O tema que me foi deferido obriga-me, inicialmente, a fazer uma incursão conceitual sobre a palavra “Filologia”. Ela é claramente de origem grega e durante muito tempo foi usada não para fim dos estudos lingüísticos, porque “filólogos” eram os que apreciavam a palavra como expressão do pensamento. Isso permitiu que, no curso dos séculos XVI e XVII, a palavra “filólogos” fosse usada, não conforme a entendemos atualmente, mas para designar os pensadores, e o último deles que insistia em chamar-se filólogo foi, exatamente, o nosso Nietzsche: ele se intitulava filólogo. Por aí se pode imaginar o sentido que a palavra tomou.
No início do século XIX, os franceses usaram a palavra no sentido real, hoje em dia aceito: o estudo da língua em função daquilo que se entendeu, então, como língua, a palavra escrita. Só pelo fim do século XIX, já bem adentro do século XX, é que a palavra foi substituída por “Lingüística”, no sentido de que esta seria mais abrangente. Criada só na terceira década do século XX, ela tinha a aspiração de cobrir a área da Filologia e mais a área da Lingüística, propriamente dita.
Em que sentido houve essa mudança? É que o estudo da Filologia, adstrito à palavra escrita, era uma autolimitação involuntária, no que se referia a um fenômeno muito importante na história da humanidade, mas extremamente recente. Quero com isso dizer que, quando pensamos em termos de língua, temos que pensar em termos de algo que existe com o homem há pelo menos 30 mil anos, e, na hipótese do Homo sapiens, daí para algo como 120 mil anos.
Não há nenhuma razão para supor que o Homo sapiens não fosse um homem falante; ele poderia ter sido chamado, desde o início, Homo loculis. Mas, notem bem, a expansão desse homem foi muito lenta na História da humanidade, tanto assim que se supõe que há apenas uns 10 mil anos a humanidade tenha atingido 10 milhões de habitantes. Vale dizer, era algo como um qüingentésimo- avos: 1/500 vezes. Hoje, a nossa população é de, no mínimo, 5 bilhões de homens, e naquela época era no máximo de 10 milhões.
Hipóteses muito procedentes, na base de comparações com o estado da língua presente, permitem que nós suponhamos que há 10 mil anos o número de falantes (10 milhões) se distribuía por algo em torno de 20 mil línguas, porque a média do homem nomádico, que naquele tempo existia, ainda sem o fenômeno da urbanização, permitia que houvesse grupos humanos extremamente reduzidos, para sobrevivência, mas não usando entre si línguas próprias, línguas essas que, evidentemente, ouviam de uma protolíngua. É a hipótese que agora se admite. Protolíngua que supõe um mecanismo pelo qual houve, realmente, uma mudança no procedimento do Homo, e esse Homo sapiens conseguiu, pela primeira vez, criar um mecanismo social de intercomunicação.
Essa intercomunicação, pelo pequeno número de falantes e pelos impedimentos econômicos que eram muitos, criava uma contínua cissiparidade, de tal maneira que uma língua só, muito brevemente, se representasse em centenas de línguas - daí para mais - num período em que, durante muito tempo, essa cissiparação se manteve.
Assistimos ao segundo momento importante desse processo, quando o homem começa a ter necessidade de transmitir a sua tradição. Hoje em dia, é ponto pacífico que as línguas ágrafas, que são a maioria, elas todas têm uma literatura prévia. Elas se representam através de uma “oratura”. A palavra é nova, para designar esse fenômeno de transmissão da reserva grupal, geralmente em forma de canto. Daí o fenômeno que foi testemunhado pela cultura helênica, cujos versos, os poemas homéricos, são incontestavelmente anteriores ao advento da escrita em grego, o que ocorreu em documentados depoimentos que vêm desde César, com os celtas. E, atualmente, estudos que têm sido feitos, intensivamente, nos grupos orais, mostram que esse saber armazenado em forma de poema, em geral, é anterior à literatura.
