Um dia desses, caiu-me nas mãos uma revistinha de passatempo, contendo alguns jogos simples, surpreendentes sobrevivências baseadas em lápis e papel, nesta era de diversões tecnológicas. Vestígio dos tradicionais almanaques, trazia coisas como palavras cruzadas, procura de figura escondida, caça-palavras. Entre esses desafios ingênuos, não podia faltar um exercício de ligar os pontos. Dos mais fáceis, bastando seguir a ordem da numeração para criar traços e formar uma figura. Lembrei então que, às vezes, tinham uma versão mais elaborada: a que buscava ligar pontos sem numeração, o que deixava mais livre a possibilidade de escolher caminhos e se chegar ao resultado de uma figura não imposta de antemão.
Influenciada por essas lembranças, passei em seguida a uma leitura de jornais que também foi ligando pontos. Liguei uma reportagem sobre o magnífico apartamento do doleiro dos doleiros, com vista para as Ilhas Cagarras, a um artigo comentando os exageros no auxílio-moradia de juízes e apartamentos funcionais de parlamentares. E com mais outro ponto, unido apenas pela palavra “moradia”: os movimentos de luta por um teto, que vieram à tona na imprensa com o recente incêndio e desabamento de um prédio ocupado, no Centro de São Paulo. Um instantâneo do país. Retrato de quem somos hoje. Nada a ver ou tudo a ver?
O drama da habitação popular nunca foi devidamente enfrentado no Brasil. Há décadas, o assunto esteve na ordem do dia como bandeira de políticas sociais, graças à popularidade do movimento de Emaús, ligado ao francês Abbé Pierre, influente na época. Na prática, porém, ainda que se costume citar programas variados (do Sistema Financeiro de Habitação ao Minha Casa Minha Vida), muito pouco se fez rumo a medidas concretas que se situassem com realismo frente à imensidão do problema, com determinação para resolvê-lo. Agora, abalroados por um símbolo do tamanho dessa tragédia do Largo do Paissandu, há um choque geral diante da degradação humana revelada pelas condições dessa moradia, pelo parasitismo espertalhão de quem se aproveita dessa gente, pela omissão do poder público e dos movimentos sociais mais responsáveis, pelo jogo de empurra burocrático, pelas distorções que alimentam um falso paternalismo condescendente e impedem providências enérgicas diante da urgência de situações reais.
Sem dúvida, é uma situação complexa. Enfrentá-la pressupõe ligar outros pontos, que nossa sociedade há décadas (ou séculos) vem tentando escamotear, ainda que tantas vezes diagnosticados com clareza por tantos estudiosos das raízes de nossa desigualdade. Tem a ver com a escravidão, a Abolição capenga e retardada, o fosso entre casa-grande e senzala, entre sobrados e mucambos. Com o paternalismo, o clientelismo e o populismo a fechar os olhos para invasões e explorar ou demonizar ocupações. Com o coronelismo, a enxada e o voto de cabresto. Com o latifúndio, a monocultura e o êxodo rural. Com industriais da seca , beatos e exploradores religiosos. Com capangas, cangaceiros, milicianos e facções criminosas. Com os donos do poder e as benesses a empresários escolhidos ou setores cúmplices, sem regulação atenta e rigorosa pelo Estado. Com o pecado original de nossa República, a que falta real representatividade popular. Com um modelo de desenvolvimento a privilegiar o consumo e não a produtividade. Com a explosão demográfica sem educação de qualidade, que nos levou daqueles 90 milhões em ação de 1970 aos mais de 210 milhões de hoje, justamente nas décadas em que a pílula e outros métodos anticoncepcionais contribuíram para reduzir substancialmente a taxa de fecundidade nas famílias mais informadas — ou seja, mais que duplicamos a população de crianças abandonadas e miseráveis, tantas delas oriundas de gravidez adolescente, em muitos casos largadas pelo pai. E hoje elas alimentam os exércitos do crime organizado ou são vítimas e escudos de bandidos. Sempre morando precariamente, como seus pais, tios e avós, enfrentando a violência na escola e seu entorno, na fila do posto de saúde, no transporte público que consome horas de vida, nas vielas sem saneamento.
Continuando a ler o noticiário, mais pontos pedem para ser ligados. Se o impeachment foi golpe para depor uma presidenta inocente e responsável, mas seus direitos políticos foram poupados graças a Renan e Lewandowski, não dá para entender: por que o PT agora não fecha questão sobre isso e não lhe garante seu lugar de direito como candidata à Presidência? Se as pesquisas indicam que o país pede opções novas para as eleições, mas as regras eleitorais impedem que as novas opções sejam conhecidas na televisão ou apresentadas nos partidos, como o eleitor vai poder tomar conhecimento delas? Há algo que se possa fazer a respeito?
Ligar os pontos levanta perguntas, revela incoerências e contradições. Mas talvez possa ajudar a pensar.