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Os Cientistas sociais

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Um genuíno acadêmico, Afrânio Peixoto, costumava dizer: “Há palavras que são condecorações.” Minha exímia Presidente e líder acaba de condecorar-me no grau mais alto – regiamente. Gratíssimo.

Minha presença aqui é fruto de duas imprudências afetuosas. Quem deveria falar hoje seria Evaristo de Moraes Filho; mas circunstâncias que ele não pôde remover o impediram. Creio que partiu dele próprio a lembrança de propor meu nome à nossa brilhante Presidente. E esta foi a segunda imprudência: ela aquiesceu. Agora, não há mais remédio, minhas senhoras, meus senhores: já estou na tribuna.

Meu tema, como sabem, é a presença de cientistas sociais, entre mortos e vivos, na Academia Brasileira. Não vou fazer um inventário, propriamente, dessa presença, e até lhes sugiro, já que estamos num seminário: quanto à biografia e bibliografia completa dos autores aqui arrolados, poderão todos dirigir-se à Biblioteca da Academia, onde um excelente funcionário, Luiz Antônio, fornecerá cópia dos currículos. Não poderia eu trazê-los para aqui; transformaria minha pobre fala numa espécie de verbete ou de relatório. O que interessa, antes de mais, é o conteúdo das obras. Preferiria que esta conferência se denominasse “Ciências sociais na Academia” em lugar de “Os cientistas na Academia”. O motivo é simples: propriamente considerados, ou tomados como oficiais do ofício, eles foram e ainda são bem poucos na Casa. Valha a ressalva.

Realmente, aqui tem marcado sua presença, em linha exponencial, sociólogos, antropólogos, etnólogos, pensadores sociais, pensadores políticos, juristas, médicos, diplomatas, prelados, militares, além dos que não lhes fazem mal: poetas e prosadores... Isto não faz senão confirmar que somos em verdade uma academia; não apenas – e já seria muito – uma congregação de escritores militantes na poesia e na prosa, mas uma corporação aberta, como no modelo francês., a todas as manifestações da inteligência nacional, trabalhada e polida pela cultura ou por um sentido superior da cultura.

Na idéia de academia está historicamente inserida a idéia de mestria, de ensinança (o ensino dos antigos), de magistério, da multissecular pedagogia de Platão, quando deixava cair suas luzes sobre a mente ansiosa dos discípulos, entre as aléias dos jardins de Academus, origem de tudo que somos como instituição. E foi ainda na veneranda Grécia, num dos frisos Partenon, que se lavrou a advertência: “Aqui não entre quem não for geômetra”.

Aloísio de Castro, um dos mais perfeitos acadêmicos deste país, ao receber Laudelino Freire nesta Casa, lembrou, dentre outras coisas, a advertência embutida no Partenon. E sublinhou: “Ora, Senhor Laudelino Freire, lecionastes geometria no Rio de Janeiro, e, segundo ouvi na alta sociedade do Rio, amais a dança.” E ainda Aloísio, muito finamente: “O próprio Sócrates alguma vez bailou”.

Eis, ainda que de forma irônica, a abrangência, a amplitude e latitude do conceito de academia. Mas eu lhes prometo que não farei nem geometria e muito menos bailado. Devo dar-lhes garantia: serei fiel ao tema – Cientistas sociais na Academia – muito apesar de haver preferido que se tivesse escolhido a denominação de “Ciências sociais na Academia”, uma vez que cientistas sociais, propriamente considerados, já disse, rareiam em nosso quadro. Creio que seria de bom aviso pesquisar, em cada autor, a essência da produção e sua continuidade. São nelas dominantes o exercício e as técnicas da Ciência Social? Serão uma constante? Terão os sinais do peculiar ou do típico? Estes parecem-me ser os pontos cardeais da pesquisa que nos reúne neste auditório.

Mas há outro, de igual nível de relevância. Teremos de considerar a importância, senão mesmo o brilho dos que, não sendo cientistas sociais, digamos de carreira, e freqüentado-a sem o grau de assiduidade de outros, souberam muito embora servi-la, com intervenções em que a condição de laterais, ou episódicas, não lhes sacrificou a qualidade nem o êxito. Aponto dois tipos de valor: o da abordagem direta e o da especulação que, de algum modo, sirvam ou interessam à Ciência Social. Não estou, com isso, admitindo a hipótese de um tratadista ou pesquisador de ação indireta, mas simplesmente descontínua, episódica ou esparsa. E a bem pensar, esses dois tipos de trabalho afinal se completam.

Num livro que a crítica celebrou, Princípios de Sociologia, Fernando de Azevedo, acadêmico dos mais afeitos ao espírito da Instituição, opinou com a segurança que nele era provérbio. Cito: “É com Oliveira Vianna, em Populações meridionais no Brasil e Evolução do povo brasileiro, e mais tarde, com Gilberto Freyre, em Casa-grande e senzala e em Sobrados e mocambos, que tiveram início, realmente, os estudos de sociologia.”

Eleito acadêmico em 1938, Oliveira Vianna apareceu em livro em 1920, editado por Monteiro Lobato. Fernando de Azevedo, aludindo a ensaios anteriores, inclusive do acadêmico Sílvio Romero, averbou-os de “difusos”. É compreensível a observação do emérito educador, autor de estudos sociais de alto interesse, sobretudo no plano de uma forte pedagogia, o que não impediu sua convergência, algumas vezes, para uma sociologia não mais de tese, mas de pesquisa propriamente. Fazem disso provas robustas seus dois livros do gênero: Canaviais e engenhos na vida política do Brasil e Um trem corre para o oeste.

Contudo, na obra de Fernando, a prevalência foi a do pensador pedagógico-social, solidamente empenhado numa nova filosofia para uma nova política de educação no Brasil. De toda maneira, ninguém negará a expressão histórica e sociológica do seu vigoroso tratado sobre A cultura brasileira. O mestre serviu à Sociologia Educacional, como hermeneuta das duas escolas: a que era a que deveria ser. Este, a meu ver, é o centro nervoso da sua reflexão crítica, a contribuir, sem dúvida, para conclusões de inegável serventia filosófica e sociológica.

Mas eu falava de Oliveira Vianna, de quem tão bem se ocupou o próprio Fernando de Azevedo, dizendo muito em tão pouco. Quando usou do qualificativo “difusos” para caracterizar certos estudos anteriores aos de Vianna, o egrégio educador redigiu uma verdade. Já me ocorreu escrever que, antes de Populações meridionais os estudos brasileiros oscilavam entre a doutrinação austera e o denso realismo de Alberto Torres; o polemismo, a acidez verbal, a literatura litigiosa, as propostas mal-humoradas de Sílvio Romero e a antropologia dramática na prosa florestal do acadêmico Euclides da Cunha, este mais realista e mais preciso nas suas duas engenharias: a do militar e a do escritor, ao denunciar, por entre vibrações wagnerianas do estilo ciclópico, a abominável injustiça social no sertão, a desgraça em carne viva.