A literatura, realmente, ter-se-ia afeiçoado com o advento da escrita, muito provavelmente segundo os recursos mnemônicos que a humanidade já havia criado. Ora, ao tratar com esse segundo lapso, vamos ao terceiro momento importantíssimo: a escrita só deve ter aparecido há 7 mil anos, no máximo, em forma muito provisória, ou muito pouco recomendável para grande grupo, e em breve assumiria a feição que nós sabemos - a escrita ideográfica, seguida de uma escrita hieroglífica, quer dizer, os ideogramas segundo uma forma sagrada de transmissão, e, mais tarde, com a forma fonográfica.
A literatura propriamente dita só aparece algum tempo depois desse advento do alfabeto da transmissão visual e da cadeia falada. Ora, quando se chega a essa conclusão, a primeira pergunta que se fará, evidentemente, é: Como é que houve o interesse do homem pela própria língua?
O fato de ter usado o elemento mnemônico mostra que houve, no grupo, alguém ou alguns que eram os poetas da tribo. Nem todos tinham essa habilidade; podiam entendê-la, mas ela era de domínio de uns poucos. Esses poucos tiveram um estatuto quase sempre sagrado, foram alçados a retentores do saber coletivo e foram os transmissores desse saber coletivo. Entre os celtas, a iniciação de um druida, que era um desses transmissores, era tão difícil, que o recurso mnemônico tinha que ser aprendido, ensinado, durante um grande lapso de tempo de vida do druida, mas, em compensação, ele podia transmitir o saber coletivo com uma fidelidade impressionante.
Isso, evidentemente, deve ter-se repetido até mesmo entre tribos brasileiras, as que estão no estado ágrafo. Essa capacidade do ágrafo, hoje em dia, se documenta em quantidade de povos que estão ainda no estágio ágrafo, sem citar o mais belo de todos na tradição humana, como no caso dos beduínos, que se mantiveram culturalmente ágrafos, durante um largo tempo, para poderem transmitir a sua poesia. E o fato é tal que, no mundo árabe, durante muito tempo, os grandes poetas escritos, os grandes poetas de erudição costumavam, freqüentemente, desaparecer do convívio culto para irem se abeberar nas fontes dos beduínos, a fim de refazer a sua inspiração. Isso é muito característico.
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Temos que falar de filólogos, que é o tema que nos cabe. Quero dizer, simplesmente, que a discrepância da palavra – entre a fase de filólogo e de lingüista – criou o fato de que, durante largo tempo, não se fez Filologia no sentido do termo atual. O que se fez foi um saber que era objeto de estudo sobre a língua escrita. Nós sabemos que os retores gregos e os gramáticos gregos, durante longo período, transmitiram um saber que foi aproveitado, em grande parte, pelo mundo latino, que também teve gramáticos e teve retores, porém não teve filólogos.
O estudo pré-inicial das línguas foi feito nessa base da palavra escrita. Essa palavra escrita, hoje em dia, é o centro de cerca de 400 línguas, no máximo, das 20 mil línguas que se supõe haver ainda na Terra, numa hipótese alta. Na hipótese menor, há, no mínimo, 6 mil línguas ainda, algumas em grupo muito pequeno de seres, e outras com quantidade suficiente. A distribuição das línguas no mundo é objeto de uma pesquisa cada vez maior, e mostra, realmente, que há afinidades de grupos enormes.
O grande estudo inicialmente feito com o grupo indo-europeu, em conseqüência do descobrimento do sânscrito, tal como foi visto no fim do século XIX na Índia, com o comparativismo nascido então, permitiu que o indo-europeu fosse recriado na base das línguas geneticamente iguais. Esse indo-europeu criou um sistema comparativo eficiente e serviu de modelo para outros estudos, como o semítico uralo-altaico e as línguas asiáticas, em que há dois grupos bem distintos.
Um grupo tonal, que se repete na África, e sem que se possa ver a hipótese de uma genética em comum, em que o tom entra como elemento supra- fonológico, que em certas línguas chega a ser uma sílaba com oito modulações, faz com que essas sílabas signifiquem outros elementos semânticos. O que, para quem não tem o tom como elemento significativo na sua cadeia falada, torna-se quase impossível de pensar – eu não diria nem de reproduzir, mas de pensar. Quem é que tem a capacidade de distinguir um mesmo tom, a mesma unidade fonética, em geral um monossílabo, em oito tons diferentes, e reproduzir esses oito sons, continuamente, sempre que tenha uma das significações que lhe dá? É realmente uma das características da complexidade das línguas para os homens.
