Nosso primeiro encontro ocorreu em Paris em 1968 e durou dois anos de convívio afetuoso; nosso segundo encontro ocorreu ano passado, com a vossa eleição para esta Academia, e vai durar o resto de nossas vidas.
Como vedes, dou à palavra encontro, nesta oportunidade, não o sentido dos caminhos que se cruzam ou tangenciam, mas o dos espíritos que se reconhecem, logo descobrindo entre si a concordância das ideias e sentimentos, com a qual se alicerçam as amizades verdadeiras.
Em 1968, fostes meu colega e companheiro, na Embaixada do Brasil; hoje, sois meu confrade.
Quer isso dizer que vamos caminhar lado a lado, fraternalmente, pelo tempo adiante. Não cometo o despropósito de afirmar-vos que envelheceremos juntos, mas posso perfeitamente pedir a Deus que me permita assistir ao despontar de vosso outono, lembrando-vos ainda este reparo de Joaquim Nabuco, no discurso de inauguração da nossa Academia: nesta Casa, os velhos não têm velhice.
Há quase 28 anos, na mesma tribuna em que há pouco nos falastes, eu tive ensejo de afirmar, exibindo neste Salão os meus saldos de juventude:
O velho conflito entre epiléticos e paralíticos, com que Ortega Y Gasset resumiu o antagonismo das gerações que se sucedem, jamais prevaleceu na Casa de Machado de Assis, em cuja altitude espiritual os acadêmicos podem ser comparados, em relação ao tempo que vai fluindo, aos pastores do topo da montanha, na tradição incaica do dilúvio universal: à medida que as águas subiam, a montanha também subia – e salvava os pastores.
Quase que eu poderia dizer, repassando a vista pela vossa obra, que chegastes a esta eminência, subindo os degraus de vossos livros. Cada um deles, na verdade, compôs o caminho ascensional que vos propiciou este patamar. A muitos de nossos predecessores, estas altitudes serviram de pretexto à insularidade da torre de marfim. Ou pelo menos deram ensejo ao descanso do guerreiro que alonga o olhar para o horizonte, já cansado de guerra, como a Teresa Batista do nosso Jorge Amado.
No vosso caso, não vai ser assim. Sois daqueles que nasceram com a vocação e o gosto da ação literária. E ação que transborda da coluna de jornal e da tribuna universitária ou acadêmica para o contexto do livro. Mas não tendes o gosto do livro pelo livro, no sentido acumulativo da obra do escritor. Tendes o gosto do livro como instrumento de ação pública, porque sois, concomitantemente, um escritor e um político. Como Nabuco. Como Rio Branco. Como Otávio Mangabeira. Como João Neves da Fontoura, para citar apenas alguns de nossos antepassados na Academia, e para os quais a palavra escrita, como substância da Obra de Arte, sempre teve no pensamento político a sua inspiração essencial. Um exemplo vivo? Ali está: Afonso Arinos. Outro? Barbosa Lima Sobrinho. Outro mais? Alceu Amoroso Lima.
Quatorze livros compõem, até este momento, o vosso acervo de escritor. Começastes com um livro de Crítica e Estética, Razão do Poema, estudando Ronsard, Bocage, Joaquim Cardozo, Hoffmann, Gonçalves Dias, Drummond, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, João Cabral de Melo Neto. E com uma singularidade a mais: a de introduzirdes em nossas Letras, com o ensaio Estética e Antropologia, nesse livro, os conceitos de Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss, ligados à reflexão estética. Quer isso dizer que, estudando a poesia alheia, quer nacional, quer estrangeira, vossa reflexão constituiu pretexto, desde cedo, para o universalismo das ideias modernas, retomando assim o caminho com que Sílvio Romero, no século XIX, renovou entre nós a Crítica Literária, ajustando-a a um plano de reflexão científica que sensivelmente a enriquecia e transformava.
Toda a vossa obra vai desdobrar-se na mesma direção. Ou seja: a da atualização cultural em função da Literatura Nacional. Mesmo quando preferis incursionar por mestres estrangeiros de vosso agrado, vossas vilegiaturas literárias têm por escopo servir à assimilação desses autores por parte dos autores brasileiros.
