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Os estilhaços da realidade

 

Na capa de Exílio, de Lucas Guimaraens, uma imagem negra se adensa, depois se esvazia, até se configurar em pigmentos estilhaçados. Que melhor representação para o exílio, senão o estilhaço? Pontos nômades, sem centro, submersos no "lago das incertezas", subtítulo deste que é o terceiro livro de poemas do autor. 

As 68 páginas do volume são atravessadas pela presença icônica de algumas linhas que menos costuram do que desfazem os nós de uma aventura na linguagem, espraiada em cinco seções que mesclam prosas e poemas. Pena que o volume, de 68 páginas, abertas por epígrafe de Silviano Santigo, e seguidas por arguto ensaio de Edmilson Pereira, não comporte sumário, para que o leitor se informe das etapas que o esperam nesse périplo: "das asas", "ponto", "histórias reais de um carnaval imaginário", "festival" e "do risoto ao Mar Morto".

Tais títulos já indiciam a resoluta opção por trilhas refratárias a compromissos "realistas", confessionais, em prol de uma elocução que investe na espessura da linguagem. A dicção de Lucas deseja-se intensamente poética, ainda que às expensas de maior grau de comunicabilidade. Daí, em algumas peças, a constituição de um mundo imerso no onírico ("se aros de bicicletas rangessem olhos"), em que as palavras, em vez de "explicar" a realidade, terminam por cifrá-la. 

Num poema do livro de estreia. Onde (2011), declara Lucas: "poesia é alumbramento/... /é condensação de vertigens". Na segunda obra, 33,333-conexões bilaterais (2015), esmerada produção gráfica numa parceria com as imagens de Fernando Pacheco, o poeta permanece fiel a esse ideário, na busca de "palavras que trepam delírios". E em Exílio, não sem alguma ironia, declara: "você operária do verso coloquial/ permanecerei na órbita lunar/ .../ lerei seus posts ao contrário/ quem sabe me apaixono por você". Poeta lunar, na trilha de seu bisavô Alphonsus? Não exatamente, porque, se Alphonsus celebrava a luz da Lua refletida na Terra, Lucas prefere não aterrissar no planeta pedestre e "coloquial", optando por encetar viagens verbais que o lancem aos "brilhos das estrelas", território livre em que "feridas e sonhos remanejam o invisível". 

Uma atmosfera sombria marca a primeira seção da obra. Em "das asas", tanto na prosa do texto inicial quanto nos versos da grande maioria das nove peças subsequentes o desencontro é a tônica, conforme se lê na forte imagem que arremata o poema "exílio": "corrimão de incertezas sob os dedos da saudade". A abertura em prosa, seguida de poemas, é, aliás, um procedimento que se reitera em todas as seções do livro. Um curioso mix de realidade e delírio perpassa os blocos quatro e cinco, em que textos inicialmente "referenciais" - um festival de poesia de que Lucas efetivamente participou, na Turquia, uma viagem à Europa e a Israel - sofrem gradativas interferências e estranhamentos, a ponto de desnortear as balizas de causa e efeito que o leitor, eventualmente, estivesse tentando erguer. Em Lucas, o real surge em fragmentos, e o resultado remete a um conjunto de peças díspares que não propiciam a tranquilidade apaziguadora de um espelho, mas, ao contrário, atiçam a percepção do desencaixe das coisas, afirmando que nada é exatamente o que supomos que seja. Mundo em contínuo deslizamento, espaço de fraturas expostas pelo verbo, eis a fabulação de uma poesia que não nos acalenta, mas provoca e desafia. Contra o bom senso e a previsibilidade, este "exílio", decididamente, nos faz mergulhar no "lago das incertezas".

Estado de Minas, 06/04/2018