Mas, voltando ao fato fundamental que é a nossa questão dos filólogos, devo dizer que, em Portugal, há uma série bem designada como filólogos, que vão de 1868 a 1945. Por quê? O primeiro que usou a expressão, como sua profissão, ou pelo menos sua vocação cognitiva, foi Francisco Adolfo Coelho em 1868. E, após ele, houve uma geração brilhantíssima de filólogos portugueses que, de fato, precederam em grande parte aos brasileiros. São eles: Francisco Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcellos, este o autor de uma Revista Lusitana, falecido em 1948, quando o grupo deixa de se chamar de filólogos e passa a adotar o nome de lingüistas.
Filologia, hoje em dia, é um fato histórico em Portugal, num sentido também nosso: eles se dizem lingüistas, como, eventualmente, está ocorrendo no Brasil. A maioria dos nossos filólogos foi, em geral, de professores de Português, de Latim e eventualmente de Grego, professores esses que luziram, no conhecimento da Filologia, como segunda tarefa da sua pesquisa.
Aqui na Academia, quem se candidatou para entrar dizendo-se filólogo – o único que eu saiba – foi o nosso homem do linguajar carioca, Amadeu Amaral. Quando entrou para a Academia, ele já era autor de um trabalho de Filologia extremamente importante. Se é um poeta discutível (eu não acho, para mim, é um poeta perfeitamente palatável, não é um poeta transcendente, mas tinha um domínio muito grande da poesia), na realidade ele foi, inicialmente, um bom pesquisador em campo. Na área chamada “caipira”, Piracicaba e periferia, ele fez uma excelente pesquisa, aí pelos idos de 1918.
Quase cinqüenta anos depois, uma lingüista muito apta, Ada Natal Rodrigues, repetiu a pesquisa, com a mesma metodologia, chegando aos mesmos resultados descritivos, o que foi uma coisa extremamente importante, no sentido de revelar que o dialeto brasileiro existia e que pôde perdurar, sem alteração, durante esse período todo de tempo, quando, hoje em dia, a hipótese que se faz é de que a ação dos meios de comunicação de massas estaria demolindo essas diferenciações locais. O que me parece uma gratuidade, por enquanto, porque, realmente, o que pode demolir a dialetação brasileira será, evidentemente, a culturalização. Vale dizer, enquanto tivermos cerca de 17 a 20% de ágrafos naturais e 70% de analfabetos funcionais, é muito provável que essa dialetação no Brasil perdure por um tempo muito maior. Evidentemente, se houver uma contrapartida de culturalização gráfica muito intensa, esse processo poderá permitir uma unificação lingüística mais intensa no Brasil.
Mas, quando se pega o quadro dos membros da Academia Brasileira, ver-se-á que tiveram a função de filólogos, ainda que não se tenham chamado filólogos, um número não pequeno de grandes usuários da língua. Por exemplo, é incontestável que a influência de Rui Barbosa, a partir de 1902, com os estudos que fez em defesa do Código Civil, revisto por Clóvis Beviláqua, dinamizou o interesse pelo estudo da língua no Brasil.
Em lugar de ser meramente um estudo da gramática, eivado do preconceito do purismo – estou empregando a palavra “preconceito” num sentido deliberado, porque, na verdade, tenho que saltar os momentos –, realmente um dos traços velhos que a literatura tem revelado é que, a partir do momento em que a palavra passa a ser escrita, mesmo com o fato de que até o início do século XIX não houve coletividade que tivesse mais de 2 por cento de letrados, é impressionante, entretanto, como culturas escritas como foi o grego, como foi o latim, como foi, mais tarde, o árabe, como foi o chinês - mesmo com o sistema ideográfico -, conforme foram, provavelmente, as línguas escritas de um modo geral, a partir do século XVI elas, sem terem um grande intercâmbio entre os letrados, exerceram uma influência sobre a cultura coletiva tão poderosa, que a gente tem que reconhecer que havia um sistema de interesse pelo qual um letrado se comunicava com outro letrado, uma forma de ultrapassar todos os impedimentos.
