Cinco anos passados, ao receber desta Academia o prêmio Machado de Assis, iniciei meu agradecimento citando o nosso mestre: “A vida não é completamente boa nem completamente má.”
É um pensamento de Quincas Borba, não o homem, mas o cão que tem o mesmo nome do dono. Repito hoje a frase em outras circunstâncias, mas com a mesma convicção.
Seria o caso, Senhores Acadêmicos, de me render, humildemente e afinal, à generosidade de vossa acolhida nesta Casa.
Não sendo completamente boa nem má, a vida continua a me provocar espanto. Aqui estou eu, na tribuna mais ilustre do País, com minha péssima oratória, tomando posse na Cadeira no 3, cujo patrono, Artur de Oliveira, foi definido pelo próprio Machado de Assis como “um saco de espantos”.
Em 1897, quando Lúcio de Mendonça e Machado de Assis fundaram esta Academia, ficara estabelecido que cada ocupante escolheria o patrono de sua própria cadeira.
Filinto de Almeida, que integraria a primeira geração de acadêmicos, desejou ter o nome do poeta Gonçalves Crespo associado à sua poltrona. Machado dissuadiu-o, alegando que o poeta era português.
O próprio Filinto, nascido em Portugal, já era quase uma exceção, uma vez que os estatutos da Academia estabeleciam a condição de brasileiro nato para seus membros efetivos.
Contudo, seis anos antes, a primeira Constituição republicana, em 1891, dera a condição legal de brasileiro nato aos estrangeiros que aqui viviam à época de sua promulgação.
Vetado o nome por ele escolhido, Filinto aceitou a sugestão de Machado de Assis. E foi assim que Artur de Oliveira, sem obra literária organicamente construída, ficaria ao lado de José de Alencar, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Tobias Barreto, Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Raul Pompéia, Tomás Antônio Gonzaga, Fagundes Varela e outros nomes maiores de nossa história literária.
De Artur de Oliveira ficaram textos esparsos que Afrânio Peixoto reuniu em livro honestamente intitulado Dispersos. Deve ter sido figura interessante, de conversa fácil e trato cordial.
Cento e três anos depois, eu me pergunto o que seria “um saco de espantos” para um homem como Machado, que de nada e de ninguém se espantava. Devo a Josué Montello uma indicação que, na verdade, não deixa de ser espantosa.
Examinando a correspondência de Gustave Flaubert a Michel Lévy, Josué descobriu uma carta em que o maior romancista daquele tempo apresentava ao editor “o jovem brasileiro, Artur de Oliveira, que já traduziu metade de Madame Bovary e pede a sua autorização para publicar uma tradução portuguesa no Brasil”. E Flaubert acrescentava que já lhe dera a sua aprovação.
Não se conhece esta tradução da metade de Madame Bovary. Ignoramos se Artur de Oliveira traduziu a outra metade.
Temos assim o “saco de espantos” a patrocinar esta espantosa Cadeira, na qual, com o espanto, dela, cadeira, e o meu próprio espanto, passará agora a ser ocupada por mim.
Espantoso também seria o seu primeiro titular.
Poeta parnasiano, dramaturgo, cronista, político, Filinto de Almeida abordou todos os gêneros e em todos se destacou. Teve a vida misturada com sua obra num lance que se tornou um intervalo lírico em nossa nem sempre galante história literária.
Trabalhando na redação de A Província de S. Paulo, Filinto recebera os originais de um romance assinado por uma desconhecida. Logo percebeu que ali havia uma escritora. Após a troca de cartas, a desconhecida acabaria tomando o nome do próprio Filinto, tornando-se, pelo casamento, Júlia Lopes de Almeida, a romancista que abriria o caminho para grandes sucessoras, como Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon.
Filinto ocupou a Cadeira nº 3 durante quase meio século. Não contribuiu pessoalmente para a discutível imortalidade dos membros desta Casa, mas ajudou a formar o mito da longevidade dos acadêmicos.
Sucedeu-lhe Roberto Simonsen, que foi o único a desmentir em público a imortalidade, morrendo aqui mesmo, neste recinto, durante uma sessão em que a Academia homenageava um visitante ilustre.