A esses estados de espírito belos e graves seguramente deveram desde logo nossas elites políticas um incitamento à meditação reparadora ou corretiva. De algum modo, já era aquilo uma escola da realidade brasileira na planta. Mas quem de fato a construiu e afinal a abriu com chave de Ciência Social, foi Francisco José de Oliveira Vianna, em meio à faiscação mental de Sílvio Romero, com a sua crítica eriçada de espinhos e por entre os libelos e apelos gerados pela sensibilidade humana de Euclides.

Em meio a tudo isso, senhoras e senhores, surgiu, para o estudo da realidade endógena, a serena disciplina de um método. Já não eram estudos em mar picado, mas numa quase mansidão de lagoa. Que método orientou a nova escola? O de Frédéric Le Play, pai da pesquisa social no Ocidente? O de Émile Durkheim, fundador do objetivismo sociológico? Não importa; seja como seja, o que avulta é que brotou, em 1920, na província fluminense, uma ciência diferente, não plasmada na teoria de certas teses ou pressupostos, mas embebida no óleo dos fatos.

Se me pedissem um voto de preferência em relação à obra de Oliveira Vianna, votaria nos dois volumes de Instituições políticas brasileiras. Ainda do ponto de vista da crítica científica, principalmente no tocante ao pan-culturalismo, penso que é o seu livro mais completo. Pela mesma razão votaria também em outros dois volumes: os de História social da economia capitalista no Brasil. No caso de Sílvio Romero daria meu voto a Etnografia brasileira. Setenta por cento da sua obra de erudito fogoso são de natureza literária, sobretudo de crítica literária de história da literatura; no restante, encontramos estudos de filosofia. Quando põe o seu largo saber a serviço da sociologia, não resiste e dá-nos um livro conjugado, com o título expressivo de Ensaios de sociologia e literatura. Mesmo ao versar os temas do positivismo, para afinal abandonar as idéias de Comte e fixar-se no evolucionismo de Spencer, sua visão é predominantemente filosófica. O argumento sociológico vinha lateral ou transversal; não era o nervo do pensamento. Mas como negar-lhe, além do saber, a fertilidade da palavra quente, a cintilação, a chama?

Contra Oliveira Vianna duas setas foram disparadas. Criticam-no de ser adepto das terias da superioridade de raça e simpatizante do nazismo. Quanto à sociologia da raça, é exato que Vianna sofreu as influências de seu tempo. Tempo áureo de Gobineau e outros, que chegaram a admitir a legitimidade da tese excomungada. Nina Rodrigues , antropólogo de fama, foi pelo mesmo caminho. O francês Gobineau estava no auge do prestígio intelectual entre nós. Ele e outro como, para exemplo, Lapouge. O próprio Sílvio Romero, o próprio Euclides da Cunha, em certos lances de sua reflexão teórica, não foram imunes ao contágio da moda e das teorias que vinham de Paris. Por que só contra o fluminense saquarema aqueles narizes torcidos e aquelas testas franzidas?

Parece-me que tinha aquilo um revestimento político; tanto assim que não se registrou, ou bem pouco se mencionou, o gesto de alta dignidade e puro espírito científico do pioneiro, quando, na terceira edição do seu Evolução do povo brasileiro, escreveu no prefácio, com todas as letras: “Devo confessar que renovei profundamente minhas idéias sobre os problemas da raça. A questão do dólico louro e sua superioridade acabou saindo do horizonte das minhas preocupações.” Assim, nossas elites ouviram-no evoluir do conceito de raça zoológica para o de raça histórica. Confirmava-se a sentença irônica de Maeterlinck; “ A Ciência é um conjunto de verdades provisórias”.

Vejam o outro lado da crítica em que mais rugiram os adversários: a inclinação nazista do mestre, como vociferavam eles. Ora, senhoras e senhores, em 1943, num artigo de 19 de março, no jornal A Manhã, sob a direção de Cassiano Ricardo e Múcio Leão, alertava o velho Vianna em plena guerra, quando as vitórias militares de Hitler estavam no auge. O nacional socialismo alemão – dizia Oliveira Vianna – “não reconhece outro interesse, senão o da sua comunidade racial. Estas aberrações do senso moral estão enchendo de espanto a consciência da humanidade”.

Ainda em plena guerra, quando a sorte das armas estava longe de decidir-se e a vitória das democracias era apenas uma hipótese, ei-lo a advertir, ainda em 43, também no jornal A Manhã: “Os raciocínios dos simpatizantes da Alemanha decorrem da ignorância da psicologia dos líderes do III Reich e dos princípios amorais a que obedecem.”

Esse empenho sadio e sábio em convocar nossas elites à realidade, longe de exprimir um comportamento de adesão de última hora, foi o toque de reunir, no momento mais difícil. O próprio Governo da República parecia dividir-se ou vacilar, protelando a revogação da naturalidade, na qual o articulista de A Manhã apontou, textualmente, “ilusões e perigos para o país”.

Ocorre-me outra ponderação: os sociólogos, antropólogos e cientistas políticos a serviço do nazismo, nas suas manipulações doutrinárias ou no seu cientificismo genialmente perverso, urdiram a transmudação da teoria da cultura numa espécie de ente de razão, e acabaram por transformá-la num expediente do Partido.

Nessa operação da sua lógica maligna, a teoria da cultura, sustentando o condicionamento da conduta individual pelas pressões ou motivações da sociedade, sem dúvida convinha à filosofia dos dirigentes nazistas, já que, para eles, o indivíduo não contava, não era a força de motivação. Toda a realidade viva estava na teia dos agentes culturais. A cultura – a Kultur, como diziam eles – “atravessa” o indivíduo, era a expressão textual dos cientistas de partido. A cultura “atravessa” o indivíduo – vejam bem esse verbo; importava concluir que o dilacerava, anulava, em suma – e era este o primeiro item do nazismo: anular o indivíduo para apregoar o primado do Estado.

Sim, a sociedade, no esquema conceitual da doutrina era, enfim, o Estado como força condicionante da cultura. Era também, por isso mesmo, força modeladora do comportamento humano. Da teoria culturalista, normalmente válida, partia o nazismo, em sua perfídia ideológica, para aquilo que se denominou “fisiologia da cultura”, sofisticando-se o próprio dolo. Em conclusão: no auge do delírio totalitário, o ponto era ignorar o indivíduo, elidi-lo, “atravessá-lo”. Ardia o pan-culturalismo germânico, a organização metódica do exagero; metódica na própria brutalidade.

Pois bem, cientistas sociais norte-americanos, à frente Franz Boas, mestre de Gilberto Freyre em Colúmbia, conduzidos por um entusiasmo – que seria juvenil, se não fossem eles sociólogos –, endossaram o arranjo ladino dos mestres alemães, com sacrifício paradoxal do que mais prezavam na “super-democracia”: o indivíduo, o homem, a pessoa.

E já é hora de assinalar que Oliveira Vianna, precisamente em Instituições Políticas, refugou a conceituação totalitária da cultura, que, pelo exclusivismo das suas premissas, corresponderia, em domínio bem outro, ao pan-sexualismo de Freud.