Atualmente sabemos que os grandes escritores romanos conheciam a produção de outros escritores por meio de intermediação de pessoas que iam buscar os seus códices, às vezes a quilômetros de distância, ou às vezes em outros países da România. Isso explica, em parte, que a influência da língua escrita se tenha feito sentir sobre a língua falada, a partir dessa época, de uma forma tão poderosa que o fenômeno de massificação das línguas foi devido a essa literatação da língua. A língua escrita pôde, independentemente dessa divulgação de indivíduo para indivíduo, estabilizar o intercâmbio entre as pessoas.
O ensino da língua é um fenômeno muito moderno. Os gregos tinham, para ensinar, ea palavra “didática”, do radical didaktikós, que significa, essencialmente, “ensino”, como em latim a palavra “ensino”, de insignare, que foi a vigente. Mas temos que partir do pressuposto de que as escolas de então eram preceptorados, vale dizer, eram locais em que alguém, especialmente apto, lecionava para um, dois ou três alunos, no máximo. Era um ensino quase que interpessoal, não havia escolas, não havia professores.
O fenômeno da rede escolar, da rede de magistério, é um fato essencialmente pregado nos limites do século XVIII e revisado no curso do século XIX, assim mesmo para uma fração da humanidade, porque ainda havia uma enorme fração que continuava na fase anterior, ágrafa.
Estou querendo dar alguns dados para que tenhamos consciência de que a situação do homem no mundo contemporâneo é cada vez mais dependente da sua formação mental. Essa formação está propondo ao homem cada vez maiores dificuldades, a ponto de numa língua, como o português, podermos saber que, no período dos cancioneiros, vale dizer, no período arcaico, não chegamos a acumular mais de 5 mil palavras. E era um trabalho do coletivo, dos escritores daquele tempo. Chegamos a 5 mil palavras, se tanto. Já no início do século XVI, na época de Camões, podemos chegar a 8 ou 10 mil palavras. No início do século XIX, chegamos, facilmente, a 50 mil palavras que, algumas décadas mais tarde, atingiram 90 mil.
Hoje, é perfeitamente lícito supor que a língua portuguesa, para cobrir as diversas áreas profissionais que ela encerra, pode ter um vocabulário de 400 mil a 500 mil palavras. Essa acumulação é exclusivamente produto da literatura, no sentido amplo da palavra. É produto da força de escrever – aí não estou descriminando as especializações existentes; existe um mundo de profissões que não é propriamente o da ficção, não são da imaginação, e um mundo que é o da ficção, da imaginação.
Esse mundo é extremamente conservador. É preciso ver que ninguém aproveita a palavra escrita com o intuito de inovação. A preocupação da originalidade é um fato moderno, um fato extremamente atual. A originalidade havia, mas era em função dos interesses pessoais existentes na mensagem que o indivíduo mandava. Quando era uma mensagem de caráter científico, objetivo, evidentemente, a mensagem tinha de ser repetitiva; não há saber científico que se erga sem o conhecimento do anterior, e nesse conhecimento anterior a estabilização da língua é uma das condições para que a transmissão possa ser inteligível.
A tendência à repetição é um traço fundamental de todas as línguas, por essa circunstância prática de impedir que a originalidade seja uma obsessão. A originalidade se refere mais ao achamento de algo novo, que pode permitir a linguagem também algo nova para isto. Mas, na criação poética e na criação de ficção, a incidência do novo foi sempre uma característica. Os epígonos sempre houve, mas não é por essa razão que a literatura falava em progonia, no inovador, o que inicia todo um ciclo de subseqüentes.