Engenheiro, industrial, historiador e parlamentar, Roberto Simonsen escreveu a História econômica do Brasil e a Evolução industrial do Brasil, referências obrigatórias de nossa cultura especializada.
No Brasil, foi ele o primeiro a falar em planejamento econômico. E, apesar de sua especialização, é dele o paralelo mais feliz entre o artista e o técnico, o poeta e o cientista. No seu discurso de posse, Simonsen mostrou assombrosa sensibilidade num homem de formação técnica e surpreendente cultura literária num cientista econômico.
Foi sucedido por outro notável: Aníbal Freire da Fonseca.
Deputado federal em diversas legislaturas, membro do Supremo Tribunal Federal, ministro da Fazenda no governo de Artur Bernardes, catedrático de direito na Faculdade de Recife, diretor do Jornal do Brasil em dois períodos, tornou-se mestre de uma geração de juristas e acadêmicos.
Eu o conheci, menino ainda, quando frequentava a antiga redação da Avenida Rio Branco, levado por meu pai, que era redator do mesmo jornal. Encontrei-o diversas vezes ao lado de Raul Pederneiras. Ambos se vestiam de preto, chapéu, colete, gravata, sapatos, tudo preto. Tinham alguma coisa dos personagens hieráticos de Eça de Queirós. Meu pai dizia dele que era um bom. E todos dele diziam que era um sábio.
Autor de uma biografia de Rosa e Silva, seu mestre e mais tarde seu sogro, foi homem de grande correção moral. Casado com uma jovem rica, ao enviuvar entregou todos os bens da esposa à família dela.
Como lembrou Alberto Venancio Filho, em belo trabalho biográfico, “parentes de Aníbal Freire foram encontrar, nos guardados da mesa, os botões da grinalda de noiva, enfeites de bolo e outras lembranças do dia de seu casamento, por ele conservados durante mais de meio século de viuvez”.
Já em avançada idade, quando não podia vir à Academia, a Academia ia até ele. Aos sábados, com ele se reuniam Ivan Lins, Marques Rebelo, Cândido Mota Filho, Hermes de Lima, José Honório Rodrigues e futuros membros desta Casa.
Dele guardo uma imagem afetiva. Quando soube que eu iria entrar para o seminário, ele colocou as duas mãos sobre os meus ombros e garantiu que eu ainda seria cardeal.
Como dizia meu pai, foi um homem bom, boníssimo. Mas lamentável profeta.
Em 21 de setembro de 1971, ao empossar-se nesta mesma Cadeira, Herberto Sales teve melhores palavras e melhor estilo para homenagear aqueles que nos foram antecessores. Levo, porém, sobre Herberto uma involuntária vantagem. Preferia não tê-la.
É o bom assunto que ele me dá.
Este bom assunto é o próprio Herberto Sales, pois me cabe falar sobre um dos escritores contemporâneos cuja obra, traduzida em mais de 12 idiomas, representa um dos pontos altos da ficção brasileira.
Quero lembrar um pequeno episódio autobiográfico, uma vez que esta parte do protocolo ficará por conta de Arnaldo Niskier, amigo e companheiro há mais de 30 anos, para o qual peço, desde já, que relevem a generosidade com que ele me saudará, honrando-me com o brilho de sua inteligência e o favor de sua amizade.
Foi no início dos anos de 1960. Entrei na sala do Ênio Silveira, na Rua Sete de Setembro, 97, endereço histórico da velha Livraria Civilização Brasileira, na época a maior e a mais prestigiosa editora do País.
Com aquele estilo direto que lhe era próprio, ele me comunicou: “Você era para mim o autor mais vigoroso surgido no Brasil nos últimos anos. Mas agora apareceu um romancista maior e melhor: Herberto Sales, que ainda não é meu editado, mas o será brevemente.”
O entusiasmo do Ênio se justificava, mas não era correto. Ele acabara de ler Além dos marimbus. Não havia lido, ainda, a obra inaugural, e também obra-prima do escritor baiano, lançado pelas Edições O Cruzeiro.
