "Correio Braziliense", que se publicou em Londres, de 1808 à 1822. Raros jornais poderão vangloria-se de ter tido, na vida política de uma nação, repercussão idêntica à dessa folha. E isso porque raros jornalistas serão como foi Hypolito José da Costa Furtado de Mendonça, brasileiro, nascido na Colônia do Sacramento, educado em Coimbra e pontificado da Inglaterra, onde ancorou fugido das cadeias da Inquisição portuguesa, depois de estar encarcerado alguns anos, sujeito ao mais iníquo dos processos, pelo crime de ser maçom.

Não foi Hypolito, na nossa história, o único jornalista brasileiro que a Inglaterra acolheu, quando a intolerância e o arbítrio esmagavam a liberdade e oprimiam o pensamento. Muitos anos depois dele, também Rui Barbosa, que teve na imprensa ação de semelhante projeção, foi acolher-se à sombra das garantias britânicas, de onde escreveu as admiráveis "Cartas de Inglaterra". Ontem, como hoje, a velha Inglaterra constituiu sempre o refúgio de esperança dos que amam a liberdade e odeiam as escravidões.

De Londres, Hypolito lutou pelo Brasil e evangelizou politicamente a sua pátria, que ele sempre extremou e a que serviu com fé e devoção. Ele foi um liberal intransigente, mas sem o sectarismo doutrinário que só vê possível a salvação pública com fórmulas preconcebidas. Foi contra a república no Brasil, porque como Evaristo da Veiga, teve nítida e certa a visão de que esse regime então seria prematuro. "O povo que deseja ser livre e feliz - escreveu em janeiro de 1820 no "Correio Brasiliense"- cuide de assegurar com suas virtudes próprias essa liberdade e essa felicidade que deseja; porque enquanto se esperançar noutras nações para gozar esses bens, será escravo, será infeliz. Não discuta sobre a forma de governo; reflita no modo de melhorar seus costumes. Um povo sem moral, se não tem liberdade, nunca a obterá; e se a tem, certamente a perderá". Que admirável lição de filosofia política!

Teve a visão exata dos grandes problemas do Brasil: pregou a abolição da escravatura, defendeu a proteção ao indígena, aconselhou a imigração; lembrou em 1814 a criação de uma Universidade, situando-se na cidade de Mariana; propugnou pela mudança da capital para o interior do país, bateu-se denodadamente pela liberdade de imprensa, trabalhou pela independência que emanciparia o Brasil da tutela portuguesa, advertiu o país da necessidade, ainda hoje não satisfeita, de criar poderosa força naval, necessária, dizia ele, "ao respeito e à consideração, à segurança e à prosperidade do Brasil".

Em conciso e brilhante estudo sobre o patriarca da imprensa brasileira, o Sr. Manoel Cícero expôs como o grande publicista "demonstrou a sua formidável capacidade de trabalho, a clarividência e o poder criador da sua inteligência, o seu ânimo intrépido e combativo, o pendor do seu espírito para a defesa dos oprimidos e para a propaganda de idéias altruístas, o seu devotamento aos interesses do Brasil, o seu inexcedível patriotismo".

Sua influência na formação política do nosso país ainda não foi estudada como merecia. A coleção do "Correio Braziliense" é um admirável repositório de conselhos, idéias e projetos para a vida e o progresso do Brasil. José Bonifácio, com a clarividência do seu espírito, tinha em alta conta o valor de Hypolito e quando o Brasil mandou a Londres Caldeira Brant defender o reconhecimento da sua independência, levou ele o encargo de aconselhar-se com o jornalista brasileiro, que o patriarca da emancipação pátria fez conselheiro privado dos nossos interesses, na Corte de St. James. Caldeira Brant não obedeceu à risca, nesse particular, as instruções recebidas, e nem sempre a palavra de Hypolito foi ouvida, mas, ainda assim, os serviços que prestou, as advertências que fez, os conselhos que deu em muito facilitaram a ação diplomática do Brasil junto a Canning.

A Correspondência dos dois grandes brasileiros, José Bonifácio e Hypolito, prova quão útil foi a influência e a ação do jornalista, a quem a morte levaria antes que a nomeação de Cônsul Geral do Brasil em Londres, com o título de Conselheiro de Legação, lhe chegasse às mãos.

O momento não permite delongas e este discurso já se vai encompridando. Vale a pena, ainda assim, recordar algumas idéias de Hypolito, que se encontram na sua correspondência com José Bonifácio. Uma delas é o conselho que em janeiro de 1823 nos dava para uma aliança dos Estados Americanos, a fim de opor o continente barreira à Europa opressora. É um gérmen de pan-americanismo, provando ainda uma vez que os nossos homens públicos estavam impregnados da doutrina que Monroe estabeleceria quase um ano depois, em dezembro de 1823, e hoje constitui a maior conquista do espírito continental.