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Quando eu estava citando os filólogos portugueses, citei Francisco Adolfo Coelho, citei José Leite de Vasconcellos, porém um grande camonista, enorme filólogo, foi Augusto Epiphanio da Silva Dias (1841-1916). Houve também um grande lexicógrafo, funcionário da Alfândega do Porto, chamado Aniceto dos Reis Gonçalves Viana. Vejam bem, ele era apenas um adorador da língua, sobretudo no seu aspecto lexicográfico, e se transformou num dos maiores lingüistas portugueses, com o nome de filólogo.
Podem ainda ser citados: Júlio Moreira, José Joaquim Nunes, José Maria Rodrigues, Vasconcellos de Abreu, e sobretudo uma sanscritóloga, que foi Carolina Michaëlis de Vasconcelos, além de Teófilo Braga, presidente de Portugal, e entretanto notável filólogo, e Cândido de Figueiredo.
Por incrível que pareça, o último foi o que maior repercussão teve no Brasil, mas todos os outros anteriores foram muito estudados. Na formação filológica brasileira (eu sou da segunda leva), na primeira leva, esses todos que citei foram altamente conhecidos, e no Brasil houve uma divulgação relativamente grande da bibliografia deles.
Nós nos inspiramos nos portugueses e sofremos, então, no Brasil, a influência de um puritanismo, de um purismo que era de cepa portuguesa. É nessa instância que se ensinava a pronunciar “senhôra”. Um colega meu continua a dizer “senhôra”, ainda nesta altura, e eu quero tanto bem a ele que poderia até dizer: ele, por imposição do purismo, fala “senhôra”.
Tivemos, por exemplo, alguns verbos: “quere”, que é seguido, hoje em dia, em Portugal, e “preguntar”. Em Portugal, na realidade, era um fato ortográfico, porque escrevendo-se “perguntar” ou “preguntar” a pronúncia portuguesa é a mesma: “preguntar”. É um e mudo tal, que você não sabe se ele está antes do r ou depois do r. De maneira que a grafia podia ser qualquer uma das duas. Por causa do precontare étnico suposto é que acharam que deviam escrever “preguntar”. Hoje em dia não se escreve mais “preguntar”; a forma documentada anteriormente, já no século XIV, mostrava que a grafia era “perguntar”.
Voltando, o fenômeno do purismo invadiu a língua portuguesa e teve alguns defensores que, de certo modo, tinham essa razão de ser, mas, na obsessão contra o eventual galicismo, o purismo era sobretudo uma luta contra a influência do francês.
Não se cogitava do inglês, naquele tempo, porque a influência inglesa é um fato muito recente na cultura brasileira e mesmo, eu diria, na cultura portuguesa. Tanto no Brasil como em Portugal sofremos uma influência muito forte no plano cultural da língua e da cultura francesa. De maneira que, contra o galicismo, se levantaram, com armas e bagagens, alguns dos maiores filólogos, entre os quais o nosso Cândido de Figueiredo que, no seu dicionário - um dicionário que teve uma influência tremenda no Brasil, uma divulgação enorme nas suas várias edições -, preconizava formas de rejeição contra o galicismo, pois elas eram freqüentíssimas.
Essa luta contra o galicismo, e em favor do purismo, criou alguns preconceitos e alguns atamentos para a língua. Há um dado momento em que podemos reconhecer que o gerúndio foi objeto de muitas restrições, por causa de certo galicismo que se apontava com o gerúndio: “uma casa tendo dois quartos, isso, aquilo...” era um galicismo, porque dever-se-ia dizer “casa com dois quartos” e não “tendo dois quartos”. Havia provável influência da sintaxe francesa, mas a punição dessas formas era uma punição altamente retroativa, porque era uma obsessão contra a presença do francês. A realidade é que a Academia foi, nesse ponto, uma Casa de grande defesa conservadora do nosso sistema escrito, no bom sentido da palavra, porque a língua escrita é intrinsecamente conservadora. Pelo seu método de transmissão, pode-se obter um conhecimento das formas escritas anteriores, e as formas escritas anteriores são, obviamente, formas escritas anteriores.