E aqui convém acentuar que é tão arraigada, em nossa atividade crítica, a vocação do Magistério, que os nossos críticos mais eminentes sempre compartiram a militância crítica, na coluna de jornal, com o tirocínio da cátedra humanística ou universitária, desde Sílvio Romero e José Veríssimo a Antonio Candido, Wilson Martins, Afrânio Coutinho e Eduardo Portella, sem esquecer Múcio Leão, Álvaro Lins e mestre Alceu Amoroso Lima.
A Crítica Literária, quer como síntese impressionista, quer como análise reflexiva do texto, tem muito de pedagógico, no sentido de corresponder a um método e a um sistema com que o crítico transforma a sua opinião pessoal em opinião coletiva. A visão individual se alarga em visão global, proporcionando ao texto literário a repercussão que toda obra de Arte reclama, na ordem do fenômeno social.
Por isso mesmo, ao compassar o caminho de vossa vida, não me surpreendi ao verificar que, à revelia de vossa carreira na diplomacia, a condição de professor tem acompanhado a vossa condição de crítico literário. Não me pergunto se o crítico vem do professor ou se o professor vem do crítico, porque um e outro correspondem às duas faces da mesma medalha, e medalha de ouro puro, com algo de sol compactado nas entranhas da terra.
Antes de vosso bacharelado em Direito, em 1963, já havíeis recolhido na mesma Universidade do Rio de Janeiro a licenciatura em Filosofia para alcançar, dez anos depois, na Universidade de Paris, com uma tese sobre a poesia de Carlos Drummond de Andrade, o título de doutor em Letras.
Ano passado, quando vos vi assomar na escadaria interna da Biblioteca Nacional, aqui no Rio, para abrir a exposição comemorativa do octogésimo aniversário de Drummond, logo concluí que nos íeis falar sobre o poeta, não apenas com o saber de vossos livros, mas também com a autoridade de vosso doutorado de Paris.
Toda a vossa vida, meu caro confrade, é uma constante lição de dedicação ao saber, quer como estudante, quer como professor. Um de nossos maiores, o velho João Ribeiro, ao publicar um de seus livros de maturidade, chamou-o de Notas de um Estudante. E não o fez por humildade, embora fosse humilde de feitio e condição: fê-lo para empregar a palavra própria, visto ser essa a condição de quem não perde a curiosidade pelo saber, a despeito do grande nome, da autoridade reconhecida e dos cabelos brancos.
Contou-me, certa vez, o embaixador Caio de Mello Franco, com quem tive a honra de servir em Lima, no Peru, que, ao iniciar-se na carreira diplomática, sob os cuidados do velho embaixador Sousa Dantas, em Paris, ouviu do chefe este conselho:
Nunca deixe que o vejam trabalhando. Dê sempre a impressão de que não está fazendo nada. Passeie, converse, vá a recepções, a coquetéis, borboleteie pelas livrarias e casas de moda; depois, em casa ou na Embaixada, ponha o seu serviço em dia, mas de modo que ninguém o apanhe em flagrante, trabalhando. Do contrário, você desmoraliza a carreira. Siga o meu exemplo.
Acabastes de fazer, na tribuna da Academia, o louvor de um dos discípulos diletos do embaixador Sousa Dantas. Ninguém viu jamais o nosso Paulo Carneiro trabalhando. Eu não vi. Vós não vistes. O embaixador Lyra Tavares também não viu. Paulo, muitas e muitas vezes, marcou encontro comigo, em Paris, para passear. Passear nos Champs Elysées. Passear nas margens do Sena. Passear no Bois de Boulogne. Para olhar as ruas, as árvores, as casas, as mulheres de Paris, os garotos de Paris, os peniches que vão descendo devagar pelas águas de Paris.