Vale este raciocínio para avivar a convicção de que a explicação do comportamento humano não se pode confinar em critério monocausal, mas policausal. Os indivíduos são modelados pela ingerência de fatores sociais ou ambientais, porém muitas vezes serão agentes modificadores, renovadores da própria cultura, ou, se preferirem, dos padrões mesológicos. O poder da personalidade humana não é um arbítrio da imaginação romântica. Existe, é um dado da Ciência Social.

Perdoe-me, Presidente Nélida Piñon, perdoem-me, colegas e cursistas, que me tenha demorado na tentativa de perfil do sempre atilado saquarema, Oliveira Vianna. A bela culpa está nele mesmo: foi um paladino, um pioneiro. Só me resta agora resumir uma constetação aos que o pintaram como reacionário, e isso, como as outras contestações que aqui deixei, parece-me útil num ciclo como este nosso.

Limito-me a indagar: onde o reacionário? No advogado da causa do trabalhismo brasileiro, abrindo para o operário as portas de um direito realmente social? Agindo na qualidade de consultor do ministério nevrálgico? No propugnador e radator do Projeto de Justiça do Trabalho, que pôs abaixo tantas formas de injustiça e opressão legisladas? Sim, onde o reacionário? Naquele que enfrentou as armas de patrões assinalados, com as suas propostas e seus projetos social e politicamente retificadores?

Seguramente, não estava também o reacionário no sociólogo que replicou o ilustre comercialista Waldemar Ferreira , para adverti-lo de que o Projeto de Justiça do Trabalho não poderia ser visto com lentes de direito romano, já que era, em verdade, um projeto tendente a demolir o individualismo das velhas codificações. Um projeto “revolucionário” , disse ele próprio.

Outro grande assunto: Edgard Roquette-Pinto. Da sua dignidade, intelectual como pessoal, deixou provas nítidas. Cientista social de carreira, foi digníssimo como pesquisador, incapaz de apressar-se, e como homem de pensamento científico, avesso a generalizações. Bem ao contrário do que freqüentemente se pensa, há antropólogos afoitos no seu processo conclusivo, ainda mesmo os que trabalham na Antropologia Física , ou porque se perdem na complexidade de certas pesquisas ou porque praticam o auto-desafio de achar a realidade ou aquilo que supõem seja ela.

Roquette-Pinto foi um pragmático no estudo do homem-constiuição física, do homem-etnia, do homem-clima, do homem-habitat, do homem-nutrição, do homem-recreação, do homem-arte, mas, várias vezes, do homem-alma, do homem-amor. De posse deste dado, poderemos concluir que ele conjugou, não raro, Antropologia Física e Antropologia Social ou Cultural. Foi este um dos seus melhores amálgamas; talvez também por isso não guardou ciúme da Sociologia, de que é vizinha mais próxima a Antropologia Cultural precisamente.

Uma outra explicação por igual se impõe: o pragmatismo de Roquette, abrangente e não restringente, completou-se ou consolidou-se no cientista social, no administrador, no servidor público de altos serviços à comunidade letrada e iletrada. Pois não haverá, no rádio e no cinema educativos que fundou, um bem-vindo desdobramento da sua ciência de pesquisador de grupos carentes, intelectualmente marginais?

Desde o seu primeiro livro, O exercício da Medicina entre os indígenas da América, até o último, Ensaios brasilianos, a sua ciência é feita sob a preocupação de construir, ensinando. Mas o seu ensino não é repetitivo; é renovador e revelador, é a pedagogia do real, do vivo e do vivido. Basta lembrar que trabalhou em conexão com a Comissão Rondon. Internou-se na realidade múltipla, conheceu o Brasil desconhecido e da sua objetividade de servidor da educação a amplo senso, ficou, dentre muitas, uma prova transparente, naquele seu recado às gerações: um largo espírito científico, um alto espírito público, um brasiliano necessário.

De outro corte são os serviços de Alceu Amoroso Lima. Doutrinador por excelência e formação, até mesmo pela sua condição de líder católico, pesquisou e interpretou princípios, diretrizes, idéias sociais, morais, religiosas. O longo e louvado trabalho na cátedra universitária abriu-lhe o bom ensejo de organizar, na sua didática personalíssima e rica, uma espécie de laboratório do pensamento sociológico.

Seu livro, de fato sólido e leve, Preparação à Sociologia, indica no próprio título o gosto de treinar e motivar inteligências. Introdução à Economia moderna, Política e mitos do nosso tempo são outros dos seus livros de alta categoria, obras que, no sentido de mensagem, de retidão intelectual e cívica, bafejam, sem dúvida, as Ciências Sociais. Há em toda a sua obra uma ética de ser e de fazer, à medida que o pensador social favorece ou municia o cientista da mesma natureza.

Alceu Amoroso Lima fica entre os nosso heróis carlyleanos, no arrolamento que lhes estou oferecendo. Lembro-me do recado metodológico do sociólogo e também didata insuspeito, o norte-americano Donald Pierson, amigo sincero do Brasil, quando acentuava que “idéias sem fatos não bastam, mas fatos sem idéias são o pior”. Alceu foi a sabedoria do equilíbrio. Fui seu companheiro no quadro docente da PUC e pude avaliar de quanto o pensador, o estruturador, o clarificador e o difusor de idéias serviam às tarefas da ciência social. O professor confirmava, na cátedra, as virtudes que sempre nos conquistaram em livros capitais.

Clodomir Vianna Moog: a maioria pronuncia “Mugui”. Eu também, mas o certo é “Mog”, porque de origem holandesa. Por influência inglesa, e agora americana ou inglesa pelo inglês falado nos Estados unidos, vamos dizendo “Mugui”. Mas é “Mog”. Holanda pura.

Clodomir Vianna Moog, por boa coincidência recebido nesta Casa pelo mestre Alceu, foi outra vocação de sociólogo. O ciclo do ouro, Heróis da decadência, Mensagens de uma geração, A ONU e os grandes problemas políticos e muito principalmente, Bandeirantes e pioneiros – obra mater – compõem o elenco das suas canseiras.

Realmente, é em Bandeirantes que o seu tino sociológico se cristaliza e expande. Estou inclinando a sugerir que, também na Biografia de Lincoln, esse mérito transparece de vez em vez. Disse-lhe, numa conversa de telefone, que se nada mais ele nos houvesse dado em livros, publicando apenas Bandeirantes teria a companhia excelsa de Coelho Neto, a quem, como poeta, bastaria ter feito aquele soneto clássico: Ser mãe. E o nosso Moog respondeu, numa das suas: “Almir, agradeço essa tua bondade maternal”, e lançou uma gargalhada que tinha aquela sua cadência – gargalhada pampeira, gaúcha. O chistoso e o boêmio da palestra coloquial transformavam-se por inteiro, quando trabalhava para a Sociologia ou a História Social.

Não pôde realizar, colhido pela morte, o seu antigo projeto de uma Sociologia da vida rural – seria o seu livro mais telúrico.

Evaristo de Moraes Filho é sociólogo de curso e carreira, de cátedra e de livro. Também um sociológo de experiências feito. Conheci-o no vigor da mocidade, ainda estudante, funcionário, como eu, do Ministério do Trabalho, onde vimos nascer um certo Direito Social, um certo Sindicalismo e uma certa Justiça, tentativas de uma mudança que vinha na lógica do tempo e dos acontecimentos.