Publicado em 1944, quando o autor tinha 27 anos, Cascalho é o imenso e formidável romance que logo se colocou, com mérito igual, ao lado das grandes obras do nosso ciclo nordestino, iniciado com José Américo de Almeida e prolongado em Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Adonias Filho e Rachel de Queiroz.
Como os clássicos da literatura universal, Cascalho tem a sua própria história. Demorarei um pouco a contá-la.
Morando em Andaraí, na região da Chapada Diamantina, Bahia, o jovem Herberto nada conhecia da vida literária do País. Correspondia-se com um escritor que admirava, Marques Rebelo, mas nunca lhe comunicou que estava escrevendo um romance.
Com mais de 650 páginas, o livro finalmente ficou pronto e Herberto enviou-o a um concurso coordenado pela Revista do Brasil, da qual Aurélio Buarque de Holanda era secretário. Os jurados não tomaram conhecimento do volumoso original do desconhecido autor.
Na obsessão de catar regionalismos, Aurélio apanhou o original, levou-o para casa e se surpreendeu com a qualidade do texto. Sendo vizinho de Marques Rebelo, com ele comentou a obra que estava lendo. Ficou admirado ao saber que Marques Rebelo correspondia-se com o autor.
Depois de lido pelos dois escritores, o original seria devolvido aos patrocinadores do concurso e desapareceria para sempre.
Enquanto isso, Marques Rebelo, em carta a dona Aurora de Azevedo Sales e não mais ao próprio Herberto, intimou-a a que mandasse o filho para o Rio, juntamente com o original. Teria o prazer de hospedá-lo em sua casa, o tempo que fosse necessário - o que realmente ocorreria logo depois.
Mas nem Rebelo nem dona Aurora sabiam que Herberto decidira encerrar a carreira literária que sequer começara.
Juntara folhas secas no quintal da casa de sua família, rasgara em quatro partes as 650 páginas da cópia de carbono, a única que lhe restara. Um fósforo, uma pequena fogueira e - perdoem a imagem sovada - uma Fênix morria para renascer às margens do lendário rio Paraguaçu.
Um fio invisível teceria a novela da qual resultaria uma das obras-primas de nossa literatura. Aurélio sabia que o original seria jogado fora e decidiu ficar com ele, a fim de se abastecer dos numerosos vocábulos regionais que mais tarde enriqueceriam seu famoso dicionário.
Quando Herberto escreveu a Rebelo, comunicando-lhe que queimar a cópia única de seu livro, foi surpreendido com a revelação de que o original continuava com Aurélio.
Com o prestígio de ambos, não foi difícil encontrar uma brecha no mercado editorial da época. E foi assim que o livro teve um lançamento de primeira classe, numa das bocas de fogo mais importantes daquele tempo, as Edições O Cruzeiro, pertencente ao grupo dos Diários Associados, que tinha o comando de Assis Chateaubriand. Por coincidência, um futuro acadêmico. Da mesma forma que os três envolvidos na publicação de Cascalho: Aurélio, Rebelo e o próprio Herberto Sales.
A consagração seria imediata. O ciclo do romance regional ganhava novo espaço em nossa geografia literária. O cenário não era mais a Várzea do Paraíba, os engenhos e as bagaceiras de José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Tampouco era o litoral baiano, águas encantadas por sereias, o chão coberto pelos frutos cor de ouro do cacau, os dois territórios mágicos - mar e terra - que ganhariam o mundo na obra de Jorge Amado.
Nem era a seca que afugentava homens e animais pelas caatingas, o flagelo que daria a Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz o ponto de partida para duas das carreiras mais gloriosas de nossas letras.
Em Cascalho, a fortuna e a maldição estão no ventre da terra. A lenda dos diamantes, fartos e facilmente encontrados até nas moelas das galinhas, na prodigalidade das aluviões ribeirinhas, atraíam homens e mulheres, velhos e crianças de toda parte.
Véspera da fortuna imprevista, a miséria permanente acampava no decadente burgo excluído da civilização, povoado de fantasmas sacrificados na dura moenda dos diamantes e carbonados.
A releitura do primeiro livro de Herberto Sales dá a sensação de um anúncio de Guimarães Rosa com seu universo vocabular e sua técnica inovadora.