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O prestígio do grande inovador é um prestígio que, episodicamente, se manifesta nas línguas escritas. Camões foi incontestavelmente um grande inovador, mas, a reboque dele, poucos foram que apareceram. O nosso Gregório de Matos teve influência muito grande no Brasil; desde cedo, o número de apógrafos que há dele revela que foi muito lido em nosso país, pois, em termos relativos para uma população ágrafa, foi ele entretanto muito lido. O número de códices que há dele mostra que foi não só de muito interesse cultural, como, sobretudo, de repercussão no Brasil. E ele é um escritor de alto conservantismo; embora tenha feito pilhéria, o lado pilhérico dele é, nesse caso, muito inçado de tupinismo e já com um pouco de africanismo.
Mas, entre esses diversos escritores - notem bem - um escritor, necessariamente tem que ser citado: Guimarães Rosa, que foi extremamente revolucionário, do ponto de vista da morfologia, do ponto de vista da sintaxe. Entretanto, não abriu horizontes, a não ser para a literatura de ficção. Não é possível tomá-lo como esquema, como base de uma língua culta; ele não serve para este padrão. E, ao contrário, para o padrão de ficção, a repetição dele torna-se epigônica. É o epígono que escreve como Guimarães Rosa.
Então, esses grandes escritores ficam numa situação singular, porque eles são inovadores, pela beleza artística com que inovam, mas não são exemplos de uso para a subseqüência. Eles atam, fecham a possibilidade da repetição que a língua supõe.
No Brasil, voltando num exame rápido, outros escritores tiveram influência na língua, como filólogos, embora não tivessem sido chamados filólogos, sobretudo o nosso João Ribeiro. Foi essencialmente um polígrafo, porque foi capaz de divulgar, em nível alto, muita matéria, inclusive e sobretudo da língua portuguesa. Os seus estudos de língua portuguesa são exemplares; embora do início do século, eles são praticamente perdurantes, são válidos até hoje. Eu poderia falar o mesmo do próprio Júlio Ribeiro, que tem momentos muito bons de estudos lingüísticos.
Na Academia, tivemos o nosso Ramiz Galvão, com o seu dicionário grego de alta qualidade, de grande sabedoria; o nosso excelente Rodolfo Garcia que, como filólogo, tem uma obra digna de admiração; o nosso Heráclito Graça que, durante muito tempo, foi o equilibrador da influência de Cândido de Figueiredo na literatura do Brasil, com o seu purismo, que era um pouco o lusismo, era o purismo do lusitanismo no Brasil. Heráclito Graça defendeu muito bem o brasileiro, desse ponto de vista.
O nosso Aurélio Buarque de Holanda Ferreira foi um grande lexicógrafo, é preciso que se reconheça. Se houver quem queira superá-lo, tem a obrigação de fazê-lo, porque a língua está pedindo, mas não quero com isso fazer restrição ao mérito que ele teve, que não foi pequeno. Carlos de Laet tem uma importância tremenda, num dado momento, no estudo da língua e nas polêmicas que sustentou em favor da língua.
Barbosa Lima Sobrinho, nos seus dois estudos de língua portuguesa, tem sido de importância enorme. A questão ortográfica foi por ele com muita proficiência enfrentada no seu livro A questão ortográfica e os compromissos do Brasil, assim como os estudos sobre A língua portuguesa e a unidade do Brasil. Xavier Marques, no passado, foi um grande baiano, um grande propugnador da língua. Afonso Pena Júnior, no seu estudo sobre A arte de furtar, tem um saber incomparável, como tem o nosso Abgar Renault, que foi membro da Academia de Filologia, um fino conhecedor da língua e paladino da língua.
Com isso, entretanto, deveria dizer eu que, realmente, a nossa Academia teve quatro filólogos, incontestavelmente, querendo incluir o nosso Amadeu Amaral, o nosso João Ribeiro e o nosso Celso Cunha. Agora, muito recentemente, perdêmo-lo. Tratava-se de um dos grandes conhecedores que houve em língua portuguesa no Brasil. Realmente incomparável, ele deixou uma obra muito séria e foi um filólogo de mão-cheia, mas esse já entrou com o nome de filólogo; ele havia assumido, perfeitamente, a sua qualidade de filólogo.