Depois desse, outro aviso de patriotismo, que defendia a unidade brasileira, foi o conselho que mandou a José Bonifácio, em julho de 1823, para não ouvir "proposição alguma de paz, que não seja fundada no princípio da independência total do Brasil, e da integridade de todas as suas províncias, desde o Amazonas ao Prata; porque a guerra será sempre preferível a toda a desmembração do Brasil, por mais pequena que se considere".

Pregava também a conveniência de uma liga dos novos Estados Americanos com o Brasil, para dobrar Espanha e Portugal que não se conformavam com a emancipação das colônias do Novo Mundo e via, com ardente patriotismo, o Rio de Janeiro como sede do grande congresso que faria a paz da América com os Estados da Europa, pelo "princípio de supremacia, dizia ele, que o Império do Brasil deverá para o futuro exercitar em toda a América Meridional, sem que esses Estados se apercebam das conseqüências, bem como os Estados Unidos a terão na América Setentrional". A esse congresso emprestava na vida continental a significação que teve o Congresso de Viena na vida européia.

Defensor da abolição, na sua vida de jornalista combativo, opunha-se no entanto a que qualquer acordo com o governo inglês para o reconhecimento da nossa independência contivesse uma cláusula sobre a escravidão, porque isso seria arranhar uma soberania que começava e devia, por isso mesmo, mostrar-se ciosa do seu direito e da sua liberdade.

Toda a vida admirável desse varão da pátria é uma lição contínua de nobres sentimentos, de aguda compreensão política, de altruísmo e de verdade. Ele foi, em toda a sua carreira jornalística, um fomentador de idéias, um defensor das liberdades, um pregador objetivo e realista, um patriota exaltado. Seu jornal foi proibido de entrar em Portugal e no Brasil. Ele mesmo viveu exilado, evadido do cárcere, porque abraçara princípios liberais, numa época de inquisição, fanatismo e subserviência. Contra ele se levantaram as forças opressoras do poder, que se julgava infalível e não permitia contraditas e divergências. E segundo uma sentença sua, verdadeira e profunda, "nada irrita os inquisidores tanto como um homem que raciocina".

A pátria lhe fez, de algum modo, justiça em vida e a posteridade, se não o exaltou como merecia, também não o esqueceu. Hoje, deste maravilhoso Campo de Marte, seu nome parte, pelos ares, nas asas deste pequeno avião para as plagas longínquas e luminosas do Piauí. Vai Hypolito José da Costa para a terra de outro grande jornalista, Félix Pacheco, cuja evocação eu faço aqui com a ternura do discípulo que não esquece as lições do Mestre, que foi testemunha da sua vibração patriótica nos grandes momentos vividos juntos, que sabe o culto que ele, biógrafo de Evaristo, tinha pelos grandes vultos da pátria e principalmente pelos homens maiores da nossa imprensa. Estudando o Publicista da Regência, Félix Pacheco o equiparou a Hypolito no reconhecimento que a pátria deve a ambos pela ação exercitada em momentos decisivos para a nacionalidade. O erudito e incisivo julgamento de Félix Pacheco assim se resume: "O Correio Braziliense", que viu do outro lado do Atlântico, nessa Inglaterra liberal e culta, onde os direitos não se conculcam nunca e onde as liberdades públicas se impõem com a força e o caráter indiscutíveis de um dogma, invioláveis e sagrados, o "Correio Braziliense", em cujas colunas com tanta galhardia batalhou pela proclamação da Independência e "A Aurora Fluminense", tribuna augusta e nobre, de onde Evaristo doutrinou, com inexcedível elevação de vistas, durante os tempos da violenta agitação partidária que acompanhou os primeiros passos do Brasil na fase do seu desenvolvimento autonômico, no início de sua existência política, são dois marcos luminosos e refulgentes na história do jornalismo pátrio".

Justifica-se, pois, nesta hora em que o Piauí vai acolher o "Hypolito José da Costa", a recordação do nome do eminente piauiense, o jornalista emérito que foi dos primeiros a fazer justiça ao grande redator do "Correio Braziliense".

Esta cerimônia é, pois, uma festa da imprensa e tem um alto sentido espiritual. Quiseram os fados que os doadores do "Hypolito José da Costa" fossem dois ilustres membros da colônia síria de S. Paulo, os Srs. Felipe Lutfala e Michel Assad, tão identificados, como todos os seus patrícios, com a vida e a glória do Brasil. Eles vieram das terras cheias de poesia do Djebel, onde houve outrora guerreiros indômitos e cedros portentosos. Se uns e outros passaram, sobra-lhes, aos filhos de hoje daquela região lendária, elevação de lama e sentimento poético para gestos como este da oferta do avião agora batizado. Que a nova unidade aérea brasileira leve aos céus o anseio da grandeza pátria e que Deus, vendo-o cortar as nuvens, abençoe o Brasil, para que, no Líbano da nacionalidade, cresçam novos cedros da estatura e da projeção de Hypolito José da Costa.