Além dos marimbus, o livro que merecidamente me desbancou na preferência do nosso então editor comum, é bem posterior a Cascalho. O cenário é o mesmo, mesma a região já exaurida pelas bateias dos faiscadores.
A causa da miséria e violência não é mais o diamante. É a madeira que, nos anos de 1920 e 1930, já atraía a cobiça que devastava florestas e matas.
E Herberto Sales, inovando o gênero com a técnica e a linguagem de seu primeiro livro, surpreende o leitor de hoje com a visão pioneira da ecologia que naquele tempo não entrara ainda no vocabulário e na preocupação do homem contemporâneo.
Livro estupendo em todos os sentidos, capaz por si só de garantir a seu autor o lugar que ele já alcançara e no qual mais uma vez se alçava.
Até então, a abordagem crítica via em Herberto Sales mais um regionalista, do porte dos grandes nomes da safra nordestina que emergira na década de 1930.
Mas Herberto tinha mais dentro de si.
O livro seguinte, Dados biográficos do finado Marcelino, é um romance urbano numa Bahia que ainda não era Salvador, e iniciava seu período de metrópole nordestina.
Pela lógica existencial, poderia ter sido este o primeiro romance de Herberto, pois se trata dos anos de formação em que o jovem provinciano chega à cidade grande.
Na figura de um tio, inspirado em personagem real de sua família, Herberto mergulha na sociedade do incipiente capitalismo nacional, criando uma galeria de tipos que mais tarde se tornariam comuns na novelística brasileira.
Há, porém, neste romance urbano de Herberto, o toque da tragédia que ele trouxera de suas origens no velho Andaraí diamanteiro.
Do ponto de vista crítico, a obra de ficção de Herberto Sales sofreria uma espécie de segundo tempo que não significaria perda de substância e abrangência.
Radicado no Rio a partir de 1948, pouco a pouco seu universo interior expandiu-se não apenas por influência do meio físico da grande cidade, como também pela intimidade com o grupo de amigos que o cercou e o marcaria para sempre.
Já citamos Marques Rebelo e Aurélio Buarque de Holanda, decisivos em sua carreira literária. Herberto confessaria diversas vezes o quando a sua formação humana e intelectual devia a esses amigos.
Como filólogo, Aurélio sempre o estimulou na busca de sua elaborada linguagem regional. Ficaria lhe devendo um sem-número de palavras e expressões que ajudariam a consagrar o monumental dicionário que conhecemos.
Marques Rebelo, porém, era um carioca exaltado e entranhado na obra mestra de Manuel Antônio de Almeida. Seria um contraponto do jovem autor regionalista que ele paternalmente hospedava em sua casa, encaminhando-o no meio social e literário da antiga capital da República.
Homem de sólida formação intelectual, cujo bom gosto foi responsável pela sua fama de maledicente, Marques Rebelo o influenciou de várias maneiras, indicando-lhe leituras e transmitindo-lhe a paixão pelo rigor do texto, a integridade da obra literária sem concessões.
Surge, então, na vida e na carreira de Herberto Sales, a figura magra e saborosa de José Cândido de Carvalho, que mais tarde também se tornaria membro desta Academia.
Zé Cândido seria um autor regionalista, mas de um ponto de vista universal, como o próprio Herberto.
Faltando-me credenciais técnicas para analisar criticamente a literatura brasileira, mesmo assim não me falta coragem para afirmar que José Cândido de Carvalho e Herberto Sales, autores surgidos na virada dos anos de 1940 e 1950, deram dimensão nova à formidável geração nascida nos anos de 1930, hoje consagrada como momento excepcional da cultura brasileira.
Estava formado o grupo definitivo em torno do qual a vida e a obra de Herberto Sales prosseguiriam em sua segunda fase. Dataria deste período o aparecimento do contista. Um de seus livros, O lobisomem e outros contos folclóricos, apesar de o título ter sido dado pelo editor, não deixou de ser uma homenagem de Herberto a seu companheiro José Cândido de Carvalho, que estourara no cenário nacional com o antológico O coronel e o lobisomem.