A conclusão natural, a extrair-se desse gosto da ociosidade e do passeio, é que Paulo Carneiro passou a vida sem fazer nada. Puro engano. Paulo Carneiro passou a vida trabalhando. Trabalhando segundo a recomendação do embaixador Sousa Dantas – sem testemunha. Vede a formidável enciclopédia que publicou na UNESCO e de que foi o grande coordenador. Vede o arquivo de Augusto Comte que ele fez sozinho, com a chave passada na porta da velha casa do filósofo, na Rue Monsieur Le Prince. Vede as obras de Arte que conseguiu salvar no Egito. E como se não bastassem os seus escritos, os seus livros, as suas pesquisas de laboratório, Paulo se dedicava aos amigos, aos confrades, aos patrícios, a quem quer que o procurasse. Tinha o gênio da dedicação aos outros, o gosto e o requinte da gentileza. Certa vez, em hora difícil para as suas finanças pessoais, convidou-me a almoçar, não num bistrô qualquer de Paris. Não. No Tour d’Argent. Com os melhores pratos. Os melhores vinhos.
Eça de Queirós, se houvesse conhecido Paulo Carneiro, tê-lo-ia tomado como modelo para o personagem central de A Cidade e as Serras. Aquele requintado Jacinto, príncipe da Grã-Ventura. Ou então como paradigma de Fradique Mendes. De quem disse o romancista, para resumir-lhe o saber, que “só quando sorria ou quando olhava se surpreendiam imediatamente nele vinte séculos de literatura”.
E agora vos quero dizer, Sr. José Guilherme Merquior, que, para o tipo de diplomata preconizado pelo Embaixador Sousa Dantas, tendes perfeitamente – como se diz em linguagem de teatro – o físico do papel. Relevai-me se vos afirmo que ainda deixais sentir um ar inaugural. Dir-se-ia que andais pela casa dos vinte anos, aguerrido, bem disposto, os cabelos pretos, o jeito afirmativo, o gosto de bem realizar. Correis o risco de que vos tomem por terceiro secretário e já sois ministro, a um passo apenas do fecho de vossa carreira.
Vossa mocidade harmoniza-se com a mais antiga tradição da Academia. Ou seja: daquela que vem de suas origens, quando se uniram duas gerações de escritores para criar esta Instituição sob a liderança intelectual de Machado de Assis. Nessa hora, o mais jovem dos companheiros, o futuro Embaixador Carlos Magalhães de Azeredo, tinha apenas 25 anos, enquanto o mais velho, o Historiador Pereira da Silva, já havia passado dos oitenta. Creio mesmo que prevaleciam os moços: alguns, na casa dos vinte anos; muitos, na dos trinta.
Permiti que vos conte, pelo seu a-propósito, o que ocorreu comigo, ao tempo em que me candidatei à Academia. Tinha eu 36 anos e fui visitar o Ministro Ataulfo de Paiva, que já andava a beirar os noventa.
Mestre Ataulfo recebeu-me no seu gabinete na Fundação Ataulfo de Paiva. Fez-me sentar, disse-me algumas palavras afetuosas e desfechou-me esta pergunta:
“Qual é a sua idade, Josué?”
Rapidamente, pensei comigo: “Se eu disser minha idade verdadeira, este ministro é capaz de mandar que o seu contínuo me leve a casa por eu estar sozinho na rua, no centro da cidade.” E decidi acrescer uma década à minha idade verdadeira. Dei à voz um tom convicto:
“Quarenta e seis anos, ministro.”
Ataulfo olhou-me durante alguns momentos, como a observar-me. E depois do exame meticuloso:
“Você está muito novo, eu pensava que fosse mais velho.”
E eu, de mim para mim:
“Perdi esse voto. Eu devia ter aumentado não dez, mas vinte anos. Ou trinta.”
E, como me limitei a dizer que tinha 46 anos, em vez de 56, ou 66, o ministro deu o seu voto a um de meus competidores, que ia a caminho dos setenta.
Felizmente, tanto no meu caso quanto no vosso, a idade não nos impediu a vitória. Mas, quanto a mim, desejo ainda acrescer um episódio complementar, ocorrido no dia seguinte ao de meu triunfo. Passava eu defronte da porta da ABL e ali encontrei o poeta Bastos Tigre, meu velho amigo. O poeta, que se candidatou várias vezes à Academia, sem alcançar a merecida vitória, recolheu de suas derrotas a impressão excessiva de que, nesta Casa, os poetas, os romancistas, os ensaístas, que fossem apenas poetas, romancistas ou ensaístas, dificilmente alcançariam os sufrágios necessários para vestir este fardão.