Evaristo honrou, na idade madura, as aspirações que lhe nasceram na mocidade – une pensé de la jeunesse réalisée à l’âge mûr. Alfred de Vigny está presente. Meu hoje ilustre colega é autor de obra farta e forte, entre cujos valores, logo vemos um alto teor de especialização. Não se dispersou como cientista social, que se revela mesmo quando ingressa na crítica das idéias ou nos estudos filosóficos. Um exemplo típico vem a ser aquele volume sobre a Filosofia social de Augusto Comte. No mais, é a Sociologia, positiva ou objetiva, que nos seduz a todos.

Observem-se alguns títulos: Direito do Trabalho e mudança social, Criminalidade violenta – aspectos sócio-econômicos, As relações humanas na indústria, Seguridade Social e sociologia, O valor da teoria social, O problema de uma sociologia do Direito e muitas outras obras da mesma atualidade.

O Direito do Trabalho, porque eminentemente social, é o mais público dos direitos, e a própria especialização do digníssimo colega explica que nunca o tenham comprometido os cacoetes do juridicismo clássico e ortodoxo. Por isso mesmo, avulta sempre o sociólogo de formação científica.

Outro perfeito exemplo dessa posição científica e desse contato com as melhores fontes está na produção de Cândido Mendes de Almeida. Na produção como na titulação pessoal, nacional e estrangeira, tanto quanto no desempenho de altas funções executivas, Cândido Mendes é um claro exemplo de mestria nas realizações do cientista social e político.

Fala-se da força do pensamento, mas, no ilustre e vibrante companheiro são o poder e o calor das idéias, conduzindos pela própria chama, os elementos de propulsão que lhe ardem na mente, para aquecerem afinal a conclusão necessária. Não deduz apenas; antes de tudo, induz, motiva, instiga, exatamente nos textos, como nos fatos que arrola.

À erudição, que é a posse das fontes ou da informação, alia a cultura, que não é tão só armazenamento intelectual, mas estado de opinião. Assim, vai ele perquirindo e concluindo nos cinco Continentes, sempre calorosamente. Aí o temos, douto e destro, abraçado aos assuntos do seu ofício de anatomista da realidade do mundo em que vivemos. Um anatomista diferente, que se espraia; não lhe faltam o sentido universalista da lida do sociólogo, a visão transatlântica dos comportamentos e técnicas de uma modernidade que tanto mais nos desafia, quanto mais se revela complexa nos seus paradoxos ou contradições Na compleição intelectual do pensador dinâmico, um dos traços de mais rápido poder de conquista nos aparece nítido na singularidade de conteúdo e de forma, no jogo temático, na exteriorização do pensamento central, na pessoalidade da reflexão crítica, assim na palavra escrita como na palavra oral.

Em livro, na tribuna dos doutos ou na imprensa especializada e ainda na do quotidiano, não há nunca o déjà dit, a monotonia do consabido. Em muitos anos de convivência intelectual, nunca o pilhei em truísmos, nunca o surpreendi envolvido em banalidades. Muito ao contrário: sempre vejo nele, como cientista social, como pensador político, como arquiteto pedagógico, como orador e escritor, um inimigo pessoal do lugar-comum, infenso a todas as formas de acacianismo. Mas nas armações de exegeta de realidades sociais e políticas, há um palpitante sentido de revisão, de reestruturação e de redescoberta. Tudo porque o palco em que se expande a sua inteligência ansiosa é móvel por excelência. Está aqui, no trópico, como poderá estar, a qualquer momento, em qualquer esquina, praça ou assembléia do planeta, na faina caprichosa de conferir princípios, conceitos, experiências, fatos.

Tentemos defini-lo: é uma clara expressão do sentido e sentimento do mundo. Servidor, por isso, da cultura brasileira, em profundidade. E creio que poderemos identificar nele um amálgama de pendores contrastantes, uma sadia ambivalência de atributos marcantes: crê na força das idéias, será um romântico ativo. Forceja por transformá-las em fatores de uma política; será um realista. Não é senão por isso que a ação do cientista social vem ganhado, de há muito, em altitude e latitude. As principais obras que produziu são expressivas, a partir dos títulos: Nacionalismo e desenvolvimento, Perspectiva atual da América Latina, Justice, faim de l’Eglise (Paris), Mudança do século, mudança da Igreja, Contestation et développement en Amérique Latine (Paris), A democracia desperdiçada, Poder do imaginário social, Crise e mudança social na América Latina.

Com Darcy Ribeiro perdeu a Academia um cientista social engenhoso. Como Cândido Mendes, engenhoso e singular – personalíssimo. Na sua faina de antropólogo e etnólogo, houve sempre uma trepidação mental, que não lhe comprometeu a produção científica, porque a verdade final é que nele o etnólogo e o antropólogo não se afastavam da linha de um planejamento básico. Mas uma outra verdade é que levava para as suas pesquisas, além da racionalidade de um plano, a espontaneidade de um estado de espírito. Quero dizer que era um pesquisador ao mesmo tempo rigoroso e encantado.

De Pasteur já se disse, por outras palavras, que pesquisava em estado de felicidade. Descontadas as diferenças de idade, experiência, época e meio, eu diria que o nosso Darcy, o mais tropical dos acadêmicos, como o mais imprevisto, pesquisava em estado de paixão. A ânsia de criar, a busca da originalidade fizeram dele, nos tempos derradeiros, um caricaturista irreverente consigo mesmo. A velhice cobra dos homens, às vezes, um retorno a fruição dos bens de outros tempos; e a irreverência costuma ser a forma de cobrança para a reintegração impossível. Disso padeceu o nosso animoso colega, desviado da vida científica por uma incursão na vida partidária e no parlamento, que não era, evidentemente, a sua tribo.

Os choques culturais, que ele estudara com afinco e deslumbramento, estava agora a vivê-los em muitíssimas outras circunstâncias. Impregnava as suas reações de descompassos que se refletiam na própria criação literária, marcada, freqüentemente, por um apelo ao grotesco. Era um ilusório mecanismo de compensação. Compreendamos, fraternalmente e respeitemos Darcy Ribeiro, que lutou para vingar-se da velhice e da doença, buscando replicá-las com uma nova tomada de posição dentro da vida, vida que se diluía, como se pudesse competir ou apostar com a fatalidade.

Quando, numa de nossas últimas conversas, lhe perguntei como estava passando, ganhei esta resposta de chumbo: “Estou ótimo; acho até que melhor do que você.” Compreendamo-lo, ele tinha a graça do improviso; era todo um improviso. Saudemos Darcy Ribeiro, que soube ser, além de muito mais, o administrador seguro das suas próprias audácias e descobertas científicas, fundando ali, pelas alturas do Maracanã, o Museu do Índio. Saudemos o Darcy da Universidade de Brasília, o da Universidade do Norte Fluminense e o batalhador pela da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. E louvemos, por igual, o cientista social em livros que ficaram, o autor de O povo brasileiro, Cultura e línguas indígenas do Brasil, Os índios e a civilização, Configurações histórico-culturais dos povos americanos, Arte plumária dos índios Kaapo e O processo civilizatório. Mesmo na obra do romancista, estão presentes o antropólogo e o etnólogo, como no caso da ficção que é Maíra, de uma estranha beleza e tão bem comentado por nosso emérito Celso Furtado.