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Omiti os grandes filólogos brasileiros, desde Frei Caneca, que deixou uma gramática, até Antônio de Moraes Silva, que foi um lexicógrafo notável, com a sua edição de 1812 do Dicionário da Língua Portuguesa, baseado no dicionário de Bluteau. Este mostra o estado de língua a que desejo me referir. Em 1600 e pouco, Bluteau cria um Vocabulário Latino-Português, em oito volumes, um dicionário que era um monumento de Filologia em qualquer língua do mundo. É, até hoje, uma fonte de saber enorme, e foi sobre ele que Moraes Silva montou o seu trabalho. Esse Moraes teve uma edição fac-similar do nosso Laudelino Freire - outro que se chamava lingüista na Academia. Ele fez a benemerência de provocar uma edição fac-similar da segunda edição do Moraes Silva, edição essa que, ainda hoje, se pode encontrar em sebos. É uma belíssima prova do saber de Antônio de Moraes Silva, que foi um homem de alta importância, sob vários aspectos, inclusive no lado político, porque teve uma atuação política muito relevante em Pernambuco.
Mas omiti alguns filólogos brasileiros que têm que ser lembrados. Pacheco Júnior e Lameira de Andrade foram colaboradores, e Lameira de Andrade publicou, antes da Semântica de Brial, uma obra com o título de Semântica. Por aí, vejam a coincidência do título e a inovação, porque era um estudo da significação das palavras, até hoje muito válido. Houve ainda Manuel de Said Ali, que é uma figura monumental da Filologia brasileira; Antenor Nascentes, de quem tenho a grande ventura de ter sido aluno, diretamente, durante um largo período, e colega do filho dele, Olavo Nascentes.
Antenor Nascentes era um homem altamente aparelhado, filologicamente, e um autodidata. Estudou no Colégio Pedro II, e este era o grande centro de estudos da língua portuguesa. Lá quase que todos os professores da língua portuguesa se esmeravam, porque era o grande colégio do Brasil, estabelecimento criado por Pedro II. Foi um centro de estudos muito importante e que gerou alguns dos nossos grandes professores, como Sousa da Silveira, também outro grande filólogo; como Ernesto de Faria Júnior, um latinista e também filólogo. E, mais tarde, alguns da geração mais jovem, como Leodegário Amarante de Azevedo Filho, Evanildo Bechara, o excelente Edilberto Coutinho e alguns outros, que poderia citar, mas confesso que a minha letra foi tão confusa, que não estou podendo ler.
Mas creio que fundamental é dizer que, hoje, no Brasil, há um divórcio oral cada vez maior em relação a Portugal, o que é lamentável, porque não há meios de reversão. Não é possível pedir aos brasileiros que se aproximem da pronúncia portuguesa, nem é possível pedir aos portugueses que se aproximem da pronúncia brasileira, embora em Portugal o obscurecimento das vogais antetônicas e postônicas e, i, o, sobretudo o e, tenha sido tão grande, que eles são os primeiros a se autocriticarem, reconhecendo que está havendo uma comilança desvairada no vocalismo português.
A língua portuguesa no Brasil tendeu sempre a uma estabilização do vocalismo, de tal modo que existe o fenômeno, no Nordeste, do abrimento de vogais que se pode explicar apenas historicamente, mas não representa uma evolução unificadora: ela é uma divergência. Todavia, é extremamente audível, de maneira que uma forma de criticar, que seria a obscuridade, não existe para com os falares nordestinos. Eles são extremamente claros, por causa dessa estabilidade das pretônicas e postônicas.
Acredito que, com isso, posso dizer que cumpri o meu projeto, embora não tenha escrito o texto, pois iria demandar, no momento em que estou, um esforço que eu não poderia dar.
Peço à minha Presidente que me perdoe pela improvisação relativa, que não foi improvisação, vejam bem, eu tenho aqui toda a biografia, tal como aparece no Anuário, dos nossos grandes acadêmicos, mas creio que seria desnecessário voltar a eles. Com isso, peço desculpas e agradeço muito a atenção que me deram.