Por isso, ao abraçar-me pelo meu triunfo, Bastos Tigre me fez este reparo ao pé do ouvido, referindo-se aos meus eleitores:
“Josué, eles se distraíram.”
Na verdade, eu tinha aqui grandes amigos, grandes mestres, velhos companheiros, tão sensíveis ao meu gosto das Letras, que logo me abriram a porta da Academia, quando aqui bati pela primeira vez. Pudestes recolher também essa impressão feliz, meu jovem confrade, embora vos obrigássemos a aguardar que o pleito se repetisse. Moço como sois, tínheis o tempo a vosso favor.
Ao explicar ao nosso confrade Humberto de Campos por que havia votado em Ribeiro Couto, para a vaga de Constâncio Alves, Alcântara Machado lhe fez esta confidência:
“Preciso da companhia dos moços para ter a impressão de que também sou moço.”
Mas a verdade é que, tanto pelo que estudastes quanto pelo que escrevestes, já alcançastes aquela maturidade reflexiva que vos coloca entre os altos espíritos de que se orgulha o Brasil. Mais do que figura representativa de uma nova geração literária, sois, hoje, uma figura representativa do Brasil intelectual, no altiplano dos seus mais eminentes pensadores.
Raymond Aron, que de perto vos conheceu, não hesitou em declarar:
“Este moço leu tudo.”
Sim, lestes tudo, conduzido pela curiosidade universal de tudo saber. Aquela curiosidade que levava Cervantes a ler os papéis da rua. E que pôs nos lábios da mãe de Flaubert este receio:
“Tenho medo de que os livros acabem por secar-te o coração.”
No vosso caso, o convívio dos livros, em vez de estancar-vos as fontes do sentimento, na realidade aprimorou-as, aguçando-vos o olhar para o mistério da Poesia. E daí a penetração com que esse olhar aclara o verso de Drummond, de João Cabral de Melo Neto, de Gonçalves Dias, de Cecília Meireles, de Fernando Pessoa, de Carlos Nejar. A leitura ideal, como sabeis, não é apenas uma forma de conhecimento, é sobretudo um processo de reconhecimento, que identifica na mesma obra de Arte literária o leitor e o autor.
***
Nas breves notas biográficas que preparastes a meu pedido, para que servissem de subsídios a este discurso, omitistes a condição que, no meu entender, define o vosso pendor fundamental: a de polemista. Sois ensaísta, crítico, jornalista, professor, conferencista, mas sois, em essência, um polemista.
No entanto, quem vos olha, vendo em vosso rosto e em vossa pessoa um ar de menino contente, jamais imagina que, por trás dessa doçura, dessa voz suave, desse sorriso afetuoso, está o polemista destemido, com algo de Cirano de Bergerac, na peça de Rostand, sobretudo no famoso lance do duelo com o Visconde de Valvert, em que o poeta retine a espada e vai compondo uma balada.
Léon Daudet, que foi mestre da polêmica, quer em livro, quer na tribuna política, quer na coluna de jornal, e que não se esquivou ao duelo verdadeiro, com armas e testemunhas, diz-nos, em um de seus livros mais típicos, Flammes, que, desde a invenção da imprensa, ninguém pôde mais abafar o pensamento irritado.
Mas há polêmica e polêmica. Polêmica em que o polemista vem a público, a serviço da justa cólera literária, e chama ao desforço da pena o confrade que o irritou. E também polêmica em que, a despeito de todas as hostilidades e agressões, o escritor vai seguindo o seu caminho, teimando com a sua arte e as suas convicções.
Nosso Machado de Assis, tão sereno e superior no monumento à entrada da Academia, soube ser um polemista completo, tanto com a arremetida bravia, como quando criticou Eça de Queirós, a propósito de O Primo Basílio, quanto pela circunstância de ter realizado uma obra que não se confunde com qualquer outra, em nossa Literatura.