Marcos Vinicios Rodrigues Vilaça freqüenta, desde 1958, o ensaio social. Ia dizer que também no ensaio histórico fez ponto, mas pensei melhor, e estou pronto a concluir que, na montagem metodológica do nosso ilustre colega, a análise do fato histórico é calcada em argumento sociológico. Explica-se: no seu íntimo, Vilaça identifica no cultivo da Sociologia uma forma pernambucana de ser coerente, uma espécie de compromisso, por dois motivos de raiz. A velha Escola do Recife, centro de admirável efervescência intelectual , foi um ponto de propulsão dos estudos sociais , como o foi, notadamente, dos debates filosóficos. Uma segunda razão: em Pernambuco, veio ao mundo Gilberto de Mello Freyre, uma das devoções do nosso caro confrade – nisso também nosso parceiro.

Mas o que essencialmente importa na sua obra não é a bonita fidelidade a compromissos históricos com a inteligência da província. Antes de mais, é a perícia com que serve, nos seus muitos ensaios, às Ciências Sociais. Serve com a lucidez dos analistas sociais e essa boa verdade nos vem clara em todos os seus livros.

O estudo sobre o coronelismo, por exemplo, ganha em originalidade, por força da agilidade do estilo. O assunto, sabemos, não é novo, mas rejuvenesce pelo critério da abordagem, pelo estilo lépido. O título Coronel, coronéis uma pesquisa convidativa, tem rodado o país na sociologia do caminhão. É sociologia do humor popular, estampado nos pára-choques traseiros e em trânsito pelas estradas e as ruas. Uma sociologia que percorre o Brasil, de Manaus a Porto Alegre.

Não será também a profunda integração de Vilaça nos valores e no espírito da nação guararape o que imprime à sua obra o mérito da legitimidade, da autenticidade e de uma fidelidade antropologicamente certa?

Estou pensando agora num brasileiro insigne: Pontes de Miranda, outro rebento da merecidamente célebre Escola do Recife, onde, novinho em folha, sorveu o mel, mas também provou do amargo filosofismo germânico de Tobias Barreto e, igualmente, do filosofismo positivista de Sylvio Romero, que acabaria abandonando Augusto Comte, para aderir ao evolucionismo de Spencer.

O egrégio Pontes de Miranda viveu aquele período de ebulição intelectual realmente fascinante, a contagiar as elites pensantes do País, mas não se dedicou, em nível que seria de esperar, à ciência ou às ciências cujos debates ferviam no Recife.

Já no Rio, trabalhou predominantemente, apaixonadamente, na produção de obras jurídicas, sendo de notar que somente no ramo do Direito Privado deixou sessenta volumes, que lhe valeram o acatamento de centros de alta cultura, assim na Europa, como em nosso Continente.

Sem embargo, legou-nos, no campo da Sociologia Geral, uma opulenta contribuição. Em Introdução à Política Científica, também não falta a presença do sociólogo, que a ciência jurídica enfeitiçou. Isso mesmo eu próprio lhe disse, e ele expediu o seu sorriso miúdo, mas concordou.

Outro sociólogo, e dos mais originais, um dos meus antecessores na Cadeira 19, foi Antônio da Silva Mello. Na sua pena havia sempre uma claridade, uma invenção realista, sociológica e antropologicamente válidas, inclusive no estudo das rotinas caseiras em torno de hábitos e objetos, uma espécie de sociologia da intimidade.

Clínico de consultório, hora marcada e avental, não adoeceu intelectualmente na medicina, não se insulou na profissão, e ei-lo, como cientista social de pesquisa e de tese, a publicar livros não só profundos, como atraentes, pela natureza da sua prosa. Assim, para exemplos, os volumes em que versou a problemática da alimentação humana: Alimentação e realidade brasileira e Alimentação no Brasil. Outras obras de igual porte: Nordeste brasileiro, A superioridade do homem tropical e Estudos sobre o negro.

Silva Mello soube dividir-se entre a Psicologia Social e a Sociologia propriamente, quando lançou Estados Unidos, prós e contras, Israel, prós e contras e Religião, prós e contras. Muito a seu jeito, Agripino Grieco, em palestra no PEN Clube do Brasil, resumiu o seu aplauso: “Sou a favor de todos os contras.” Já Lévi-Strauss, da Academia Francesa, na concisão da sua austeridade, manifestou-se quanto a Estados Unidos, prós e contras: “Une excellente réflexion scientifique.”

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Senhoras e senhores cursistas: este arrolamento, como já lhes disse, inclui ensaístas de contribuição esporádica, episódica ou circunstancial, desde que de qualidade. É o caso do ensaísta Getúlio Vargas, ao compor em 1906 um harmonioso estudo sobre Zola e a crítica, na revista gaúcha Pantum, de setembro daquele ano longínquo.

Na crítica de Vargas é transparente e tendência para a literatura de expressão sociológica. Eis o que ele escreveu: “Ninguém melhor que Zola tinha o sentimento da conflagração das massas e sabia objetivar, no romance, o movimento das multidões. O arrojo coletivo desses operários ( ele se referia a operários na obra do próprio Zola), individualmente humildes, educados na passividade cega da obediência, como que desagregava parcelas de energia. Iam vivendo a sua vida e dando o seu exemplo. O fundo idealista, que nele (em Zola) permanecera, ressurge na radiosa apoteose de uma humanidade futura, redimida e glorificada pelo trabalho, pela ciência e pela justiça. Observando as classes inferiores, deu ao seu romance essa larga feição social, amenizada por uma grande dose de fraternidade humana.”

Eu diria, minhas Senhoras , meus Senhores, que o Presidente Getúlio Vargas repetiu, nos anos 30, o estuante de 1906 nos volumes de Doutrina social, contendo seus discursos sobre a nossa política trabalhista. Meu colega Evaristo de Moraes Filho está presente, e seria audácia alongar-me nesse tópico.

A Academia elegeu, e vai empossar dentro em uma semana, o Padre Fernando Bastos de Ávila. Será a sua primeira-comunhão leiga, para a tomada de relações, creio que fáceis, com uma outra imortalidade... É um cientista social definido, como outros que se têm projetado, não só pela titulação acadêmico-universitária, expressivamente conquistada no Brasil e no exterior, como pela índole da sua produção em livros, em conferências, em seminários e na imprensa especializada.

A Academia elegeu um jesuíta descontraído. Estou aludindo à aliança, que nele brilha, entre o sacerdote fiel aos votos da Ordem e dedicado à lida de zelar por uma igreja cada dia mais solidária, mais participante, mais ativa. Por uma igreja mais próxima de núcleos da cultura comunitária e mais expansiva na sua própria presença intelectual. Uma igreja, nesse sentido, mais aproximativa, mais perscrutante. Graças ao servidor, da comunicabilidade verbal, da formação científica e da capacidade de trabalho do sociólogo, do demógrafo e do pensador, que sabe ser Fernando Bastos de Ávila, têm sido bafejadas certas instituições religiosas, e vai agora a Academia fruir de seu alto concurso, como sucessor do poeta e cronista Dom Marcos Barbosa.