Mereceriam um estudo à parte as relações de amizade entre esses quatro futuros acadêmicos. Cada qual a seu modo, em trilhas independentes, marcaria esta fase da inteligência brasileira. O mais surpreendente de todos seria o próprio Herberto, que a partir de certo ponto imprimiria à sua obra um sopro ao mesmo tempo didático, satírico e bíblico.
O fruto do vosso ventre, Einstein, o minigênio e Os prazeres do tempo, romances dos anos de 1970 e 1980, revelam o itinerário espiritual e filosófico do autor amadurecido, que transcendia seu universo ficcional e penetrava no sombrio átrio da desventura humana.
Esta fase não mais regionalista, mas vigorosamente pensada e superiormente expressada, teve como inesperado contraponto a intensa produção de literatura infantil, na qual se destacam três clássicos. Um deles, O sobradinho dos pardais, de 1978, venderia em poucos meses mais de 500 mil cópias. Hoje, o livro já vendeu mais de um milhão de exemplares.
Por esse tempo, a convite de Moniz Vianna, diretor de redação, e Fuad Atala, editor do segundo caderno, eu me iniciara como cronista no Correio da Manhã, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Otávio de Faria, que também seria membro desta Academia.
Uma tarde, recebi o telefonema de Herberto. Encarregado de organizar uma antologia de crônicas para as Edições de Ouro, ele desejava minha autorização para transcrever não uma, mas oito delas que haviam saído recentemente.
Guardo com carinho esta antologia, feita por Herberto, e na qual adquiri, por generosidade dele, um espaço a mais no ofício que exerço até hoje.
Paralelamente à sua carreira de escritor, Herberto Sales exerceu o jornalismo. Foi diretor e editor dos Diários Associados.
Presidiu, durante 12 anos, o Instituto Nacional do Livro, em cuja gestão editou numerosos autores clássicos e modernos. Teve a auxiliá-lo, com dedicação e competência, outro acadêmico desta Casa, o contista Bernardo Élis.
Mais tarde, seria adido cultural junto à Embaixada brasileira na França. Formaria com Josué Montello, então embaixador do Brasil junto à UNESCO, uma dupla que daria àquele período uma constante presença do Brasil no mundo europeu.
Membro desta Academia desde 1971, tendo sido saudado por Marques Rebelo, Herberto Sales experimentaria em sua estada parisiense o duplo sentimento do dever a cumprir e do exílio a sofrer.
Fiel às raízes, criança que se abrira à vida testemunhando a luta dos garimpeiros que escavavam a terra em busca da fortuna que logo se transformaria em maldição, Herberto passaria por doloroso processo interior, revendo valores e ampliando sua perspectiva espiritual.
A morte levara-lhe os grandes companheiros de jornada.
Sobrara-lhe a família como âncora de seu passado e luz do seu presente.
A despeito de sua obra, vasta e consagrada, traduzida em inglês, japonês, francês, polonês, italiano, tcheco e chinês, tendo o seu romance de estreia adaptado para o cinema e para história em quadrinhos, Herberto isolou-se da vida literária buscando refúgio em si mesmo, em sua mulher, Juraci, em seus filhos, Heloísa, Heitor, Herberto, em seus netos.
Ao deixar Paris, retirou-se para São Pedro da Aldeia, no litoral fluminense, onde reencontraria, nas mangueiras que plantou e nas flores que semeou, uma espécie de retorno ao seu Andaraí natal.
Durante todo esse tempo, em Paris ou em São Pedro da Aldeia, escreveria uma série de confissões e memórias a que daria o título de SubsiDiário. Temos aí o homem Herberto Sales diante de si mesmo, atravessando a escura noite da alma.
Suas anotações revelam um certo desencanto do escritor penetrado pela inexorabilidade do fim.
Olhando em volta, da altura humana e intelectual a que atingira, lamentando seus mortos, evocando seus fantasmas, o memorialista adota uma visão amarga, mas de vigorosa dignidade perante o mundo que viu e a vida que viveu.
Não faltam os momentos de depressão, comuns aos que se debruçam sobre si mesmos.