No entanto, foi ele quem deu este conselho à sua pena de escritor, numa crônica magistral: “Não te envolvas em polêmicas de nenhum gênero, nem políticas, nem literárias, nem quaisquer outras; de outro modo verás que passas de honrada a desonesta, de modesta a pretensiosa, e, em um abrir e fechar de olhos, perdes o que tinhas e o que eu te fiz ganhar.” E concluía: “O pugilato das ideias é muito pior que o das ruas.”
Entretanto, se não tivesse dado curso ao seu pendor polêmico, Machado de Assis jamais teria escrito as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em vez de ajustar-se à moda, que reclamava romances à maneira de Zola, de Eça de Queirós, com a realidade viva e a denúncia social, Machado recolheu seus modelos no século XVIII e talvez seja, por isso mesmo, o mais vivo e atual de nossos romancistas – o romancista da condição humana – a despeito de todo livro injusto e demolidor que lhe consagrou Sílvio Romero.
Olhai para o nosso Presidente, tão suave e tão bem comportado, debaixo daqueles cabelos brancos. Pois ficai sabendo que este dom Athayde conheceu na juventude, ao iniciar-se como crítico literário no Rio de Janeiro, os dois tipos de pugilato – o das ideias e o das ruas. Houve mesmo um período renhido em que, além dos punhos de jogador de boxe, com que impunha um argumento a mais às suas convicções literárias, aceitava medir-se com qualquer desordeiro da república das Letras.
Hoje, continua a ser o polemista, mas com outro método, outra astúcia. E o certo é que nenhum de nós lhe disputa mais a Presidência da Academia. Vence-nos pela operosidade, a dedicação e a gentileza, como outrora vencia o adversário com a frase viva e ágil, na coluna de jornal. E já desarmou a todos nós. Inclusive a mim.
A vós mesmo, Sr. José Guilherme Merquior, já ele venceu. E venceu sem que désseis por isso. Quisestes que fosse no prédio novo esta vossa festa. Estáveis disposto a lutar, a teimar, a bater com o pé, e eu vos segredei, com este meu saber de experiências feito:
“Conversa com o Athayde. Depois, volta a me falar.”
Conversastes e não tardastes a me dar o resultado dessa entrevista:
“O presidente tem razão. A festa tem de ser mesmo no prédio velho.”
A polêmica não é privativa do Presidente da Academia. Faz parte da condição acadêmica. E é por espírito polêmico que nos metemos neste fardão. E por espírito polêmico que entramos aqui. E é por espírito polêmico que aqui permanecemos.
Nosso saudoso Confrade Vitorino Nemésio, no estudo que serve de prefácio aos dois volumes de As Grandes Polémicas Portuguesas, publicado em 1964, em Lisboa, pela Editora Verbo, lembra-nos que Alexandre Herculano era um tipo curioso de polemista, ou seja: um objetor de vocação, que afirmava, indignando-se.
Sereis assim, Sr. José Guilherme Merquior? E por que não, se o paradigma é bom? Convém não esquecer que Herculano, numa breve frase, tonteou o mais famoso polemista de Língua Portuguesa, Camilo Castello Branco, quando afirmou que Camilo insistia em desconhecer a ortografia visto que continuava a escrever camelo com I.
Agora, vede o lado criativo das velhas rinhas literárias, na opinião do grande Nemésio:
Só quando a polêmica nacional sai do puro terreno da dissidência literária para o desta alargado de implicações religiosas e políticas, e, ainda melhor, para o simples ring das testilhas pessoais e partidárias, o seu vigor e relevo têm consequências profundas na criação linguística e na caracteriologia etnológica. Só então ela exprime o comportamento do português como reatividade humoral, sofística, euforia verbal, gosto do contraste e do impropério.
Se não chegastes a este recurso extremo, quase sempre completado pela troca das bengalas e dos tiros, vós o deveis à vossa condição de diplomata – a mesma que há de ter poupado de solução análoga aquele a quem Gilberto Freyre chamou de D. Quixote gordo. Refiro-me ao velho Oliveira Lima, de quem dizia Emílio de Menezes:
Tem mil léguas quadradas de vaidade
por milímetro cúbico de banha.
Não seria tanto assim. Oliveira Lima teve, sempre, a consciência plena do seu valor, com o espírito da luta, o gosto da controvérsia das ideias, o pendor para o litígio das opiniões.