Atente-se nas publicações do brilhante ensaísta e professor. Algumas delas: Economic impact of immigration, The brazilian immigration problems (livros editado em Haia), L’immigration au Brésil, Contribution à la théorie générale de I’immigration (Genebra), Colonização e migrações internas, Neo-capitalismo, Socialismo, Solidarismo (um dos meus preferidos), Imigración en América Latina, O pensamento social cristão antes de Marx, estudo interessantíssimo, cujo resumo ele próprio apresentou ao Instituto Histórico, e foi depois publicado em livro; é uma de suas obras mais agudas, mais penetrantes e mais úteis. Além dessas, Fé cristã e compromisso social (Rio e Bogotá), Introdução à Sociologia (em oitava edição da Editora Agir).

Há uma erudição que oprime o leitor ou o ouvinte; a do Padre Fernando Bastos de Ávila aproxima. Há uma simpatia intrínseca na difusão do seu saber. A austeridade e a vivacidade são valores conjugados nas exteriorizações de sua Ciência Social, pela palavra escrita e pela palavra falada.

No rigor teórico de uma classificação, não seria bem o caso de apresentar aqui aquele brilhantíssimo José Guilherme Merquior, um amigo dos mais queridos e admirados. Sem dúvida, foi ele também lavrador em terras da crítica das idéias, campos em que avultou não apenas como um erudito, senão ainda, ou bem principalmente, como um ardoroso apaixonado pela erudição em si mesma. Nem saberia eu dizer com segurança se erudição, na sua sensibilidade pululante, era um meio ou propriamente um fim. Vibrava quando descobria autores de pouco trânsito nestes Brasis. Como eu mesmo lhe disse numa conversa caseira, ficava naquela euforia do menino que acabasse de ganhar um velocípede diferente, com buzina, retrovisor e tudo...

Mas no seu criticismo havia em alguns lances condimentos de sociologia e política-sugestões, acenos, recados. Freqüentemente, embebidas na ironia, advertências brilhantes. Nessa arte de advertir – e ele a exercia além do mais com graça – é que sinto o pensador lépido, ágil, o analista de conceitos e princípios, empenhado , sempre, em armar a dedução filosófica. O que estava essencialmente nele era o prazer, a quase volúpia de trabalhar com idéias. Era um ser filosofante, ainda que a sua formulação teórica ostentasse, aqui ou ali, certos achados travessos, buliçosos no estilo de alguns, em que também Roberto Campos costumava esmerar-se.

O pensador não fez sociologia: ela não o definia ou não lhe foi uma constante como produtor intelectual; mas a verdade é que soube servi-la, com a destreza de sempre, em alguns ensaios vivazes, de que o puro pensador ou o crítico das idéias não se afastaram de todo. Devo destacar Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamim, Rousseau and Weber (Londres) e especialmente o Liberalismo.

Quanto a acadêmicos historiadores, logo me vem Pedro Calmon. Uma reflexão crítica mais profunda, ou isenta, precisa ser feita para dissociarmos na sua vasta obra os valores contrastantes. Foi ele, sem dúvida, uma aliança de pendores, que em muitos acabam conflitantes: com o historiador, militante da pesquisa de fatos e documentos, convivia o executivo da estética literária, bem principalmente na tribuna, mestre da palavra oral, técnico do improviso. De certo por isso, o que mais comumente se aponta nele é a sua artezania verbal – porque esta é mais fácil ou de caracterização mais imediata, talvez mais aprazível, quando não se torna mais propícia à sátira ou ao mero desdém.

Mas essa é uma visão unilateral – e às vezes maliciosa. O que a maioria, mesmo a maioria culta não destaca, ou simplesmente não registra, é o engenho do historiador dinâmico, do pesquisador de clara inspiração sociológica, atento, não raro, a certos dados da antropologia cultural. Não foi outra a sua linha metodológica quando lançou História social do Brasil. Não foi a história-crônica, descritiva, apenas contada. Não. Foi história deduzida, interpretada, num nítido processo de hermenêutica de realidades endógenas – nossas.

Do mesmo rendimento sociológico é a sua História da civilização brasileira. Insisto neste ponto: não é só história de registro, mas história de idéias – uma vez que o autor, na sua tábua de valores, reuniu pesquisa e pensamento. E o que mais importa: sua posição vanguardeira. História social do Brasil precede a do mais singular dos nossos sociólogos: Casa-grande & senzala, obra coroada pela crítica internacional, foi também laureada em 1933, mas alguns meses após o aparecimento dos dois livros de Calmon. Fazer alarde em torno dessa prioridade (ele próprio não o fez), seria, talvez, um procedimento mais ou menos infanto-juvenil. Mas num seminário como este, o registro tem a sua utilidade ou mesmo um certo sabor didático.

O essencial, no assunto Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, é a convergência para a interpretação social do fato histórico, sem nunca ter postergado e muito menos lesado a história factual. Se as idéias, na prosa do reitor histórico vinham ornadas de galas literárias ou sutilezas e ritmos verbais do trópico, não importa; o que avulta – e fica – é a essência da sua contribuição de pesquisador à compreensão, também social, da história de valores brasileiros.

Não deve ficar sem menção que também João de Scantimburgo não faltou com seus préstimos, em vários livros, à interpretações de interesse sociológico. Bastará lembrar que o historiador paulista tem sido considerado um dos mais abalizados intérpretes da obra de Maurice Blondel, já reputado como um dos filósofos franceses de mais larga visão sociológica.

É assim expressiva a inclinação de Scantimburgo para o mestre gaulês. E essa receptividade ao argumento sociológico acentua-se notadamente em livros como Ilusão e desilusões do desenvolvimento, O destino da América Latina, Os paulistas, O café e o desenvolvimento do Brasil e O segredo japonês. Não haveria como esquecer, em boa parte da sua produção, o traço de espiritualidade, senão mesmo o talhe idealista que lhe realça o cristianismo estrutural.

Outro historiador, que serviu, embora em área mais restrita e menos sistemática, a certos estudos sociais, foi Gustavo Barroso. Fez pesquisa folclórica de inspiração nordestina (era um cearense engajado), mas o renome lhe veio, merecido e amplo, com a publicação de Terra de sol, perfeito como investigação histórico-social e como construção literária. Se uma influência mais forte devo apontar , direi que naquele livro primoroso é nítida a força de motivação de Euclides da Cunha. Seja assim ou não, a obra é clamor e beleza, que não comprometem a nitidez da mensagem social. Não é outro, aliás, o sentido daquele livro de título incisivo (incisivo era ele próprio): Heróis e bandidos.

Mas Gustavo não escapou: foi picado pela cascavel de uma política que acabou belicosa e disso resultaram suas páginas mais polêmicas, em que o panfletário não deixou de revelar sua vocação de historiador político. É dever de justiça e de probidade reconhecer, de público, que o acadêmico Gustavo Barroso se antecipou à condenação disso a que hoje chamaríamos terrorismo financeiro.

