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O rei da cocoroca

 

Modéstia à parte, sou o pior pescador do mundo. Deve ser uma condenação astrológica: os peixes teimam em não morder o meu anzol.

Certa vez, na adolescência, participei de uma pescaria numa praia chamada Mar do Norte. Ao constatarem que todos haviam pescado, exceto o desafortunado locutor que vos fala, meus companheiros aproveitaram meu pipi-stop para enganchar um peixe recém fisgado na minha linha, para em seguida lançá-la de novo ao mar. Quando voltei e percebi as oscilações de minha vara, recolhi avidamente aquele que seria o primeiro peixe de minha vida. Mas, ao recolhê-lo, percebi o ar de compaixão dos outros, me dei conta da farsa e de meu destino trágico.

Nunca mais falei em pescaria. Contudo, o tempo passa e a gente se esquece até das maldições do passado.

Um dia meu querido amigo João Ubaldo Ribeiro, com quem me encontrava semanalmente para trabalhar ou bater papo, ficou com saudade das pescarias em sua ilha natal, Itaparica. E me perguntou: “Como se faz para pescar no Rio de Janeiro?” 

Relatei ao João Ubaldo minhas desventuras. Mas, como não se pode recusar o apelo de um amigo, saímos em peregrinação. Primeiro fomos ao Bar dos Pescadores, na Barra, onde havia pescaria em minha infância. Fomos encarados com desconfiança pelos locais. O que desejariam aqueles tipos suspeitíssimos, um baiano de bermudas e um carioca cabeludo? Seriam fiscais mal disfarçados do Ibama? Obstinados, fomos em frente.

Na colônia à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas fomos recebidos com suspeitas semelhantes. Um fracasso. Como último recurso, sugeri que fôssemos à Urca. Lá chegando, perto da Fortaleza de São João, entramos num botequim, onde perguntamos a um cidadão se havia a possibilidade de pescar na área. O sujeito nos tratou com singular aspereza, e isto despertou a simpatia de um dos frequentadores do bar. Ele nos reconheceu, veio em nossa defesa e disse alguma coisa como: “Trate esses dois com respeito: são o João Cabral de Melo Neto e o Geraldo Vandré.”

O cidadão áspero com quem dialogávamos passou a nos tratar com educação. Descobrimos que sua suposta aspereza era, na verdade, sotaque espanhol: ele nascera em Vigo e se chamava Pablo. Passou a ser o nosso guia. Alugávamos seu pequeno barco e nele navegávamos até a beira do Pão de Açúcar.

Em nossa primeira pescaria, lancei a linha ao mar, achando que meu destino, como de hábito, era dar banho na isca. De repente, comecei a sentir fisgadas, a puxar peixes fora d’água, com a paixão e a perplexidade de quem assiste a um milagre. Aleluia, a maldição desapareceu!

Fiquei numa felicidade de criança. Eram peixes de baixa qualidade, mas quem nunca comeu melado se lambuza com qualquer bagre. O João Ubaldo sabia o nome de todas as “marcas de peixe”, como dizia o pessoal de Itaparica, e morria de rir com meu entusiasmo de aprendiz. No fim da nossa jornada, ele me deu um apelido digno de um novo rico nas artes da pescaria: o rei da cocoroca.

O Globo, 25/06/2017