No vosso caso, a polêmica é uma forma de afirmação permanente. Se desabais sobre o vosso contendor com o peso das vossas leituras, sabeis perfeitamente que assim fazia Tertuliano, que se atirou contra pagãos e católicos, no auge do pugilato religioso.
Por isso mesmo, qualquer de vossos livros é um livro polêmico. Mesmo As Ideias e as Formas. Ou A Natureza do Processo. Ou ainda a revisão do conjunto de nossa história literária, De Anchieta a Euclides. E também Saudades do Carnaval, com o qual correis o risco, como carioca, de fornecer subsídio à história do carnaval no Rio de Janeiro, embora tenhais circunscrito à crise da Cultura o território literário de vosso debate.
***
Já Gonçalves Dias, na “Canção do Tamoio”, nos advertiu de que
A vida é combate
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos.
Só pode exaltar.
Bem sabeis que a própria vida diplomática, a despeito de suas cortesias externas, é uma luta vigilante em que o ruído dos entrechoques internacionais se processa o mais das vezes com o tinido dos cristais e dos talheres. A conversa amena, por onde circulam as anedotas, substitui o corpo a corpo e pugilato, assim como a braçada de flores elide a intimidação pelas armas.
Sois diplomata, e dos mais ilustres e experientes, e sois crítico literário e ensaísta político. Poder-se-ia supor que o diplomata neutralizaria o crítico e o ensaísta, mas os três têm igual substância polêmica, cada qual com o seu estilo e o seu modo de ser.
É preciso ver-vos num debate ao vivo para ter a dimensão de vossos recursos de esgrimista exímio. Não vos inflamais além da vivacidade de vosso papel. E tendes o recurso supremo, para os entrechoques mais renhidos: a palavra fluente, e apropriada, assim como a citação justa, que cai no debate como uma brigada de choque.
Já fostes acusado de pôr abaixo uma biblioteca para contestar uma opinião contrária. Sei o que é isso, porque também já fui acusado de mobilizar autores e livros, exibindo minhas leituras, para sustentar um ponto de vista.
Estamos em boa companhia. Montaigne fazia isso mesmo. A citação objetiva e clara, com a indicação da autoridade e da fonte respectiva, faz parte da probidade do escritor. Se este ou aquele mestre disse isto ou aquilo que se ajusta ao meu texto, porque deixar de aludir ao seu nome e ao seu trabalho, na hora própria? Vede Casa-Grande & Senzala, de nosso Gilberto Freyre, ou Rondônia, de Roquette-Pinto, e ali encontrareis a multidão de mestres que permitiram a um e outro o apoio de suas convicções – sem prejuízo da originalidade própria, que está na essência e na inspiração daquelas obras permanentes.
Se pergunto a mim qual dos vossos livros tem a minha preferência, começo por dizer que todos têm o meu aplauso. Porque qualquer deles corresponde às várias etapas especulativas e reflexivas de vosso espírito. Nascestes com a vocação do universal para melhor servir ao nacional, e foi isso que fizeram Euclides, Tobias, Oliveira Viana, Tavares Bastos, Sílvio Romero. Em suma: todos aqueles que se valeram dos grandes mestres para vivificar o pensamento brasileiro, nas Letras, nas Artes, nas Ciências, nas Técnicas, no estilo e na norma de vida.
Um dos nossos mais argutos e cultos ensaístas, Franklin de Oliveira, meu conterrâneo e meu companheiro de geração, teve oportunidade de acentuar, opinando sobre um de vossos grandes livros, As Ideias e as Formas, que sois sobretudo um escritor. Vale à pena repetir-lhe as palavras, nas luzes desta noite: “José Guilherme Merquior, que é antes e acima de tudo um escritor, vê e pratica o ensaio não só como a grande forma da inteligência crítica, mas também como uma província limítrofe da Poesia.” E acrescenta, linhas adiante: “Se Merquior assume o ensaio como gênero artístico, simultaneamente o maneja como heresia, na acepção de Adorno.”
Tendes aí um testemunho a mais em favor da citação adequada. Franklin disse, por mim, de modo exato e límpido, o que eu queria dizer, nesta cosmovisão de vossa obra.