Ao fim de contas, não estará no historiador político o historiador social?

Polêmico foi também, e brilhantemente, José Honório Rodrigues. Pode haver um polemismo de eclosão esporádica; outro, de ação contínua. O de José Honório, a bem dizer, era um estado natural. Comprazia-se na divergência, na controvérsia, talvez mesmo como um instrumento de afirmação pessoal. Teria sido isso um mecanismo da vaidade compreensível e, no caso, um mecanismo de utilidade pública, já que nos legou, com seus livros, um vultoso patrimônio de idéias, propostas e apelos. Sob esse aspecto seu polemismo foi objetivo. Mesmo considerando que escreveu, muitas vezes, sob a ação de estados de espírito.

Poderia parecer que escrevia ansiosamente. Quero dizer que não escrevia para relatar, mas para provar, com o documento em mãos. Foi um detetive de mais alta categoria: detetive do fato histórico. E de posse da verdade, exultava: às vezes regozijando-se; outras vezes verberando – para não dizer esbravejando, explodindo, estrugindo no próprio saber.

É certo que tinha sua posição político-ideológica. Mas era uma ideologia documentada, buscada nos arquivos, até mesmo do exterior. Quando não podia arrimar-se em provas, arquivava-se no silêncio ou se aprestava para novas buscas. Foi expressivo quando disse, por outras palavras, que não precisamos tanto de historiadores ou de livros de história; precisamos é de documentos.

Eis o polêmico organizado, singular – diferente. Mas bem sabemos que ele tinha, no plano da política cientificamente concebida, um vivo sistema de idéias, claro e atraente, nos seus estudos sobre justiça social e alienação cultural no Brasil.

Na obra de Barbosa Lima Sobrinho, nosso egrégio Decano, esses mesmos estudos, tanto em livro como nas folhas da imprensa, são da maior significação, como contribuição de porte a uma visão sociológica de acontecimentos culminantes da nossa história. Basta lembrar que a maior e mais densa obra sobre o pensador social que foi Alberto Torres saiu de sua pena, feita de elegância na sobriedade e profundeza de convicção nas conclusões firmes

A forte expressão social do nacionalismo de Torres estava na racionalidade do seu patriotismo: era um patriotismo defensivo e não declamatório, apologético, contemplativo, lírico; patriotismo a que o sociólogo norte-americano Mac Iver chamaria “idealismo pragmático” e o próprio Alberto denominaria “idealismo orgânico”.

Mas também à sociologia econômica avulta a contribuição de Barbosa Lima , de valor e atualidade palpáveis. Estou querendo aludir ao seu livro, cuja motivação inicial está no próprio título: O capital se faz em casa. Mais que um livro, publicou uma advertência, cujas destinatárias foram as nossas elites dirigentes, ainda de costas para a realidade social brasileira.

Sergio Paulo Rouanet tem o seu lugar próprio na filosofia da cultura ou, mais especificamente, na crítica das idéias. Creio que o traço mais nítido na sua montagem doutrinária é realmente a agudeza do espírito eminentemente conclusivo. Não é um pensador perdido na cerração do raciocínio in abstrato; não é um teórico difuso ou complexo, jogando apenas com entes de razão ou epifanias. E explica-se: o filósofo fez parceria, desde cedo, com o pensador social; reflete e escreve idéias, buscando pô-las em prova para conferi-las com a realidade adjacente – fatos e valores sociais, nos quais o seu tino crítico vai colher, em verdade, a matéria prima. Eis aí. Rouanet é um filósofo associado ao sociólogo. Esse nexo de continuidade, ou paridade, entre os dois agentes da Arte (Arte-Ciência) de explicar e construir idéias, é que imprime à obra do forte pensador, uma densidade que não pesa e vivacidade que atrai – dotes de motivação imediata . O filósofo se alonga e se agiliza no sociólogo. Eu ia dizer que se esgalha e como no verso de Raul de Leone, “vai dar frutos no pomar alheio”...

Medite-se numa das suas obras capitais, tão festejada pela crítica. Refiro-me à sua visão do Iluminismo – uma visão longitudinal, sem dúvida. Creio que essa esplêndida abrangência do pensamento do filósofo social foi o que inspirou o nosso sempre presente Antônio Houaiss, quando aqui o recebeu, a concluir que o “essencial” da sua produção é a “relação homem-cultura, sabendo que homem quer dizer sociedade-indivíduo”.

Prezo-me de observar que essa reflexão de Antônio Houaiss abona o argumento de que o embasamento sociológico faz um nítido vinco na alta especulação doutrinária de Sérgio Rouanet; seja nas obras em que versa a psicanálise, as idéias políticas, o complexo literatura-arte-ciência , seja nas meditações de interesse histórico. Neste último registro, desejo recordar aquele Espectador noturno da Revolução Francesa, em que a própria ironia do erudito amplia o poder de motivação do também psicólogo social, que igualmente honra esta Casa.

Entre os juristas brasileiros de visão sociológica ( e eles não são numerosos) Miguel Reale tem o seu lugar marcado. Não se confinou no juridicismo ortodoxo, nem se contaminou na burocracia forense. Nunca esteve entre os “gramáticos dos códigos”, aqueles “gramairiens des codes”, satirizados por Maximien Leroy. E explica-se: já vinha guarnecido pelos excelentes instrumentos que lhe deva a cultura filosófica. Por si mesma, ela o aparelhava para o vôo alto sobre o campo das idéias. Vôo descontraído, vôo de um ser de fato pensante, dedutivo por excelência, a avaliar conceitos, princípios, instituições, regimes políticos, formas ou sistemas de governo (não estou pensando nas suas seguras escavações no universo kantino, nem na busca das razões primeiras, aquelas que inspiraram a exclamação polissecular: “Felix qui potuit rerum cognoscere causas.” Não. Estou aludindo ao filósofo de aplaudida contribuição a certos estudos de sociologia – notadamente aos de sociologia política, plasmados em critérios de objetividade, que se não o levam a Durkheim, dele o aproximam em alguns pontos da receita metodológica. Note-se que seu primeiro livro, de 1937, versa O Estado moderno. O jurista começou abrindo uma clareira no Direito Privado, ponto de convergência da grande maioria dos bacharéis, para ocupar-se do mais público dos direitos – o Direito Político, em termos de Teoria do Estado e Direito Constitucional. Afinal, o que fez foi trasladar para o estudo do Estado Moderno conceitos e fontes de claro interesse sociológico. E seja como filósofo ou como jurista atento à vocação social do nosso tempo, a verdade é que Miguel Reale acrescentou à sua obra vasta e consagrado traços nítidos de uma brasilidade não contemplativa ou candidamente apologética, mas embebida no óleo puro do patriotismo reflexivo, crítico, inseparável dos sadios julgamentos introspectivos; brasilidade cientificamente válida, porque vazada na aferição de valores nacionais de raiz.

