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Mulheres e mosquitas

 

Mães atingidas pelo drama estão na dura realidade. Pais fogem da situaçãode criar filhos com microcefalia e somem.

Terça-feira o mundo celebra o Dia Internacional da Mulher. Haverá balanços de atrasos que continuam, e de pequenas conquistas obtidas a duras penas. Desalento e esperança lado a lado. Poucas datas dão tamanha ênfase ao tempo que escoa, com tanta evocação de condições passadas e tanta projeção em ações futuras, precariamente se equilibrando no dia de hoje. Não se trata apenas de uma comemoração de avanços, mas, sobretudo, de uma conclamação a não esmorecer, porque ainda resta muito a ser feito.

Numa data multifacetada, é difícil resumir seu sentido em pouco espaço, o que me faz escolher algumas mulheres em evidência agora, para com elas fazer uma homenagem-síntese à mulher brasileira.

A primeira é a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Este ano foi a ganhadora do Prêmio Faz Diferença, e muito celebrada porque, ao não admitir a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias, sintetizou sua disposição de não admitir censura à liberdade de expressão: Cala a boca já morreu. Destaco também outra declaração sua, ao votar pela manutenção da prisão do senador Delcídio Amaral. Igualmente enlaçando uma análise de fatos passados e uma determinação para o futuro, torna-se ainda mais alvissareira quando se sabe que daqui a seis meses ela assumirá a presidência do STF, em substituição a Ricardo Levandowski: “Na história recente de nossa pátria, houve um momento em que a maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote de que a esperança tinha vencido o medo. Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 (mensalão) e descobrimos que o cinismo venceu a esperança. E agora parece se constatar que o escárnio venceu o cinismo. Quero avisar que o crime não vencerá a Justiça.” 

Minha segunda homenagem também tem a ver com justiça mas é na área da economia: Sinara Policarpo Figueiredo. Não liga o nome à pessoa? É a analista do Santander, que em julho de 2014 ousou cumprir seu dever profissional e alertou os clientes do banco para o fato de que a eleição de Dilma poderia representar uma deterioração da economia. Feriu vaidades e versões mentirosas, perdeu o emprego por pressão dos poderosos. Além da própria presidente, Lula pessoalmente a atacou de modo agressivo e grosseiro, em público. Sinara acreditou na Justiça e entrou com um processo. Há poucos dias, ao menos o banco foi condenado a lhe pagar uma indenização por danos morais — decisão de uma juíza, confirmada em segunda instância por outra juíza.

Fazendo a louvação do que deve ser louvado neste ano de desgraças de 2016, não há como esquecer Adriana Melo. Médica especializada em gestações de alto risco num hospital público em Campina Grande, na Paraíba, foi quem primeiro notou o aumento de casos de microcefalia, levantou a hipótese de haver um vínculo com o vírus da zika, procurou estabelecer uma rede de troca de informações e busca de apoio, deu o alarme mundial sobre essa tragédia.

Ao destacar apenas esses nomes, a homenagem vai para todas as mulheres. Sejam ou não mulheres sapiens — como inventou nossa presidente antes de vestir jaleco branco e sair combatendo a mosquita e posando para imagens com seu séquito, em um cenário que acabava de tomar banho de loja. 

As mães atingidas pelo drama estão na dura realidade. Revela-se que muitos pais fogem da situação de criar filhos com microcefalia, e somem no mundo. Noticia-se que no Nordeste muitas mães também estão abandonando os bebês. Outras mulheres ficam, sem amparo e sem opção.

No terreno em que saúde pública e Justiça se sobrepõem, insinua-se outro debate, sobre o direito de escolha da mulher em relação à interrupção da gravidez. Neste momento específico de emergência, a própria ONU se manifestou a respeito, através de seu Alto Comissariado para os Direitos Humanos, sugerindo ações no acesso a informação e contraceptivos, bem como a descriminalização do aborto. Com isso concorda a médica Suzanne Serruya, chefe global da área de microcefalia da Organização Mundial da Saúde. O tema precisa ser discutido, a sério. Do jeito que está, se uma mulher (ou um casal) passa pelo calvário de descobrir uma grave má-formação do feto e, depois de muita angústia e sofrimento, decide não levar adiante a gestação, terá de interrompê-la clandestinamente. Se descoberta, poderá ser presa por ter praticado um crime, junto com quem a apoiou — marido, família, médicos, enfermeiros.

A Secretaria das Mulheres não tem nada a dizer a respeito? O ministro da Saúde? O da Cultura foi o único que falou sobre isso, e bem. Ninguém repercute?

Se um preceito religioso aponta que é pecado, quem for religioso que o respeite. Quem não for, que siga sua consciência. Se a lei diz que é crime, discuta-se a mudança da lei. Houve tempo em que a lei receitava fogueira ou forca. E não via crime na escravidão... Mas não estava certa, mesmo com apoio eclesiástico. 

Mudar leis pode ser um passo adiante. O que não se pode admitir é que o dogmatismo religioso seja imposto autoritariamente a toda uma nação.

O Globo, 05/03/2016