É preciso não esquecer, porém, que essa obra está em pleno processo formativo. Ides ainda em meio do caminho. E pertenceis à linhagem dos escritores que se aprimoram diante do público. Uns esplendem ao amanhecer, como o sol de primavera. Outros, ao meio-dia, como o sol do outono. Outros no entardecer, como o sol de verão.
Este encontro com a Academia ocorre numa hora de plenitude. Mas sei que sois daqueles mestres que têm o sentido da continuidade do trabalho literário, como Alceu, como Jorge Amado. De um de vossos confrades, já ouvi esta determinação: que só deixará de escrever, quando Deus lhe tomar a caneta.
Compreendo que seja assim. A palavra escrita, para o verdadeiro escritor, é uma forma de vida que só a morte tem o dom de interromper. Perguntai a Austregésilo de Athayde qual o segredo de sua vitalidade? E a Alceu? E a Barbosa Lima Sobrinho? E a Afonso Arinos? E a resposta é a mesma: a fidelidade ao trabalho literário. Porque ele é também o nosso testemunho.
***
Eu gostaria de chamar a atenção de nossos confrades para um de vossos ensaios, Vt Ecclesia Parnassus, incluído no volume Estruturalismo dos Pobres e outras Questões. É nesse estudo que debateis a função social do escritor na civilização industrial, tomando como ponto de partida o problema da emancipação do pensamento literário, de que a obra de Goethe é mais do que o exemplo – é o testemunho vivo, nas três modalidades fundamentais da mimese poética: a Lírica, a Narrativa e a Dramática.
Nossa época tem esta singularidade: o pensamento político tende a assumir uma postura religiosa, vizinho do fanatismo, na radicalização da luta pelo poder. Chega a ser dogmático. E com este parentesco com a velha Igreja inquisitorial: inclina-se mais a condenar que a tolerar e salvar. Não quer compreender. Sobretudo quando está em causa o velho pensamento liberal. Ortodoxo, sim, heterodoxo, não.
Não creio que Goethe, hoje, depois de dialogar com Napoleão, pudesse manter a sua postura olímpica, acima das controvérsias irritadas. Seria empurrado para a Direita. Com todo o esplendor de seu gênio. Ou insultado, ou condenado ao silêncio.
A esta altura de minha vida de escritor, se algo eu pudesse dizer aos meus confrades mais novos, como súmula da vida que vivi, eu lhes dirigiria estas palavras:
“Defendei, como patrimônio fundamental do homem, esta conquista suprema: a liberdade.” Liberdade para exprimir o vosso pensamento. Liberdade para publicá-lo. Liberdade para responder por ele. Não vos coloqueis acima do bem e do mal, porque tendes este compromisso secreto: o das vossas verdades. Não abdiqueis jamais desse compromisso. Lembrai-vos do exemplo de Galileu. Tão oportuno, tão atual.
Sei, por experiência própria, o quanto custa ao escritor preservar a sua independência. Por isso, no momento em que chegais a esta Casa, vale a pena proclamar que esta Instituição se constituiu sob o signo da comunhão das ideias. Aqui se irmanaram, liderados por Machado de Assis, os jovens republicanos e os velhos monarquistas. Ao longo do tempo, soubemos preservar esse espírito de concórdia na discordância das ideias e das convicções.
Certa vez, nos entrechoques da Primeira Guerra Mundial, um jornalista perguntou em Lisboa ao velho crítico português Teófilo Braga se este era germanófilo ou aliadófilo. Ao que o velho prontamente respondeu, com verdade e bom humor:
“Eu, cá, sou Teófilo.”
No jogo das controvérsias radicais, temos de ser Teófilos. Ou seja: fiéis a nós mesmos, a nossas verdades básicas, aquelas em virtude das quais a palavra escrita não pode ser um devaneio ou uma vadiação, mas um privilégio – o privilégio em virtude do qual a palavra enunciada, que é efêmera, tende a perpetuar-se, convertida em obra de Arte, no texto impresso.
Esse privilégio vos trouxe até aqui. Já tínheis, por isso mesmo, a vossa imortalidade – confirmada agora pela imortalidade da Academia. E estes aplausos.
11/3/1983