Dentre as suas obras de maior serventia para os estudos sociológicos, creio que mereçam destaque especial, além de Teoria tridimensional do Direito, O Estado moderno, Formação da política burguesa, Capitalismo internacional, Atualidades do mundo antigo, Pluralismo e liberdade, Imperativos da Revolução de Março, Problemas do nosso tempo, Da revolução à democracia, Problemas institucionais do Estado contemporâneo, Liberdade e democracia. Penso na obra de um filósofo de vocação, de carreira e de cátedra: é o acadêmico, professor nato, Tarcísio Meireles Padilha. Mas não vejo filosofismo na sua filosofia; não vejo hermetismo, nenhum, exclusivismo, nenhuma ortodoxia, nenhuma hibernação no cosmo do transcendental, quanto a princípios, preceitos e pré-juízos com que o ser filosofante mergulha comumente na idealização do bem e do mal, para o anúncio final da Verdade.

Não. Tarcísio Padilha, em sua obra, soube demarcar a fronteira entre formulação teórica e objetividade. Não a objetividade que se perde e polue nas formas do imediatismo frio e seco, mas aquela que se plasma, fortalece e frutifica numa espécie de idealismo ativo – não contemplativo – ou de pragmatismo sadio, capaz de incrustar no mesmo ouro o belo e o necessário , o que encanta e o que é preciso. Ação e ideação – razão e sentimento.

Nosso confrade não é um intelectual que se desfigure no intelectualista. Daí a sua ótica, também sociológica, no processo crítico. Até mesmo na crítica aprofundada das idéias, ou num certo filosofar, é visível a infiltração do argumento sociológico, que por vezes ganha dimensões de pensamento central. Veja-se a temática de vários dos seus livros mais significativos: Filosofia, ideologia e realidade brasileira, Brasil em questão, Alceu / Tudo se transfigura, O verdadeiro milagre brasileiro, Negociação, conflito e democracia, Educação e filosofia, Libertação e liberdade. Há dias, vendo-os numa das minhas estantes, veio-me a sensação de que a sensibilidade do autor, aberta à filosofia social, ali estava estampada no rosto de cada volume.

De Sérgio Corrêa da Costa não faltará quem pondere que sua obra, valiosa, é claro, versa aspectos políticos da nossa diplomacia. Por outras palavras: o objeto da sua pesquisa estaria em fatos políticos que marcaram numa certa época uma determinada ação do Itamarati ou do Presidente da República ou do Parlamento.

Um tal argumento peca por simplismo. Nosso ilustre confrade pertence à família dos historiadores que pesquisam para construir idéias e conceitos – às vezes, até, sadiamente polêmicos. E esses conceitos e essas idéias já trazem em si a revelação da sensibilidade social e espírito seletivo do pesquisador. É com essa sensibilidade que ele vê o fato político. Daí a agudeza com que, na sua reflexão crítica de nítido alcance sociopolítico, faz rejuvenescer o dado histórico, infundindo no leitor uma sensação de descoberta. É que na verdade o seu intuito e sua técnica não exprimem apenas um processo de busca, que se baste só por si; o que ele procura – e consegue – é coletar no fundo do tempo matéria, materiais, coisas , acontecimentos, homens, instituições que lhe permitam, não apenas contar, mas redescobrir para o leitor a essência, os pontos cardeais, a nervo dos fatos, o espírito da História e da sociedade que a produziu.

Não é outro, a meu juízo, o sentido sociologicamente válido da sua metodologia historiográfica, bem clara em seus livros. Notamente em A diplomacia do Marechal Intervenção estrangeira na Revolta da Armada, A diplomacia brasileira na questão de Letícia, As quatro coroas do Imperador, Pedro I e Metternich – Traços de uma guerra diplomática. Já em sua última obra, densa , mas atraente, – Palavras sem fronteiras – dá-nos o Acadêmico Corrêa da Costa uma nova mostra da sua perícia de hermenêuta do fato histórico. Desta vez, servindo aos estudos de sociologia da linguagem, mostra-nos o trânsito da palavra a superar a demarcação da fronteira político-jurídica, quadro vivo do processo social básico : a interação de valores, expressa na socialização de certos significados . E não haverá, também aí, uma concepção dinâmica da história da cultura, sociologicamente útil e bem revestida?

*

Senhora Presidente da Academia, senhoras e senhores cursistas, anuncio-lhes a hora feliz para todas e todos: a hora de rematar, de concluir. Consola-me a certeza de que lhes trouxe algum ouro da Casa e agora mais ouro para pôr na chave. Encerro a caminhada na página, apontando para Celso Furtado, ainda convalescente da cerimônia de posse, que aconteceu há quatro dias. Ele é, a meus olhos, o cientista social que foi ter com a Sociologia e a História Política, e munido do vasto material que buscou nessas oficinas de construção de idéias, deu-se à pesquisa metódica e conclusiva em torno dos fatos e instituições que marcam a vida econômica – a nossa e outras. Adjetivei de conclusiva a sua pesquisa, porque a verdade é que, na sua prospecção, ele não delimita o campo de perquirição ou sondagem, contendo-se com apenas armazenar. Não, Celso Furtado não é tão só um coletor, mas essencialmente um hermeneuta, um intérprete da realidade que o cerca e preocupa.

A ação do pesquisador de interesse realmente público não é exclusivamente registradora, como certas máquinas de estabelecimentos comerciais. Pesquisar, mais do que reproduzir, é produzir deduzindo, e deduzindo para induzir, para esclarecer motivando. Não há objetividade sem objetivo. A ciência, por definição, é conclusiva; investigar por investigar pode ser mera agitação no espaço, sem realidade no tempo, como na paciência maníaca dos filatelistas, ou na das colecionadoras tradicionais de leques, de xicrinhas para café e respectivas colheres.

Celso Furtado não pratica a pesquisa pela pesquisa, como nunca praticaria a arte pela arte, seca de inspiração social. Nunca. Entre continente e conteúdo, seria instantânea a opção do cientista social, que montou banca nos estudos econômicos como advogado exemplar do interesse do Brasil e da eficácia do próprio estudo da economia brasileira, da transcontinental e da continental latino-americana.

Sem dúvida, o pensador social continuará a honrar a inteligência nativa em suas pesquisas. Elas o imunizam contra os males daquela objetividade sem objetivo ou do pitoresco cacoete de certos círculos de pesquisadores dos Estados Unidos, onde se chegou à inusitada coleta do “fato avulso” (fact finding). É dupla investigação de Celso Furtado: vê no livro e vê na vida. Nosso eminente confrade pesquisa para conferir conceitos e princípios com a realidade viva.

Suponho ter feito o principal para definir os serviços de Celso Furtado à Economia Social, à economia socialmente interpretada, racionalmente investigada, discernida e proposta. Agradeço, de coração, que nesta tarde quente me tenham ouvido com tanta paciência. Só me esqueci de recordar uma historieta que já contei à nossa querida Presidente – já contei muitas vezes, e bem, especialmente para ela, que é um espírito fino. Um dramaturgo do começo do século, na França, dava seu conselho aos que exerciam a oratória. Dizia ele que o segredo de um bom orador, todo êxito de um bom orador, estaria em falar de preferência baixo, devagar e , ao concluir, sair nas pontas dos pés, para não acordar a assistência...

 Muitíssimo obrigado.

 

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