Há alguns anos, Fernando Gabeira revelou que, sendo candidato petista, amadureceu a decisão de sair do partido quando, ao gravar um programa eleitoral, foi surpreendido por uma encenação coletiva em que políticos de ar sério e pastas na mão fingiam se consultar ou exibir papéis e projetos em gestos teatrais, como se estivessem trabalhando. Chocado com a farsa preparada para enganar os eleitores, pura casca sem substância, concluiu que não queria continuar participando daquilo.
Há menos de um mês, dia 19 de agosto, em entrevista à BBC, Lula afirmou que em seu governo o Brasil era um país mais rico do que a Inglaterra. A fanfarronice pode ter sido recebida com sorrisos zombeteiros de alguns ou gargalhadas francamente debochadas de outros, racionalmente incapazes de aceitar que agora sumiu de repente, como carruagem de Cinderela nas 12 badaladas, esse país tão rico que não chegou a ser visto, com a pobreza resolvida em nível britânico — em saneamento básico, saúde gratuita para todos, habitação popular, escola de qualidade, transporte de massa adequado e segurança pública que permita a qualquer cidadão andar tranquilamente em sua cidade a qualquer hora. Mas muita gente não estranhou e engoliu a balela numa boa. Outros nem ligam, relevam a bazófia, gabolice que não prejudica ninguém e se repete há tanto tempo que já anestesiou os ouvintes. Tudo bem, a crença é livre. Acredite quem quiser. Com fé religiosa não se discute — é um fervor poderoso que opera em outra esfera, capaz de aceitar todos os milagres e promessas, inocências e santidades.
A dificuldade começa quando o fiel religioso é chamado a ser eleitor. A distinguir transparência de jogo de cena. Ainda mais em dias dramáticos como estes, em que uma presidente eleita por 54 milhões de votos é impedida por um congresso eleito por 140 milhões. Essa legitimidade de parte a parte só aumenta a exacerbação dos ânimos, já esgotados por processo tão longo. Sucedem-se momentos exaltados — de xingamentos de canalha e golpista a uma estarrecedora confissão do presidente de um Poder cobrando de senadora por favores oriundos de gestões indevidas junto a outro Poder. Câmeras guardam as imagens que para elas exibem os participantes, cada um buscando seu melhor ângulo e maior protagonismo na construção do personagem que deseja impingir à história ou à campanha eleitoral futura — não apenas diante de jornalistas, mas também de ficcionistas, mais uma vez desprezando fronteiras entre documento e circo, transparência e encenação. Mais que o fato, importa é “a disputa pela versão dos fatos”, como explicitou o líder petista no Senado. Sair bem na foto, no filme, no livro. As imagens mostram quase tudo, mas em falsa transparência. Ocultam, por exemplo, as manobras de bastidores pelo fatiamento da decisão, de modo a garantir que congressistas (como Cunha ou Renan, para só citar as estrelas) sejam também beneficiados no futuro. Ou que daqui a pouco a presidente defenestrada possa driblar a Justiça e pular para dentro de casa outra vez, pela janela do foro privilegiado.
Não é a primeira vez que os holofotes midiáticos atuam nesse jogo. Um dos momentos mais emblemáticos a que a nação assistiu, no impeachment do Collor, foi propiciado pelo então presidente do SFT, Sidney Sanchez: tendo recebido um envelope lacrado do presidente da República, em pleno exercício de suas funções, deixou para abri-lo ao vivo durante o “Jornal Nacional” e leu , para microfones e câmeras, o texto em que Collor destituía seu advogado. Não se sabe se sob comando de um diretor de cena quanto ao ângulo ideal ou à melhor luz.
A diluição desses limites entre realidade e espetáculo também está presente nas sucessivas discussões sobre vazamentos e não apenas aqui e agora. Lá fora, basta lembrar os questionamentos envolvendo Julian Assange ou Edward Snowden (logo transformados em heróis de filmes ) e suas explosivas revelações, do tipo “doa a quem doer”. No Brasil, temos um exemplo didático: o do agora sumido procurador Luiz Francisco de Souza, que no governo FH consagrou o obsessivo processo chamado de “escandalização do nada” e falsos vazamentos, ao fazer denúncias semanais que logo ecoavam na mídia, provocando investigações que eram arquivadas em seguida por falta de base, mas enlameavam nomes e davam origem a acusações de “engavetamento geral”.
Para evitar manipulações ocultas, a cada vazamento cabe desconfiar e perguntar a quem serve a divulgação daquele rumor ainda sem provas. Analisar quem se beneficia com aquela “informação” assim plantada e coberta pela impunidade garantida pelo sigilo da fonte. Lembrar que a cada plantação anônima corresponde uma futura colheita. E a safra anunciada pode apenas ser a mentira de uma erva daninha trazendo riscos para a tenra planta da democracia, regime ideal ainda que imperfeito. Sempre ameaçado por aqueles que, dos bastidores, confundem iluminação ou transparência com sombras e jogo de cena. Olho neles.