Mas o escritor, que tudo conseguiu do texto literário, o profissional bem-sucedido, o chefe de família admirável que amou e foi amado, o homem que foi Herberto Sales mostra-se à posteridade com uma grandeza que não se limita a si mesmo.
Atinge o tempo que lhe coube, tempo que ele honrou e do qual merece a nossa crescente e emocionada admiração.
Senhores Acadêmicos:
Tentei cumprir, da maneira que em foi possível, o dever de casa. Após antigas e bem fundadas hesitações, bati à vossa porta e fui acolhido com pronta generosidade. Nada vos trago além da minha vivência na literatura e na imprensa.
Fui educado em seminário, com mestres que não esqueço e dos quais guardo não apenas saudade, mas amizade e memória.
Embora nunca tivesse me candidatado a esta Academia, sempre tive com os acadêmicos uma relação especial.
Herdei de Otto Lara Resende a coluna diária na Folha de S. Paulo.
De Austregésilo de Athayde herdei aquele espaço que durante tantos anos ele enobreceu no Jornal do Commercio.
E nesta noite, cercado de parentes e amigos que tanto prezo, sucedo a Herberto Sales na Cadeira no 3.
Contudo, a herança mais cara ao meu coração foi a de uma boina basca que eu comprei no El Corte Inglez, de Madri, para Raimundo Magalhães Júnior, meu amigo e vizinho de mesa durante 20 anos na redação e no restaurante de Manchete.
Ele usava a boina quando o ar refrigerado estava muito forte. Reclamava de Adolpho Bloch quando o ar estava ligado, e reclamava mais ainda quando o ar não estava ligado.
Sempre que se abria uma vaga na Academia ele me sondava, perguntando se aquela não seria a minha vez. Teve um poderoso aliado nesta pressão. Num momento difícil, quando todas as portas se fechavam para mim, Adolpho me ofereceu a sua casa e o seu carinho.
Tenho a certeza de que Magalhães e Adolpho devem estar reclamando de tanto eu ter demorado a fazer a vontade deles. Deles recebi amizade e estímulo, só menores diante do amor e carinho que devo à minha mulher Beatriz, aos meus filhos Regina, Verônica e André.
Dou razão aos que estranham minha atividade de jornalista, sendo comum o equívoco sobre minha posição ideológica.
Fiz questão de marcar esta posse para o dia de hoje, final do mês dedicado a Maria – a jovem judia que aceitou participar, com a sua condição humana, no assombroso mistério de fé, no episódio que dividiria a história universal em antes e depois.
Continuo agnóstico, mas devoto dos meus santos tutelares. Considero-me em processo, doloroso mas sincero, de retorno à fé naquele Deus que o rei e profeta Davi dizia ter alegrado a sua juventude.
Não tenho disciplina mental para ser de esquerda, nem firmeza monolítica para ser de direita. Tampouco me sinto confortável na imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do centro.
Encontro em Eça de Queirós, em suas Notas contemporâneas, as palavras que poderiam me definir ideologicamente:
"A presença angustiosa das misérias humanas, tanto velho sem lar, tanta criança sem pão, a incapacidade da Monarquia e da República, da Ditadura e da Democracia para realizar a única obra urgente do mundo, a casa para todos, o pão para todos, lentamente me tem tornado um vago anarquista, um anarquista entristecido, humilde e inofensivo".
Menino do Lins de Vasconcelos, sou filho de um jornalista obscuro que transformei num personagem que todas as noites prometia a si mesmo: “Amanhã farei grandes coisas!”
Nunca fez coisas grandes, mas acreditava que viver era uma grande coisa.
Não lhe herdei a pureza nem a sabedoria. Este pai natural foi substituído por um pai espiritual, que colocou no pensamento do cão de Quincas Borba, o próprio cão sendo também Quincas Borba, a frase com que iniciei este discurso e o encerro: a vida não é necessariamente boa nem má.
Sendo este o pensamento de um cão cujo dono era um louco, não restou a Machado de Assis, em cuja Casa estamos hoje reunidos, senão a desculpa de que tudo no homem não passa de uma “poeira de ideias”.
Muito obrigado.